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São Paulo, o mito da cidade-global e o desenvolvimentismo neoliberal

3. Cultura e gentrificação nas cidades

3.12 São Paulo, o mito da cidade-global e o desenvolvimentismo neoliberal

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Ainda que a prefeitura de São Paulo se propagandeie como uma prefeitura de cidade- global245, Carvalho nos lembra:

Nessa primeira forma de apreensão, a que se poderia nomear forma diagnóstico, o conceito de cidade global é a expressão de um processo histórico bastante concreto vivido por determinadas metrópoles do Primeiro Mundo e, como tal, procura refletir a totalidade de seu movimento. Ao mesmo tempo em que designa o processo de transformação na estrutura produtiva das metrópoles, decorrente da globalização da economia, evidencia as contradições a ele inerentes: as alterações promovidas no mercado de trabalho e o aumento conseqüente da desigualdade social, com rebatimento na apropriação do espaço urbano. Desse ângulo específico, o conceito enriquece a compreensão da dinâmica das metrópoles e, pelo menos a princípio, não parece romper com outras formas de interpretação teórica que também tenham nas questões urbanas seu objeto. Os problemas, no entanto, começam quando se distanciam do espaço em que foram produzidos e do movimento histórico que lhes deu origem.

Realizados no final da década de 90, uma segunda geração de estudos transpôs o

conceito de cidade global para as metrópoles então consideradas de segunda ordem (Marques e Torres, 1997), embora isto não fosse propriamente uma

novidade, uma vez que um dos pioneiros desse tipo de análise já as tivesse incluído em sua classificação de cidades globais (Levy, 1997:39). A partir daí, o conceito de

cidade global adquire uma nova forma que, desde já, pode ser designada de

forma típico-ideal (Véras, 1997: 131). É nesse segundo momento, então, que a

metrópole de São Paulo passará a configurar entre as possíveis cidades globais.246 (grifos nossos)

É importante, portanto, perceber que a vontade de se tornar ou de se parecer com uma cidade-global que acomete a governos municipais e estaduais de São Paulo em conjunção com empresas privadas – e não só São Paulo, como pudemos ver pelos exemplos do Rio de Janeiro – não é o suficiente para que se obtenha de fato uma cidade-global. Se as cidades não passaram pelos mesmos processos históricos, elas não têm condições de apresentar as características de uma cidade-global, como aquelas que as cidades de Nova Iorque, Tóquio ou Londres possuem. Por outro lado, os dois grupos têm muitas coisas em comum e, com base nesse fato, parte-se para a invenção de uma imagem de cidade global, em ambos os casos. A criação de uma paisagem cenograficamente iluminada de um edifício pós-moderno para aparecer numa fotografia que geralmente pouco se assemelha às vistas usuais da cidade que tem a maioria de seus habitantes nos mais diferentes horários do dia parece ser o que se busca e a obtenção de tal imagem parece bastar. Entretanto, para que essa imagem de cartão-postal –

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Cf. nota 20.

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que é mera fachada – se sustente no cotidiano dos centros é necessário expulsar, proibir, banir e muitas vezes matar uma parte da população que não condiz com esse ideal, conforme, infelizmente, é frequentemente noticiado em quaisquer meios de comunicação – o ataque a moradores de ruas, é apenas um exemplo.

Mas se esses investimentos que se pretendem atrair não poderão beneficiar quem mais dele precisa, qual o sentido desses investimentos? Que tipos de empregos eles geram? Que situações criam? Podemos observar essa lógica desenvolvimentista, ao proceder à leitura dos dois excertos a seguir, extraídos do artigo247 de Rodrigo Nunes, que pergunta:

A questão é: se a atual ênfase em "ser grande" – evidenciada nos mega-projetos, mas também na política do BNDES de investir na criação de "campeões brasileiros" (transnacionais em setores como alimentos e mineração) – significa reforçar a fórmula de "crescer" na esteira desses grandes grupos econômicos, não se está pondo o país num rumo que, no longo prazo, acabará desfazendo o que se conquistou na última década?

Logo depois, ele afirma:

O que a renovada paixão desenvolvimentista pelos mega-projetos delineia de forma clara é, justamente, como o meio-ambiente é, antes de tudo, uma questão social. O "crescimento" trazido pela Copa ou pelas grandes hidrelétricas é feito em nome dos pobres: energia para acompanhar o aumento do poder de compra, geração de emprego e renda, melhorias de infra-estrutura. Mas ele acontece às custas de quem? Quem são as comunidades removidas para que a terra que ocupam há décadas seja entregue a especuladores privados, que as transformarão em residências e espaços comerciais onde os antigos moradores não poderão entrar? Quem são os milhares que atravessam o país para ir a Jirau, sujeitar-se a condições ilegais e humilhantes, enquanto as construtoras se escoram no argumento de que o PAC não pode parar para aumentar custos e "flexibilizar" as relações de trabalho e o cumprimento de condicionantes sócio-ambientais? Quem são os outros milhares removidos pela alagação (em Altamira) ou perda de vazão (Volta Grande do Xingu) causadas por Belo Monte – aqueles que já estão sofrendo o impacto da chegada dos que vêm de fora (aumento de alugueis e preços, escasseamento dos serviços públicos, criminalidade) sem que as obras de infra-estrutura previstas como condicionantes tenham sequer iniciado? Enquanto ficamos no âmbito dos números – tantos bilhões de investimento, tantos megawatts produzidos –, o que desaparece é a maneira como esse "crescimento" distribui benesses e prejuízos de maneira desigual.

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Apesar de todas as tentativas dessa administração buscando incentivar a população de classe média a montar escritórios na região, oferecendo inclusive benefícios de renúncia fiscal para quem tivesse interesse, poucos são os interessados de fato. De acordo com matéria de maio de 2010248, apesar do benefício de quase 350 mil reais, apenas duas empresas são atualmente contempladas com o benefício da renúncia fiscal oferecido pelo projeto e elas já se localizavam na região antes do início do projeto: a Fess Kobbi Assessoria de Marketing e Comunicação Ltda. e a Klar Indústria de Comércio de Elétrico Eletrônicos Ltda., que, inclusive, pertencem ao mesmo grupo.

A estigmatização da região, também difundida pelos meios de comunicação, é tão grande que nem a própria classe média tem interesse em iniciar a ocupação da região, cujo processo gentrificador, caso se consume, deverá ser lento, pois as camadas mais ricas da população ainda preferem permanecer onde inexistam quaisquer rastros de “falhas e problemas” – situação cuja possibilidade ainda continua como uma miragem. Por outro lado, a previsão é de que o projeto se conclua em 2020 e, levando-se em consideração os praticamente inevitáveis atrasos e demoras em projetos e obras desse porte, ainda resta bastante tempo para que seja de fato concluído, atinja seus objetivos de expulsar os moradores pobres do local e a classe média volte a se interessar pela região.

O que podemos observar na matéria intitulada "Ninguém quer mudar para a Nova Luz"249 é que esse era considerado um projeto "ambicioso":

Passados 33 meses do início do projeto de incentivos fiscais para atrair empresas para a cracolândia, no centro da capital, ainda não há empreendedores que tenham se interessado em se mudar para a área. E as duas únicas empresas que pediram os incentivos – na verdade, ambas já eram de lá antes da regulamentação do projeto – ainda não receberam desconto de impostos prometidos pela Prefeitura.250

[...]

O balanço do projeto "Nova Luz", como a Prefeitura chama a proposta de renovar a área, mostra demora da gestão Gilberto Kassab (DEM) em prosseguir com a ambiciosa meta de transformar a cracolândia – região entre as estações Luz e Júlio

248 "Prefeitura dá incentivo fiscal de quase R$ 350 mil para empresas que se mudaram para a Cracolândia"

publicada em 12 de maio de 2010 no portal online de notícias R7.

(Disponível em: <http://noticias.r7.com/sao-paulo/noticias/prefeitura-concede-incentivo-fiscal-de-quase-r- 350-mil-para-e mpresas-que-se-mudara m-para -a-craco landia-20100512.html>. Acesso em: jul. 2012)

249

Publicada em 19 de abril de 2010 no Jornal da Tarde.

(Disponível em: <http://txt.jt.com.br/editorias/2010/04/19/ger-1.94.4.20100419.1.1.xml>. Acesso em: jul. 2012)

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Prestes e a Avenida Rio Branco, símbolo da degradação do centro – em um polo empresarial e local atrativo para moradores.

Assim como pelo fato de não haver vontade por parte da classe média de habitar o centro da cidade, o processo de gentrificação torna-se difícil também por conta da resistência encontrada por parte dos que já estão no bairro, de acordo com Maricato:

Dificilmente, durante nossa curta existência, assistiremos disputa mais explícita que esta, que opõe prefeitura e Câmara Municipal de São Paulo (além do governo estadual), que representam os interesses do mercado imobiliário, contra os moradores e usuários pobres, pelo acesso ao centro antigo de São Paulo. Trata-se do único lugar na cidade onde os interesses de todas as partes (mercado imobiliário, prefeitura, Câmara Municipal, comerciantes locais, movimentos de luta por moradia, moradores de cortiços, moradores de favelas, recicladores, ambulantes, moradores de rua, dependentes químicos, e outros) estão muito claros, e os pobres não estão aceitando passivamente a expulsão.

No restante da cidade, como em todas as metrópoles brasileiras, um furacão imobiliário revoluciona bairros residenciais e até mesmo as periferias distantes, empurrando os pobres para além dos antigos limites, insuflado pelos recursos do Minha Casa Minha Vida no contexto de total falta de regulação fundiária/imobiliária ou, em outras palavras, de planejamento urbano por parte dos municípios. A especulação corre solta, auxiliada por políticas públicas que identificam valorização imobiliária como progresso.

Ao contrário do silêncio (ou protestos pontuais) que acompanha essa escandalosa especulação que, a partir de 2010, levou à multiplicação dos preços dos imóveis, em todo o país, no centro de São Paulo, foi deflagrada uma guerra de classes.251