Uma abordagem quantitativa e qualitativa do cenário empírico

O desempenho efetivo dos tribunais não ocorre em um vazio social, pois a procura da tutela judicial tem lugar no contexto social de uma procura potencial mais vasta. Segundo Santos (1996; 2006-a), é com base nesta procura que se desenha a ‗pirâmide da litigiosidade‘, cujo topo é constituído pelo trabalho judicial concreto. Com efeito, proceder à análise de toda a pirâmide é extremamente difícil, dado que as situações litigiosas suscetíveis de gerar uma procura de tutela judicial são virtualmente infinitas. E o ‗topo‘ dessa pirâmide sustenta-se, justamente, nessa base, que se constitui de situações ‗suscetíveis‘ de gerar a demanda judicial.

Tratando-se de violência de gênero, mais especificamente de crimes sexuais perpetrados contra as mulheres, a ‗base‘ dessa ‗pirâmide da litigiosidade‘ tende a se ampliar. Isso porque um importante limitador do estudo dos crimes sexuais contra a mulher, precipuamente o ‗estupro‘ – incluindo-se aqui o crime de ‗atentado violento ao pudor‘ (contra a mulher) – e de seu processamento pela justiça criminal é o alto índice de casos em que as vítimas não recorrem às instâncias institucionais competentes para a obtenção da respectiva tutela do Estado. Essa característica é atribuída a um padrão de comportamento de grande parte das pessoas vitimadas – o silêncio ou a resolução do conflito no âmbito privado. 42 Nesse contexto, merece ser assinalado, que os registros de crimes sexuais nas delegacias de polícia correspondem a cerca de 10 a 20% dos casos que realmente acontecem (DREZZETT, 2000; SAFFIOTI; ALMEIDA, 1995). Disto se infere que apenas uma pequena fração dos crimes cometidos, registrados e denunciados é processada e julgada pelo sistema judicial 43 (assertiva também constatada nesta pesquisa, conforme demonstrado no Quadro 06).

42 _{Dentre os/as autores/as que se referiram ao estupro e a outros crimes sexuais como conflitos}

solucionados no âmbito privado destacam-se Vigarello (1998), Bandeira (1998), Saffioti (1994; 1997; 2004), Vargas (2006), Izumino (2004).

43 _{Em que pese essa limitação, uma das vertentes da pesquisa criminológica tem sido a investigação do}

Nessa perspectiva, esta investigação apropriou-se da designação ‗pirâmide da litigiosidade‘, cunhada por Santos (1996), para, além de explicar que a presente pesquisa incidiu sobre o ‗topo‘ dessa pirâmide de litigiosidade penal – relativamente aos crimes sexuais já mencionados 44 –, focalizar, neste desenho, a criminalidade judicializada. Ou seja, aquela que foi detectada pelos tribunais, e, que chegou à fase de julgamento.

FIGURA 01

Pirâmide da Litigiosidade Penal

Para alcançar os objetivos aqui propostos, recorreu-se a procedimentos quantitativos e qualitativos, ainda que estes últimos tenham predominado, para proceder à análise comparativa (relativa a algumas variáveis constantes das decisões judiciais que influenciaram na solução ofertada pelo Sistema Judicial), e, uma análise de conteúdo (relativa às discursividades produzidas pelos julgadores/as).

eficácia em reprimí-lo. Vargas (2006) salienta que pesquisas de vitimização, embora apresentem problemas para inferir sobre a incidência destas modalidades de crimes e estimar a proporção dos casos que chegam às delegacias em relação àqueles que não são registrados/denunciados, permitem desenhar padrões para a ‗não-denúncia‘/‘não-registros‘ e também conhecer as razões fornecidas pelas vítimas por não relatarem a ocorrência perante as agências institucionais competentes.

44 _{Exceção feita ao ‗primeiro momento da pesquisa‘ em que foram coletados os dados das Delegacias de}

Polícia da Ceilândia para estabelecer uma comparação entre os registros de ocorrência relativos aos crimes de estupro e os processos judiciais instaurados na circunscrição judiciária da Ceilândia.

Justificou-se a utilização desses procedimentos porque o estudo investigou um fenômeno complexo, cujas especificidades do problema exigiram buscas abrangendo diferentes variáveis. Nesse sentido, Laville e Dione (1999: 41) afirmam:

[...] os fenômenos humanos repousam sobre a multicausalidade, ou seja, sobre um encadeamento de fatores, de natureza e de pesos variáveis, que se conjugam e interagem. É o que se deve compreender, estima-se, para verdadeiramente conhecer os fatos humanos.

Abordar, desse modo, o fenômeno do conflito de gênero, especificamente a violência sexual contra a mulher, e sua solução pelo sistema judiciário, em suas dimensões materiais e simbólicas, pressupõe, além de uma postura compreensiva – ou seja, um alargamento para além das percepções explicativas tradicionais –, foi necessário operar um autêntico aprofundamento da questão, na busca do que é tangível e intangível, alcançando, assim, a sua multicausalidade.

Nesse sentido, a abordagem qualitativa possibilitou uma análise mais acurada dos pronunciamentos decisórios, nomeadamente das narrativas dos/as protagonistas desse enredo – ou seja, do repertório de argumentos dos/as magistrados/as –, para captar os significados de uma cultura androcêntrica e misógina em relação aos seus julgados, e, também, entrever os pontos de interseção entre o mundo das normas, com a esfera da legalidade, e o mundo da cidadania, com a esfera da emancipação social. Como assegura Minayo (1993: 22), a pesquisa qualitativa busca:

[...] o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis.

A utilização do método quantitativo teve o propósito de proceder a uma análise estatística dos dados, como, também, em função da grande quantidade de informações que foi necessário manejar. Isso possibilitou, inclusive, o estabelecimento de contrastes entre diversificadas variáveis, tais como:

 o número de absolvições e condenações, seja na mesma instância de jurisdição ou entre jurisdições diferentes;

 faixa etária das vítimas;  sexo dos/as magistrados/as.

Em síntese, este trabalho foi concebido na seguinte sistematicidade: a) Adotou-se três ‗momentos de pesquisa‘, para possibilitar a separação das

instâncias jurisdicionais pesquisadas (Fórum da Ceilândia, Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Estaduais brasileiros) e a explicitação dos dois espaços temporais – 2000 a 2004 e 2007 a 2008;

b) a análise dos dados foi realizada em duas grandes etapas dispostas nos dois últimos capítulos desta tese. Na primeira etapa foram analisadas algumas variáveis que dizem respeito ao número de condenações e absolvições, à quantificação da pena imposta, e, a situação geral de contextualização dos crimes sexuais em estudo 45 (que se encontram especificadas no subitem 1.3.2.1 deste capítulo). Na segunda etapa foi realizada uma análise de conteúdo dos pronunciamentos decisórios, incidindo sobre a natureza da fundamentação e argumentação das decisões e a ‗lógica interna‘ e valores nela consubstanciados, cujas categorias de análise encontram-se descritas no subitem 1.3.2.2 deste capítulo.