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3. Cultura e gentrificação nas cidades

4.11 SPLAC

O Salão de Placas Imobiliárias (Splac) foi uma ação proposta pelo grupo organizador do EIA e realizada em parceria com diversos outros coletivos, como o Ateliê Coringa e o Grupo Antipublicidade Abusiva (Gapa306), bem como com a ajuda de diversos indivíduos e essa realização levou a diferentes desdobramentos. Para se compreender o início do projeto, é importante observar que durante a semana de imersão de 2004 houve um acontecimento que certamente disparou a invenção do Splac (assim como os diversos movimentos e ações antipublicidade que vinham sendo realizados por coletivos e indivíduos reunidos num grupo autointitulado Gapa). E foi uma ação chamada Martelada, enviada por um grupo que não pôde comparecer, que foi realizada pelos presentes durante a semana de imersão em 2004. A ação consistia em interferir nas placas de anúncios de empreendimentos imobiliários, apagando as informações de forma a inutilizá-las. Uma quantidade enorme de placas foram retiradas, pintadas e sofreram interferências ao longo de toda a Avenida Pompeia, local onde há uma grande quantidade de prédios sendo continuamente construídos e colocados à venda. No dia seguinte, entretanto, todas as placas foram repostas, levantando uma série de dúvidas a respeito de sua instalação e sua pronta manutenção.

Observando a legislação, chegou-se à conclusão de que eram absolutamente ilegais, pois diversas leis impunham não apenas autorizações, mas também distâncias mínimas da calçada e várias outras exigências que eram visivelmente desrespeitadas: como a de não atrapalhar a visão dos motoristas nem a circulação dos pedestres. Assim, compreendeu-se legítima a ação de retirá-las e dar-lhes algum outro uso. E fez-se uma chamada pública para o Salão de Placas Imobiliárias.

O Splac propunha três dias de ação durante o fim de semana. No primeiro dia (uma sexta-feira

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Sigla "guarda chuva" de pessoas ou projetos que queriam manter sua anonimidade sem comprometer a sua inscrição em um contexto/discurso. A idéia era que qualquer um pudesse usar dentro do contexto antipublicidade da época.

175 à noite), o objetivo era recolher o máximo de cavaletes com propagandas imobiliárias irregulares de "novos empreendimentos" imobiliários da Avenida Pompeia e região, na zona oeste de São Paulo, o que foi realizado em grupo. As placas foram removidas e levadas por aqueles que compareceram ao chamado até o Ateliê Coringa, localizado também na zona oeste. No dia seguinte, um sábado, foram efetuadas as alterações e/ou trabalhos artísticos sobre e com as placas retiradas no espaço cedido pelo Ateliê Coringa. No último dia de ação, um domingo, foram expostas numa praça pública na Rua Cornélia. No total, foram retiradas, transformadas e expostas cerca de oitenta placas, que se transformaram em pinturas variadas, muitas pequenas casas, uma espreguiçadeira, uma jukebox improvisada.

Foto 16 – Desenho, parte do chamamento para a retirada e intervenções nas placas

Por: Chico Linares. Fonte: Arquivo Pessoal.

Em setembro do mesmo ano, ou seja, dois meses depois, os cavaletes de anúncios imobiliários foram proibidos307 na cidade pelo prefeito José Serra, medida que ficaria valendo a partir de outubro com a alegação de que havia denúncias de corrupção relacionadas a essa prática. Mas essa proibição, que hoje também pode ser vista como um prenúncio da Lei Cidade Limpa

307

Matéria: "Prefeitura proíbe cavaletes de anúncios imobiliários", do Estado de São Paulo, 10 de setembro de 2005. (Indisponível . Acesso em 2010.)

176 tornada vigente na administração do prefeito Gilberto Kassab, em vez de conseguir retirar totalmente as placas imobiliárias das ruas, calçadas, canteiros e outros locais proibidos, levou a uma situação ainda mais complexa que se dissemina por diversas outras cidades e pelas ruas de São Paulo, mesmo havendo a Lei Cidade Limpa (que proíbe outdoors e limita diversas formas de publicidade, incluindo o tamanho do nome de um estabelecimento comercial): o surgimento de um tipo de trabalho tão mal remunerado quanto insalubre – o de segurar placas durante todo o dia nas ruas e esquinas da cidade para que possam continuar existindo, mesmo com a proibição.

Posteriormente, o coletivo Elefante utilizou-se dessas mesmas placas para realizar uma "barricada simbólica" com o intuito de resistir à invasão da polícia para despejar a Ocupação Plínio Ramos, citada na seção 3. Esse despejo foi especialmente violento, infringindo os direitos humanos de diversas formas, de acordo com dossiê realizado pelo Fórum Centro Vivo, segundo o qual a polícia usou spray de pimenta contra muitas pessoas que estavam sentadas no chão, em frente à ocupação.

De acordo com vídeo do grupo, intitulado Barricada Dignidade308, "o objetivo era uma imagem que ocupasse a grande mídia e o espaço público confrontando a iminente invasão da polícia" e que continua afirmado "se as autoridades fossem invadir a ocupação, teriam de investir contra a dignidade", o que de fato aconteceu. Ainda segundo o vídeo, "a barricada original foi apreendida pela polícia durante a desocupação do edifício na rua Plínio Ramos".

A partir desse relato encontrado no vídeo, é importante notar que a criação de imagens e situações que pudessem atrair a grande mídia para o que acontecia nas ocupações foi algo de intensa preocupação dos artistas que se envolveram nesse processo e não se dava em busca de mera divulgação do próprio trabalho, mas sim como uma forma de fazer com que a mídia fosse obrigada a falar de algo que não pretendia, motivo pelo qual tentavam produzir imagens que não pudessem ser ignoradas pelo meios de comunicação ou que neles entrassem acidentalmente. Também é importante lembrar que, apesar de haver diversos escritos, matérias e artigos publicados em blogs e em canais de notícias independentes ou menores, a grande mídia – como emissoras de televisão e jornais – praticamente ignorava o assunto e, quando esse aparecia, era geralmente tratado de forma a culpabilizar e atacar os próprios moradores e não a política de gentrificação que acontecia (e se

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Vídeo Barricada Dignidade, de 2005/2006.

177 intensifica nos dias de hoje) no centro de São Paulo. (Um grupo que entendemos atualmente fazer boa utilização dessa tática de subversão e desvio dos meios de comunicação é o grupo Frente 3 de Fevereiro, com as aparições que já obtiveram de frases como "Know-Go Area", "Brasil Negro Salve" e "Onde estão os negros?" em diversos meios de comunicação em diversos e importantes jogos de futebol no Brasil e no mundo.309)

Essa forma de tentar desviar os meios de comunicação foi algo que, de alguma forma, com a mobilização dos moradores, dos artistas e do próprio movimento, em conjunto, foi sendo aos poucos conseguido – ainda que não seja possível afirmar que foi de fato conseguida – à medida que figuras importantes da cultura passaram a visitar a ocupação e demonstrar apoio a ela, como José Mindlin e Aziz Ab'Saber, que doa livros para a biblioteca. Segundo Ab'Saber: "É inusitado um lugar de invasão ter uma biblioteca deste tamanho e tão bem organizada". Se a palavra invasão hoje, pelo menos no âmbito daqueles que apoiam as ocupações e sua legitimidade, já soa estranha, certamente isso é fruto de uma luta conjunta de várias pessoas, tanto do movimento e da ocupação, como também daqueles que com elas se envolveram, buscando formas de compreender a legitimidade dessa luta, assim como sua importância e necessidade para que diversos problemas de fato da cidade (esses sim, os problemas, e não a população pobre: como questões de transporte, trânsito, e poluição, para citar alguns exemplos) pudessem ser até minimizados. Por exemplo, uma melhor distribuição das pessoas pela cidade seria possível com a ocupação do centro por parte da população que se aglomera nas periferias de modo a diminuir a quantidade de deslocamentos.

Posteriormente, novas placas com a mesma palavra Dignidade foram refeitas e levadas para a Ocupação Prestes Maia, outra das citadas na seção 3, que também sofreu despejo durante a administração de Gilberto Kassab, também localizada no bairro da Luz, em direta relação com o projeto de gentrificação chamado Nova Luz.