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1 REVISÃO DA LITERATURA

1.3 Pressupostos sobre fonologia: a sílaba

1.3.2 A sílaba em português brasileiro (PB)

CAMARA JR. (1969) analisa a sílaba como um elemento funcional que, na enunciação, apresenta um momento ascensional, um momento de plenitude e um momento de descensão, ou seja, um aclive, um ápice e um declive. Ao ápice corresponde a emissão de uma vogal, que constitui um segmento ‘silábico’. Os fonemas do aclive e do declive são considerados ‘assilábicos’ e podem estar ausentes na sílaba.

Para CAMARA JR. (1969:26), a sílaba na língua portuguesa se apresenta em três estruturas fundamentais: sílaba simples, V, como em é; sílaba complexa aberta, CV, como em pé; e sílaba complexa fechada, VC ou CVC, como em ás e par.

O autor observa que, no aclive simples, todas as consoantes da língua podem aparecer. Pode haver, no entanto, a ocorrência de duas consoantes no aclive; nesse caso, a segunda delas é sempre /r/, /l/, ou um glide. O /N/, em casos como pneu, é tratado pelo autor como

7 Optou-se por usar no restante do trabalho o termo condição de boa-formação (cf. ITÔ, 1986) para se referir a condições/filtros/regras que militam sobre cada posição do molde silábico.

aclive de uma sílaba diferente da consoante antecedente. Nesse exemplo, o /p/ é considerado aclive de uma nova sílaba, cujo ápice é preenchido por uma vogal epentética.

Com relação ao declive da sílaba, CAMARA JR. (1969) diz que sílabas fechadas (ou travadas) são menos frequentes na língua e têm uma limitação muito grande com relação às consoantes que figuram no declive. As consoantes admitidas após o ápice, segundo o autor, são /l/ mal, /r/ mar, /S/ paz e /N/ sim, bem como os glides /y/ sei e /w/ seu. As consoantes

oclusivas e as fricativas /f/ e /v/, portanto, não ocorrem no declive. Nesse sentido, o /k/ que ocorre em pacto e o /f/ que ocorre em afta constituem aclive de uma nova sílaba, cujo ápice corresponde a uma vogal epentética.

COLLISCHONN (1997), com base nas teorias que admitem a existência de templates para as sílabas nas línguas, relacionou todos os padrões silábicos encontrados na língua portuguesa. A relação completa desses padrões pode ser verificada em [10].

[10] V é, aberto CV cá, palito CCV pré, aflito CVC mar, peste VC ar, ontem CCVC três, grande CVCC perspicaz CCVCC transpor, trens VCC instante CVV pai, reino CCVV grau, frei VV oito, aurora CCVVC graus, claustro CVVC mais, cáustico VVC eis, austríaco Adaptado de COLLISCHONN (1997:77)

COLLISCHONN (1997) constata que, no ataque da sílaba, pode haver até duas consoantes. Para dar conta dos das restrições que se aplicam nos casos em que as duas consoantes aparecem simultaneamente na língua em onset, a autora postula duas condições de ataque complexo, que atuam em conjunto: 1ª. Se um ataque for constituído de dois elementos, o primeiro deve ser [-soante] (oclusivo) e o segundo [+aproximante] (líquida); 2ª. Se um ataque for constituído de duas casas, então o segmento da primeira casa não pode estar associado a [+coronal] e [+contínuo] simultaneamente (ou seja, não pode ser /s,z, , /).

Para a coda da sílaba, COLLISCHONN (1997) admite a existência de duas posições temporais: na primeira podem estar semivogais, líquidas ou nasais, ao passo que, na segunda, aparecem apenas sibilantes (como em trens, CCVCC). A autora defende, portanto, a existência de duas posições na coda, que são controladas por três condições que atuam em cooperação: 1ª um elemento na coda não deve ser ao mesmo tempo [-soante,-contínuo] (ou seja, não deve ser oclusivo); 2ª se há um segmento [-vocoide] na coda, este deve ser [+coronal,+anterior] (o que exclui /m,f,v,x, , , , , / e permite apenas glides, nasais, líquidas e sibilantes na coda); 3ª havendo dois elementos na coda, o segundo é obrigatoriamente [-soante] (i.é, /s/). COLLISCHONN (1997:103) destaca que essas condições “(...) determinam que, havendo uma sequência de duas oclusivas (como em apto), ou de oclusiva e nasal (como em ritmo), a primeira das duas consoantes não pode ser associada, o que cria o contexto para a epêntese.” Essa abordagem sobre epêntese é detalhada em 1.3.4.

BISOL (1999) igualmente pressupõe a existência de templates e apresenta um padrão silábico sintético CCVC (C) para o PB (em que o C parentético - /S/ - é resultado de uma regra particular). BISOL (1999) propõe, ademais, que a sílaba (σ) em PB se apresente sob a

forma de estrutura arbórea, tal como representado em [11].

[11] σ

(A) R

N (Cd)

Legenda: A: ataque soa: soante

(C) (C) V (C) R: rima nas: nasal

N: núcleo /S/: [s,z, , ] [+soa] [+soa] ou /S/ Cd: coda ( ): opcional [-nas]

Adaptado de BISOL (1999:703)

BISOL (1999) utiliza o mesmo tipo de representação de sílaba proposto por SELKIRK (1982) para o inglês (cf. 1.3.1.2 e 1.3.3). Seu principal argumento em admitir a existência de estruturas internas é que a distinção entre rimas simples e complexas que a ramificação de R representa é de grande importância para a descrição do acento em PB (e em outras línguas sensíveis ao peso da sílaba). Além disso, “(...) certas regras precisam referir-se aos constituintes silábicos ou a limites com eles relacionados, como a vocalização da lateral que ocorre somente em posição de coda (maL~maw), (...).” (BISOL, 1999:704).

A partir da pressuposição de princípios universais que atuam sobre a sílaba, BISOL (1999) propõe a existência de apenas dois tipos de condição de boa-formação: a Condição do Ataque e a Condição da Coda. A Condição do Ataque é representada pela autora da seguinte forma:

[12] Condição Positiva do Ataque Complexo Ataque

C C | |

[-cont] [+soa, -nas] [+cont, lab]

BISOL (1999:718)

Essa condição determina que, na primeira posição do ataque complexo, a consoante pode ser tanto [-contínua] (/p/ pra.to, /t/ tra.to, /k/ cra.vo, /b/ bra.ço, /d/ dra.ma, /g/ gra.ma)

como uma [+contínua, labial] (/f/ fra.co, /v/ li.vro). Na segunda posição, a consoante deve ser

simultaneamente [+soante] e [-nasal] (/l/, bloco, /r/ fre.vo). São excluídos por essa condição,

portanto, os clusters [sr], [sl], [zr], [zl], [ r], [ l], [ r], [ l], [xl] e [xr].8 As sequências de segmentos de sonoridade idêntica (obstruinte + obstruinte, ptose) ou vizinha (obstruinte +

nasal, pneu), acabam sendo rejeitadas dentro de uma mesma sílaba da língua, isso porque nela

atuam princípios universais (no caso de ptose, atua o Princípio de Sonoridade Sequencial, o qual determina que, entre qualquer membro de uma sílaba e o pico silábico, a sonoridade é crescente9). A epêntese atestada em p[i]tose e p[i]neu é, sob esse aspecto, uma forma de reparo à uma sílaba malformada em PB (cf. 1.3.4).

A segunda condição de sílaba segundo BISOL (1999) é a Condição da Coda. A representação dessa condição é apresentada em [13].

8 Os encontros /dl/ e /vl/, embora sejam permitidos por essa condição, não são atestados em PB (a não ser em raros nomes próprios, como Adler e Vladimir, e na fronteira entre prefixo e base, como em adligação). BISOL (1999) interpretou esses encontros como grupos vazios no sistema, abertos a empréstimos ou a palavras novas. 9 A apresentação desse Princípio (Sonority Sequencing Principle) é feita originalmente por CLEMENTS (1990), que propõe a existência da Escala de Sonoridade, na qual os segmentos apresentam diferentes graus de sonoridade, de acordo com a seguinte ordem: vogais > líquidas/glides > nasais > fricativas > oclusivas.

[13] Condição da Coda *C ] σ

|

[-soante], exceto /S/

BISOL (1999:720)

Essa condição negativa proíbe a ocorrência de obstruintes (exceto /S/) e permite a ocorrência de glides (pai), líquidas (par) e nasais (sem) na coda. Essa condição, no entanto,

não dá conta de casos como graus, que apresentam duas posições na coda.

BISOL (1999) postula, pois, a existência de apenas uma posição C na coda do template canônico (CCVC). Segundo a autora, a presença do segundo C em sílabas como VCC (austríaco)10, CCVCC (graus) etc. corresponde sempre a um /S/ que é adjungido por

meio de uma regra adicional, denominada Regra de Adjunção de /S/ (RAS), que determina: “Acrescente /S/ à rima bem formada.” (BISOL, 1999:704). A RAS e a Condição da Coda juntas, portanto, dão conta das possibilidades restritas de segmentos admitidos na coda de sílabas do PB. Segmentos que não respeitam essas condições podem ser ‘salvos’ através de reparos silábicos, como é o caso atestado em vocábulos com epêntese vocálica (cf. 1.3.4).