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Revisitando as análises dos processos judiciais criminais relativos aos

CAPÍTULO 2 O SISTEMA JUDICIAL E OS SIGNIFICADOS

2.4 A perspectiva de gênero como proposta metodológica de compreensão das

2.4.1 Revisitando as análises dos processos judiciais criminais relativos aos

Foi o movimento feminista que trouxe à luz a questão da violência sexual e, sobretudo, do estupro, a partir da década de 1970, inicialmente como fato a ser denunciado, e, mais tarde, como fato a ser refletido (BANDEIRA, 1999-b). A autora remarca que as feministas americanas, desde 1960, já denunciavam a prática do estupro e o descaso dos órgãos institucionais. No Brasil, tal adquire visibilidade uma década depois, onde as mulheres agredidas sexualmente manifestaram suas reações, possibilitando a politização do fenômeno.

Os primeiros estudos referentes aos processos judiciais na área criminal foram realizados nos Estados Unidos e centralizados na fase da sentença. Vargas (2006), citando Pires e Landreville, noticia que no início dos anos 1960 e meados dos anos 1970 essas investigações privilegiaram algumas determinantes das decisões judiciais, particularmente, a verificação da influência, nas razões de decidir, de questões raciais e de classe, ou, se consideravam apenas os critérios legais.

91 Segato (2003) entende que a violência moral constitui um mecanismo demasiado eficiente de

controle social e de reprodução das desigualdades; registra que a coação de ordem psicológica (ou

moral) se configura no horizonte constante das cenas cotidianas de sociabilidade e nas principais

formas de controle e opressão social em todos os casos de dominação, seja por sua sutileza, pelo seu

caráter difuso e sua onipresença, resultando em uma máxima eficácia no controle das categorias sociais subordinadas . No universo das relações de gênero, a violência psicológica é a forma de violência

mais “maquinal”, rotineira e irreflexiva, constituindo o método mais eficiente de subordinação e intimidação.

92 Max Weber (citado em MAFFESOLI, 2001) considerando a força e a potência da violência,

reconheceu que é preciso compreendê-la como manifestação maior do antagonismo existente entre vontade e necessidade.

Na França, um processo criminal instaurado em razão de um estupro ocorrido em 1974, em Aix-en-Provence, tornou-se um fato marcante e representativo, em torno do qual as feministas militaram em favor do reconhecimento da violência contra a mulher e da necessidade de reforma da legislação vigente à epoca (VIGARELLO, 1998).93

No Brasil foram poucos os estudos que tratam do tema da discriminação nos processos decisórios judiciais, podendo salientar que os mais abordados foram aqueles realizados sob o paradigma do recorte de gênero e raça. 94 Na perspectiva da investigação da discriminação por raça pode-se salientar as pesquisas realizadas por Fausto (1984) e Costa Ribeiro (1985) que, focalizando o universo temporal do início do século XX, identificaram um tratamento discriminatório, nos julgamentos do tribunal de júri, em relação aos pretos e aos pardos; e, de Adorno (1994), cujo estudo constatou que a defesa dativa está correlacionada aos réus de cor preta e que estes são mais condenados pela justiça.

No que diz respeito às investigações da discriminação por gênero presentes nas decisões judiciais questionando a presença de práticas jurídicas matizadas por preconceito e estereótipos referentes às vítimas, pode-se citar algumas das pesquisas mais relevantes no Brasil:

 Marisa Corrêa (1983), demonstrando que nos julgamentos de homicídios entre casais – crimes passionais – a tendência é a absolvição do réu (homem);

 Andaillon e Debert (1987), que ao analisando os processos penais relativos aos crimes de estupro, lesões corporais e homicídios praticados contra mulheres – ocorridos no período de 1981 a 1986, em seis capitais brasileiras –, concluíram que, nos respectivos julgamentos, as pessoas envolvidas tiveram seus comportamentos avaliados em função de sua adequação aos papéis sociais;

93 Os primeiros estudos franceses, salvo algumas exceções, caracterizam-se por uma abordagem de

estudos de caso e relatos de experiências de mulheres sobreviventes de violação (BOUSDEAUX, 1990).

94 Castro (1992) assinala que a utilização da perspectiva de gênero como proposta metodológica de

análise deu-se, primeiramente, nas pesquisas de sociologia do trabalho e nos estudos sobre os movimentos sociais. Salienta que muitas pesquisadoras, dentre elas Helleieth Saffioti, Elizabeth Souza- Lobo e Maria Célia Paoli questionando paradigmas como o patriarcado, a divisão social do trabalho, a separação entre produção-reprodução e as relações sociais entre os sexos, passaram a colocar a necessidade de permanente crítica dos conceitos.

 Pimentel, Schritzmeyer e Pandjiarjian (1998), avaliando 50 processos judiciais e 101 acórdãos relativos aos crimes de estupro praticados em algumas regiões do país, relataram que as argumentações dos operadores do Direito, no momento da aplicação da lei, consignam valores sociais imbuídos de preconceitos e estereótipos, que atuam subrepticiamente nas decisões;

 Izumino (1998), estudando o papel do sistema judicial e os respectivos desfechos processuais na solução dos conflitos de gênero, concluiu que as decisões levaram em conta os papéis sociais das vítimas e dos réus ao ressaltarem alguns aspectos considerados definidores pelo/as julgadores/as, tais como a sexualidade feminina e o trabalho masculino;  Vargas (2002) que ao investigar o fluxo do funcionamento da justiça

criminal, demonstrou que este age reativamente no que se refere aos crimes de estupro, em resposta à demanda das vítimas, salientando uma tendência à estigmatização da agredida e também do agressor.

Ressalte-se, ao final deste subitem, que sob o ponto de vista teórico- metodológico, essa temática tentou avançar em relação aos estudos acima mencionados nos seguintes aspectos: a) elegeu para essa pesquisa, o estudo de dois tipos de crimes sexuais contra as mulheres; b) organizou um universo significativo de dados empíricos de forma a traçar quantitativa e qualitativamente algumas variáveis contidas nas decisões judiciais de duas instâncias do Poder Judiciário brasileiro – em primeira instância, as sentenças judiciais de uma das varas criminais da circunscrição judiciária da Ceilândia (região/cidade administrativa do Distrito Federal – e, em segunda instância, os acórdãos dos Tribunais de Justiça estaduais e do Distrito Federal; e, por último, c) desenvolveu uma sistemática (abordagem) de análise que possibilitou alcançar, concomitantemente, dois objetivos: a influência do pensamento androcêntrico e o potencial emancipatório de tais decisões.

* * *

Neste capítulo foram, primeiramente, identificados, segundo as análises de Boaventura de Sousa Santos, os três grandes períodos, no significado sociopolítico, da função judicial nas sociedades modernas, e, as três funções desempenhadas pela

justiça: as funções instrumentais associadas à resolução dos litígios, controle social, administração e criação de direito; as funções políticas decorrentes do fato dos tribunais serem um dos órgãos de soberania; e as funções simbólicas, de caráter mais geral que envolvem a articulação dos tribunais com todo o sistema social.

Como visto, mais do que interagir com o sistema político, os tribunais são parte integrante dele. Admitindo-se que a mobilização dos tribunais pelos cidadãos implica não somente consciência de direitos e capacidade para reivindicá-los, significa, também, sob um olhar contra-hegemônico, um acesso à justiça que propicie a emancipação daqueles que pedem a tutela jurisdicional do Estado.

O estudo do funcionamento do sistema judicial, na dimensão aqui proposta, requer adentrar nas relações de gênero e nas diversas formas de segregação e discriminação que transversalizam esse universo do direito – particularmente as decisões judiciais. Requer, enfim, uma análise multimensional desses mecanismos que se encontram dispostos nas estruturas que circundam o aparato institucional do Estado ao processar e julgar os crimes sexuais contra as mulheres.

Dito de outro modo, uma incursão no interior das estruturas jurídicas do sistema judicial brasileiro na tentativa de compreender e desvelar as razões subjacentes de suas decisões e dos diversos mecanismos de controle social (focalizando o que engendram, naturalizam e imobilizam), dentro de um campo de poder sistematicamente encoberto pela afirmação da proteção e distribuição da igualdade, revelou ser necessária a utilização do paradigma das relações de gênero.

No capítulo que se segue são delineadas as perspectivas teóricas acerca das categorias ‗colonialidade do poder‘, do ‗saber‘ e do ‗Ser‘ e a emancipação social que se relacionam com a questão principal aqui tratada.