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Existe, de fato, uma crise na saúde, em todo o mundo e que ela é, acima de tudo., uma crise de sustentabilidade, mas é possível uma solução para ela. Neste sentido, uma série de desafios hoje se colocam no horizonte próximo dos sistemas de saúde, por exemplo, de índole demográfica, com o aparecimento de cada vez mais pacientes portadores de condições crônicas, além de acometimento dos mesmos por múltiplas patologias.

Do ponto de vista epidemiológico, tomando por base o caso do País Basco, demonstra-se uma profunda mudança no padrão de adoecimento da população, com as doenças infecciosas e parasitá- rias sendo radicalmente substituídas pelas condições crônicas, particularmente da doença cardiovas- cular, além do trauma. Ao mesmo tempo, revelam-se cifras verdadeiramente espantosas em termos do incremento da complexidade dos procedimentos clínicos.

Existe ainda o cortejo de problemas gerados pela extrema fragmentação assistencial vigente nos sistemas de saúde contemporâneos, cuja consequência mais visível é pode ser traduzida por uma metáfora mecânica: “como pode uma estrutura (chassis) dos anos 70 dar conta da medicina necessária ao século XXI?”.

Também deve ser levada em consideração a mudança radical das expectativas dos cidadãos face aos sistemas de saúde que lhe são oferecidos, bem como da escalada de custos verificada em todo o mundo, distanciando cada vez mais os orçamentos restritos disponíveis e os gastos crescen- tes reais.

Revelação impactante e altamente preocupante é a de que, nos sistemas de saúde atuais, apenas 14% dos pacientes portadores de condições crônicas e complexas, ou algo próximo disso, consomem nada menos de que 46% do gasto total.

Um quadro impressionante da medicina contemporânea, em termos de sua complexidadee de suas cifras é a revelação de que o arsenal da mesma é constituído por nada menos do que mais de 13 mil possibilidades diagnósticas, cerca de quatro mil procedimentos cirúrgicos, seis mil variedades de medicamentos, 20 milhões de atos clínicos, resultando no envolvimento de, em média, 22 profis- sionais para cada paciente atendido.

Contrastam com este quadro as fortes evidências da ineficácia de muito do que se faz no universo dos sistemas de saúde. Assim, por exemplo, a proporção de segundas consultas (para o mesmo tipo de problema, em prazo curto definido) é muito expressiva, crescendo proporcionalmen- te com o número de condições que o paciente apresenta, chegando aos 70% nos casos de mais de seis patologias.

Questão associada é a da segurança clínica e qualidade dos atendimentos, também preocu- pante e pouco desenvolvida nas organizações de saúde atuais, totalmente despreparadas ou plane- jadas para enfrentar tal leque de desafios.

O que fazer? Existem caminhos e soluções viáveis, que devem partir, entretanto, da concep- ção de que problemas complexos não se resolvem com medidas simplistas, ao contrário, que sejam conduzidas de forma multidimensional, não havendo para tanto “varinhas de condão”. Assim, como princípios de tais mudanças, em primeiro lugar, o enunciado de novos discursos e novas análises dos cenários presentes, além do desenvolvimento de novas ferramentas, coerentes com os desa- fios a enfrentar.

Questão considerada fundamental, ainda, é a de promover novos arranjos de liderança, com poder mais distribuído, mediante estratégias participativase colaborativas, que envolvam decidida- mente os profissionais de saúde.

O referido “novo discurso” envolveria não só uma definição de prazo, no exemplo presente, com foco nas doenças crônicas no contexto da Euskadi (País Basco), cerca de três anos, bem como etapas de definição das estratégias a serem utilizadas, de desenvolvimento e acompanhamento de projetos, até que surjam resultados concretos a serem avaliados.

A gestão de tais processos de mudança deve contemplar duas agendas simultâneas, de- monstradas através de uma metáfora com árvores frutíferas. No primeiro caso, a ênfase é em uma cultura de resistência, que não altera substancialmente o status quo, resultando em frutos mais facilmente alcançáveis, mas originados de plantas pouco produtivas. No segundo caso, em que predomina uma cultura de mudança e transformação efetivas, com alterações mais profundas na situação de base, os frutos serão de mais difícil colheita, porém gerados por plantas bem mais produtivas.

Em outras palavras, trata-se de uma gestão simultânea das crises e das transformações ne- cessárias nos sistemas de saúde. No primeiro caso (gestão de crise), cumpre antes de tudo produzir ajustes, mediante estratégias de curto prazo, por exemplo, em termos de políticas de insumos, re- cursos humanos e salários, bem como tecnologias, item em relação ao qual muitas vezes torna-se preciso reverter o processo de financiamento habitual. O segundo caso implica em transformar, de fato, mediante estratégias de médio prazo, o modelo assistencial vigente, envolvendo, entre outras medidas a gestão proativa de crônicos, o desenvolvimento de estratégias integradas de cuidado e o empoderamento decidido de pacientes.

Há que estar atento, também, aos múltiplos e potenciais pontos de intervenção ao logo do continuum da doença. Por exemplo, nas etapas de prevenção, cuidado precoce e tardio, além da rea- bilitação, tendo como substrato conceitual os determinantes sociais de saúde.

A análise deve contemplar, também, um horizonte mais amplo do que o da simples contenção de despesas, elevando e qualificando o patamar das medidas a serem adotadas, como políticas efeti- vas e não como simples programas. Abre-se, assim, espaço para uma visão de futuro, que contemple não só os meios de se chegar lá, mas também as estruturas, com definições estratégicas de direção das mudanças,estabilidade face ao ambiente de crise no qual se está trabalhando, além de coesão na participação dos atores, dentro de um projeto comum.

A construção de estruturas lógicas (frameworks) possibilita, entre outros aspectos, o desenvol- vimento de uma visão realmente sistêmica, englobando a ação pública e privada, utilizando como fer- ramentas, por exemplo, a estratificação de risco e conceitos diversos como os de “paciente ativado”, interações produtivas, proatividade das equipes de saúde, busca de resultados, inserçãocomunitária, entre outros. Ciclos virtuosos, portanto, devem ser estabelecidos entre a saúde da população, a atu- ação medica e a eficiência operacional.

Na situação presente no País Basco, a estimativa é de 100% de populaçãojá estratificada, resultando em pouco mais de 43 mil pessoas em situação de gestão de caso; 173 mil em gestão de enfermidade; 636 mil em apoio à autogestão e 2,26 milhões em prevenção e promoção de saúde.

Para ser de fato coerente e útil para a saúde da população, a estratégia de mudança deve se originar não da lógica privada da gestão ou da simples contenção de gasto, mas deve estar, acima de tudo, sintonizada com as necessidades dos pacientes. Neste aspecto, um apanhado de processos de mudança recentes mostra, por exemplo, que no EUA (Obamacare) o foco é mais restrito em cobrir apenas os não segurados; na Escócia, em segurança clínica; na província basca recai nas doenças crônicas. Respostas de fato multidimensionais devem ser coerentes com a análise feita, envolvendo intervenções tanto de cima para baixo como de baixo para cima.

No primeiro caso (de cima para baixo), o foco está em intervenções mais padronizadas, com apoio em processos de estratificação e ações variadas, tais como, centro de cuidados “multicanal”, unificação de histórias clínicas, receituário eletrônico, dentro de uma lógica de financiamento por

contratualização. No caso seguinte, o que mais importa é o empoderamento dos pacientes, com forte apoio do pessoal de enfermagem, atividades de prevenção e promoção, criação de hospitais de suba- gudos, mediante lógicas de coordenação social e sanitária e integração assistencial.

A principal alavanca para tais processos é o que se denomina de “ativação dos pacientes”, mediante informação e empoderamento dos mesmos, o que resulta não só em maior qualidade do serviço oferecido, como também em redução de custos assistenciais, da ordem de até 21%. Tal pro- cesso de ativação de pacientes envolve uma escala de mensuração do sucesso obtido, variando de 1 a 13, ou seja, desde pacientes que não consideram sua atividade como um fator importante e outros aos quais falta confiança e conhecimento para tomarem as rédeas da ação, até aqueles pacientes, de pontuação mais elevada, já aptos a iniciar sua caminhada ativa e manter tal comportamento ao longo do tempo.

Demonstra-se, através de estudos, como é o caso de um realizado pela Universidade do Oregon (EUA) em 2004, que o grau de adesão aos planos terapêuticos, em relação a quatro condições crô- nicas (diabetes, hipertensão, hipercolesterolemia e doença cardíaca), é substancialmente maior nos pacientes que alcançam os níveis superiores da escala de ativação referida acima.

São necessárias, também,mudanças nos processos de pagamento e custeio em saúde, por meio da procura da solução mais adequada, apontando-se quatro categorias principais de pagamento (por ato, por capitação, por conjunto de procedimentos, além de globalizado).

Em suma, os sistemas de saúde atuais não atendemàs necessidades presentes no cenário, não constituindo nem mesmo um real “sistema”, centrados que estão na gestão de estruturas e não na gestão de sistemas”. Assim, o caráter fragmentado, reagente e paternalista vigente deve ser substituí- do por outro, no qual exista continuidade dos cuidados, antecipação (proatividade), responsabilização e capacitação de pacientes, além da total Integração entre hospitais e unidades de atenção primaria a saúde (APS). Referência neste aspecto é o estudo realizado pelo Northern California ALL Program, nos quais são visíveis os resultados referentes à redução significativa acidentes vasculares cerebrais entre 1997 e 2008.

Há também o caso do Promic, no País Basco, de gestão de caso em doenças cardíacas, no qual, mediante coordenação entre hospitais de agudos e unidades de atenção primaria a saúde, com forte atuação de enfermeiros e grande foco na promoção do autoatendimento, ocorreu significativa melho- ria de indicadores, por exemplo, nas taxas de incidência, no tempo de sobrevivênciae na redução no risco de morte ou readmissãode pacientes, além de redução de custos.

A participação nas decisões dos profissionais do setor é aspecto essencial e deve ser obtida a partir do pressuposto de que as respostas já podem estar presentes entre a própria comunidade la- boral, não fora dela e de que é importante criar estruturas de trabalho que promovam a participação, de baixo para cima, para o que processos de autodescoberta constituem aspecto essencial, mais do que a realização de projetos piloto isolados.

Finalizando, existem, de fato, soluções para os problemas dos sistemas de saúde, embora algu- mas vezes pareça que aquelas frutas doces mencionadas na metáfora das árvores estejam um pouco mais altas, mas ainda assim alcançáveis.

LUIZ AUGUSTO FACCHINI