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Proteger e a intervenção humanitário na Líbia

2. Responsabilidade de Protegar

2.2. Soberania como Responsabilidde de Proteger

A soberania, como é sabido, consiste em fundamental princípio de direito internacional, em razão de tutelar a independência e inviolabilidade do Esta- do. Nesse sentido, o princípio em comento é tão antigo quanto este sujeito de direito internacional, uma vez que teve, originalmente, por objetivo consolidar a existência de Estados17. Assim, a soberania garante a igualdade formal entre Estados, e a inviolabilidade de determinados direitos a estes sujeitos18. No que diz respeito a tais garantias, ressalta-se o direito de não sofrer intervenção, e a proibição de realizar ingerência noutro Estado, o que consiste em norma que tem por finalidade a concretização de coexistência pacífica entre os membros da Sociedade de Estados.

Ocorre que, numa perspectiva histórica, até o século XVIII, foi a sobera- nia utilizada como premissa justificadora do absolutismo, uma vez que era este princípio compreendido como poder supremo e ilimitado, o que, por sua vez, ratificava comportamentos do Estado sem que fossem levadas em consideração eventuais violações cometidas por tal sujeito contra a sua população19. Essa in- terpretação perdurou, ainda, ao longo do século XIX, de forma mais intensa, através da noção da “competência da competência”20 que consiste em noção de que o Estado tem poder de delinear a sua própria jurisdição, consequentemente reiterando o conceito clássico de soberania ao enaltecer o Estado e refutar o di- reito internacional.

A tradicional concepção de soberania, entretanto, contrapõe-se à con- temporânea compreensão desta. Em verdade, a soberania tem passado por um processo de relativização, influenciado pela evolução do direito internacional, da consolidação da proteção dos direitos humanos, e os efeitos da globalização. Dessa forma, tendo em vista que a soberania tem por principais corolários o princípio da não intervenção, e o princípio da igualdade entre Estados, tais nor- mas são também submetidas à transmutação, sendo, também, compreendidas em harmonia à evolução e consolidação dos valores da Sociedade Internacional. A flexibilização do princípio da soberania foi particularmente acelerada após a constituição da ONU, o fim da Guerra Fria e a eclosão de crises huma- 17 Francis Kofi ABIEW, The Evolution of the Doctrine and Practice of Humanitarian Intervention, The

Hague, Kluwer Law International, 1999, pp. 23-30.

18 Anne BODLEY, “Weakening the Principle of Sovereignty in International Law, The International Criminal Tribunal for the Former Yugoslavia”, New York University Journal of International Law and Politics, Vol. 31, Issues 2 & 3 (Winter-Spring 1999), pp. 418-419.

19 Francis Kofi ABIEW, ob. cit., pp. 23-30.

20 Georg JELLINEK,apud Patrick DAILLIER, Nguyen Quoc DIHN, Alain PELLET, Direito Interna- cional Público, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2003, pp. 433-434.

Questões de Responsabilidade Internacional

nitárias nos anos noventa. Nesse sentido, Kofi Annan21, observando os obstácu- los à tutela do ser humano, em razão da tradicional concepção de soberania, propôs, enquanto Secretário-Geral da ONU, a conciliação da soberania com os atuais valores internacionais através da existência concomitante de duas sobera- nias, ou seja: a existência de uma soberania individual, que implica na inad- missibilidade da violação de liberdades e garantias essenciais ao ser humano, bem como a inviolabilidade do Estado, tendo em vista a soberania estatal.

Também na década de noventa, foi proposta por Francis M. Deng, com cooperação de Roberta Cohen22, uma nova interpretação da soberania, a fim de que tal preceito englobasse a responsabilidade, ou seja: o Estado somente pode reivindicar as prerrogativas da soberania enquanto exercita o dever de proteção e assistência à sua população. À vista disso, depreende-se que, uma vez que o Estado não cumpre tal responsabilidade, seria legítimo o envolvimento da Co- munidade Internacional para exercer o dever de proteção23, o que, por sua vez, torna possível concluir que o princípio da não intervenção, uma vez que deriva da soberania, não pode ser invocado para tutela da independência e inviola- bilidade do território e dos assuntos internos do Estado caso este descumpra seu dever de proteção em relação à sua população24. Assim, a flexibilização do princípio da soberania implica em relativização do princípio da não intervenção, corolário daquele.

Cumpre ressaltar que a revolucionária25 interpretação da soberania, de- senvolvida inicialmente por Deng, serviu de fundamento para a construção, portanto, da responsabilidade de proteger pela ICISS26. Nesse sentido, a citada comissão, ao sugerir, por exemplo, a possibilidade de intervenção militar nos casos de amplas e graves violações de direitos humanos, admitiu a medida, em verdade, não como uma conduta incompatível com a soberania, mas em confor- midade com esta, tendo em vista que a responsabilidade do Estado em relação à população consiste em dever crucial compreendido por tal princípio27.

21 Kofi ANNAN, “Two concepts of sovereignty”, The Economist. Publicado em 16/09/1999. Disponí- vel em,http,//www.economist.com/node/324795. [20/11/2015].

22 Francis M DENG, Roberta COHEN, “Exodus within Borders, The Uprooted Who Never Left Home”, Foreign Affairs, Vol. 77, Issue 4, 1998, pp. 13-14.

23 Ibidem.

24 Rosa BROOKS, “Humanitarian Intervention, Evolving Norms, Fragmenting Consensus”, Mary-

land Journal of International Law, Vol. 29, 2014, p. 169.

25 Stevie MARTIN, “Sovereignty and Responsibility to Protect, Mutually Exclusive or Codepen- dent?”, Griffith Law Review, Vol. 20, Issue 1, 2011, p. 161.

26 Gareth EVANS, ob. cit., 2006, p. 708.

27 Rosa BROOKS, ob. cit., p. 170. Anne PETERS, “The Security Council’s Responsibility to Protect”, International Organizations Law Review, Vol. 8, Issue 1, 2011, p. 19.

A Doutrina da Responsabilidade de Proteger e a intervenção humanitário na Líbia

Nesse contexto, a ICISS esclarece, ainda, que a soberania do Estado en- quanto responsabilidade abrange três sentidos28, ou seja: a responsabilidade das autoridades do Estado pelas funções de proteção da segurança, da vida e do bem-estar dos seus cidadãos; a existência de responsabilidade das autoridades políticas do Estado perante os cidadãos, internamente, e em face da Comuni- dade Internacional, através da ONU; e a responsabilidade dos agentes do Estado por atos comissivos e omissivos por eles cometidos.

Portanto, a ajustada e atual concepção do princípio da soberania conti- nuar a proteger a independência e inviolabilidade do Estado, desde que este observe seu dever de tutelar a sua população, o que, em verdade, evidencia a importância do ser humano não só para o país como, também, para a Comuni- dade Internacional. Contudo, mostra-se importante ressaltar que a flexibilização da soberania e do princípio da não intervenção, conforme será posteriormente objeto de exame, somente permite a incidência de ingerência externa em casos específicos, mediante verificação de manifesta incapacidade ou relutância do Estado em exercer seu dever de proteção. Assim, intenta-se evitar que tal relati- vização fosse utilizada como fundamento de eventuais discursos intervencionis- tas, ou como justificativa para o surgimento de um novo movimento colonialista.

2.3. Organização das Nações Unidas e a Responsabilidde de

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