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CAPÍTULO 2 – SÚMULAS

2.4 SÚMULA: NATUREZA JURÍDICA

2.4.1 Súmula: norma jurídica geral e abstrata

Durante os séculos XVIII e XIX, por influência da Ecole de l’Exégèse,

imperou em nosso país uma concepção jurídica absolutamente formalista, cognitivista222. Neste contexto, segundo Daniel Mitidiero223

221 JANSEN, Rodrigo. A súmula vinculante como norma jurídica. Revista dos Tribunais. São Paulo, RT, ano 94, v. 838, agosto de 2005. p. 54. Para Elival da Silva Ramos, “[...] importa, contudo, precisar melhor a natureza dos enunciados sumulares vinculativos. Não se trata aqui de ato legislativo, quer em sentido formal, quer em sentido material, por atuarem as súmulas em nível hierárquico inferior àquele em que se manifesta o exercício da função legislativa.” (Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 297).

222

“O positivismo jurídico é tributário dessa concepção de direito, pois, partindo da ideia de que o direito se resume à lei, e, assim, é fruto exclusivo das casas legislativas, limita a atividade do jurista à descrição da lei e à busca da vontade do legislador”. MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do

101 Em geral, a cultura jurídica de Oitocentos, em parte por influência da Ecole de l’Exégèse, em parte por influência da Begriffsjurisprudenz, identificava o Direito como texto da legislação e o processo de sua produção e reconhecimento com um processo abstrato e puramente lógico-dedutivo, sendo resultado dessas opções a tendência da ciência jurídica a um alheamento da sua matriz cultural

Ao intérprete da norma não caberia nenhuma valoração ou escolha discricionária, devendo limitar-se a explicitar o seu significado, pré-existente à interpretação. Outras interpretações – além daquela que declara o conteúdo da lei – deveriam ser “descartadas”.

Nesse cenário, como o juiz, ao julgar o caso concreto, apenas reproduziria (sem criar) as normas editadas pelo legislador (único competente para tanto), suas decisões em nada acrescentariam ao ordenamento jurídico, devendo ficar restritas ao caso sub judice224.

Com o tempo, a objetividade da “teoria cognitivista (formalista)” – que via unidade semântica entre “texto” e “norma” – cedeu espaço para a “teoria da norma”225, em que referidos conceitos passaram a ser estudados separadamente e

não mais como se sinônimos fossem226.

223 MITIDIERO, Daniel. Cortes Superiores e Cortes Supremas

– Do Controle à Interpretação da Jurisprudência ao Precedente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 35.

224 Trata-se de modelo sustentado por Adolf Wach. Handbuch des deutschen Civilprozessrechts. Leipzig: Duncker & Humblot, 1885 e Piero Calamandrei. La Cassazione Civile – Disegno Generale dell’Instituto, 1920.

225 “Não é de surpreender que o século XIX tenha trazido uma reação contra esses conceitos idealizados e formalistas do Direito e de suas regras. F. Geny, na França; R. von Ihering e, mais tarde, a escola do ‘Freirechtsfindung’, na Alemanha; Salmond, e depois Allen, na Inglaterra, lançaram vários protestos contra as falsas premissas de qualquer teoria jurídica excessivamente formalista. Mas em nenhum outro lugar a reação foi mais enérgica do que nos Estados Unidos. Lá, J.C. Gray, O.W. Holmes e Roscoe Pound desferiram vários ataques contra a abordagem das ‘regras jurídicas ideiais’. Eles enfatizaram a necessidade de atenção às decisões reais e juridicamente prescritivas dos Tribunais.” MACCORMICK, Neil. In: MACEDO JR., Ronaldo Porto (Coord.), assinado por HART, Herbert Lionel Alphonsus. Ensaios sobre teoria do direito e filosofia. 2. ed. Rio de Janeiro: Campus Jurídico, 2010. (Coleção Teoria e Filosofia do Direito). p. 165-166.

226 Daniel Mitidiero, com fundamento nos ensinamentos de Giovanni Tarello e Ricardo Guastini, sustenta: “A inexistência de identidade entre texto e norma está em que a norma é o texto interpretado. Vale dizer: a norma é uma outorga de significado ao texto e a elementos não textuais da ordem jurídica, que são reconstruídos pela atividade do intérprete. É uma atribuição de sentido a um enunciado linguístico. [...] A oportunidade de distinção entre texto e norma é atribuída à potencial equivocidade de todos os enunciados linguísticos, de modo que entre texto e norma existe sempre uma atividade mediativa do intérprete que demanda individualizações, valorações e escolhas entre diferentes possibilidades de sentidos linguísticos para definição da norma”. (Cortes Superiores e

102 Segundo Riccardo Guastini227:

A primeira tese assume que as leis são dotadas de um significado intrínseco objetivo, e afirmam que os juízes criam o direito quando desatendem o referido significado, oferecendo interpretação ‘falsa’. Surpreendente ingenuidade. Infelizmente, não existe de fato um significado objetivo das leis. [Tradução nossa].

Contudo, sendo a “norma jurídica” a interpretação extraída do “texto legal”, há de se permitir criação, ou seja, diferentemente do que sustentavam os defensores da “teoria cognitivista”, o texto pode acabar revelando não apenas uma única norma (aquela ditada pelo intérprete), mas uma multiplicidade delas.

Essa multiplicidade de interpretações, contudo, pode ocorrer não porque se trata de texto legal mal redigido, mas sim porque a atividade interpretativa puramente lógica nem sempre é simples.

Fato é que o processo interpretativo vai além da declaração do significado do texto, constituindo uma escolha entre diversos outros significados que podem ser extraídos de um mesmo texto legal.

A respeito, é importante destacar, ainda que brevemente, os ensinamentos de Herbert Hart228, para quem, há casos em que é possível fazer a mera interpretação lógica do texto jurídico, em contrapartida, há situações em que a interpretação demandaria uma análise mais complexa, não podendo os juízes ficar limitados à tarefa exclusivamente dedutiva.

Faz sentido essa interpretação do citado autor, na medida em que nem sempre a linguagem do texto traz certeza. Mesmo quando é aparentemente clara e objetiva, diante de um caso concreto, pode gerar dúvida com relação a sua

227 GUASTINI, Riccardo. Se i giudici creano diritto. In: VIGNUDELLI, A. (Org.). Istituzioni e dinamiche

del diritto: I confini mobili della separazione dei poteri. Milano: Giuffrè, 2009. p. 391. No original: “La

prima tesi assume che i testi normativi siano dotati di un significato intrinseco oggettivo, e afferma che i giudici creano diritto quando disattendono tale significato, offrendo interpretazione ‘false’. Sorprendente ingenuità. Disgraziatamente non esiste affatto una cosa come il significato oggettivo dei testi normativi. Ogni testo normativo è almeno potenzialmente e almeno diacronicamente equivoco: sicché risulta semplicemente impossibile distinguere tra interpretazioni ‘vere’ e interpretazioni ‘false’. Quale mai dovrebbe essere il critério di verità delle tesi interpretative?”

228 HART, Hebert. O conceito de direito. (Com um pós-escrito editado por Penelope A. Bulloch e Joseph Raz). Trad. de A. Ribeiro Mendes. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. p. 332-337.

103 interpretação ou mesmo aplicação. Nestes casos, poderão estar presentes interpretações conflitantes, sem haver sobreposição de uma em relação à outra229.

A partir do momento em que a atividade interpretativa do juiz transcende à mera aplicação lógico-dedutiva do texto legal, há, aí, criação230. A criação de que se fala deve limitar-se ao pré-estabelecido no ordenamento jurídico pelos legisladores, mas, ainda assim, há atividade criativa do intérprete.

Nesse sentido, obtempera Miguel Reale Junior231:

A jurisprudência, muitas vezes, inova em matéria jurídica, estabelecendo normas que não se contêm estritamente na lei, mas resultam de uma construção obtida graças à conexão de dispositivos, até então considerados separadamente, ou, ao contrário, mediante a separação de preceitos por largo tempo unidos entre si. Nessas oportunidades, o juiz compõe, para o caso concreto, uma norma que vem completar o sistema objetivo do Direito.

Peculiar é o exemplo dado por Mauro Cappelletti232, em seu livro intitulado “Juízes legisladores?” O autor compara a atividade interpretativa e criativa com a música:

Toda reprodução e execução varia profundamente, entre outras influências, segundo a capacidade do intelecto e estado de alma do intérprete. Quem poderia comparar a execução musical de Arthur Rubinstein com a do nosso ruidoso vizinho? E, na verdade, quem poderia confundir as interpretações geniais de Rubinstein, com as também geniais, mas bem diversas, de Cartot, Gieseking ou de Horowitz?

229 HART, H.L.A. O conceito de direito. (Com um pós-escrito editado por Penelope A. Bulloch e Joseph Raz). p.165.

230

“Parece-nos que os hard cases que, muitas e muitas vezes, têm configuração única, autorizam o exercício da criatividade jurisdicional. Também podem os juízes criar quando o sistema não resolve expressa e explicitamente o problema posto ou o faz por meio de norma cujo sentido literal deva inexoravelmente ser, aos olhos do homem médio, definitivamente afastado. Na análise do caso, cria o juiz, quando está diante da aplicação de norma cuja tipologia seja daquelas que implique a análise de numerosos aspectos da situação fática subjacente, aspectos a que o texto da lei não alude expressamente, mas que a norma pede que sejam verificados no mundo empírico para fins de se saber se devem ou não incidir. [...]. Indubitavelmente, identificar, no mundo empírico, casos que seriam abrangidos por uma cláusula geral envolve certa dose de criatividade. No entanto, diante de casos fáceis, identificáveis no mundo dos fatos e disciplinados por normas que levam em conta poucos aspectos da realidade para incidir, e cuja interpretação pelos tribunais majoritariamente não divirja a respeito, espaço não há para a criatividade do juiz. Exercê-la seria agir como legislador”. WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Recurso especial, recurso extraordinário e ação rescisória, p. 134. 231 REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 168.

232 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Tradução Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999. p. 21.

104 Em rigor, quando o juiz cria (conforme se analisará na seção seguinte, não está, necessariamente, usurpando competência do Poder Legislativo), o que se observa é o fenômeno da inovação e, como tal, passa a integrar o sistema jurídico. A criação aqui suscitada pode ocorrer ou no julgamento de um caso concreto ou quando os tribunais, no exercício da função uniformizadora de entendimento, editam, por exemplo, súmulas.

As súmulas, como previstas no próprio dispositivo constitucional (art. 103- A), devem ser editadas quando houver “controvérsia” acerca de normas determinadas. O fato de uma súmula exigir controvérsia acerca do tema, salvo em situações teratológicas, é suficiente para concluir que a hipótese não trata de mera interpretação lógico-dedutiva, pois se assim fosse possivelmente não haveria divergência de entendimentos233. Bom exemplo é o da Súmula vinculante n. 12, que

dispõe – à luz do art. 206, inciso IV, da CF – sobre a inconstitucionalidade da cobrança de taxa de matrícula em universidades públicas. A conclusão sobre a inconstitucionalidade da súmula não foi unânime e quatro ministros consentiram a legalidade da referida cobrança234.

233 “Por mais que se considere a súmula como produto da interpretação de normas a ela preexistentes, não se pode perder de vista que a toda interpretação é inerente algum grau de criatividade, de modo que, ainda que a súmula contenha um enunciado que expresse a ratio

decidendi comum a todas as decisões reiteradas do Supremo Tribunal Federal sobre matéria

constitucional, as quais foram, elas próprias, na Constituição Federal fundamentadas, nem por isso a súmula deixará de criar o Direito, nem por isso deixará de ser norma e nem por isso poderá ser reduzida a mero esquema interpretativo”. JANSEN, Rodrigo. A súmula vinculante como norma jurídica. Revista dos Tribunais. São Paulo, RT, ano 94, v. 838, agosto 2005. p. 55.

234 A Ministra Carmen Lucia, por exemplo, fundamentou o seu voto no princípio da solidariedade. Assim consignou a magistrada: “Quando o Ministro Menezes Direito chama a atenção para o fato de que se tem que pagar esse serviço realmente com os impostos do Estado – e estou de acordo -, nem por isso se dispensa que quem mais recebe pode contribuir muito mais. Neste caso, entendo que o princípio da solidariedade, quanto mais num direito fundamentalíssimo, como é este da educação, que garante não apenas a liberdade, mas a libertação das pessoas de uma para outra condição, deixa de ser formal quando a sociedade comparece”. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 500.171-7. Pleno, Relator Min. Ricardo Lewandowski. Brasília, DF. Julgamento

13.08.2008. Publicação 24.10.2008. Disponível em:

<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=557455>. Acesso em: 26 out. 2013. O então Ministro Eros Grau, por sua vez, sustenta que “[...] há, sim, espaço constitucional para compatibilizar a ideia de gratuidade do ensino público com essas imposições que permitem às instituições universitárias subsidiar os mais carentes. Podíamos até eventualmente, se essa posição pudesse ou viesse a tornar-se majoritária, indicar as destinações eventuais desses recursos. Sabemos das dificuldades por que passam as instituições de ensino, por razões várias. O Ministro Cezar Peluso feriu esse tópico dizendo inclusive que há segurança quanto a essa informação, por conta do sucesso arrecadatório existente atualmente. Mas o fato é que, no que concerne à distribuição dos recursos orçamentários, as universidades são extremamente carentes. E se nós que militamos na universidade pública levarmos em conta as condições hoje existentes, sabemos que a

105 O dispositivo constitucional em comento garante a “gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais” e saber se a taxa de matrícula deve ou não estar abrangida por referido princípio não é tarefa simples, conforme se depreende da própria análise dos argumentos dos ministros quando discutiram o tema.

Diante disso, poder-se-ia afirmar que a edição da Súmula vinculante n. 12 trata de mero enunciado resultante da interpretação do disposto no texto constitucional (art. 206, inc. IV), à luz do caso concreto (cobrança de taxa de matrícula), sem qualquer atividade criativa por parte do Poder Judiciário?

A resposta que se eleva para tal questionamento é não. Bastaria, por exemplo, que os Ministros Carmem Lucia, Eros Grau, Celso de Mello e Gilmar Mendes fossem maioria no Plenário da Corte Suprema para que o entendimento fosse diametralmente oposto ao que ficou consignado no verbete, ou seja, à luz do mesmo dispositivo constitucional poder-se-ia ter um resultado diverso caso a maioria dos ministros invocasse algum fundamento distinto como, por exemplo, o “princípio da solidariedade”.

A edição deste verbete, portanto, é efetiva inovação jurídica de iniciativa do Poder Judiciário, que, à luz do caso concreto, interpretou dispositivo legal editando norma jurídica que, como tal, passa a integrar o sistema jurídico do país como “norma jurídica geral e abstrata”235.

Rodrigo Jansen236, com a seguinte lição, corrobora:

[...] contém um comando prescrevendo, proibindo ou facultando uma determinada conduta humana, tornada efetiva quando exigida

universidade pública é altamente excludente”. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 500.171-7. Pleno, Relator Min. Ricardo Lewandowski. Brasília, DF. Julgamento

13.08.2008. Publicação 24.10.2008. Disponível em:

<http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=557455>. Acesso em: 26 out. 2013.

235

“Um pouco à semelhança da função legislativa, põe-se, com ela (súmula), uma norma de caráter geral, abstrata, só que de natureza interpretativa”. PASSOS, José Joaquim Calmon de. Súmula vinculante. Genesis – Revista de Direito Processual Civil. Curitiba, Genesis, n. 6. 1997. p. 633, 637.

No mesmo sentido: “A súmula vinculante, da mesma forma que o assento português, se desvincula do(s) caso(s) que a originaram, ela se impõe como um texto normativo de vinculação geral e abstrata para casos futuros, tal qual a lei, possui dimensão atemporal, logo, duração indefinida, passando a ter validade após sua publicação na imprensa oficial”. ABBOUD, Georges. Jurisdição constitucional e

direitos fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 361.

236 JANSEN, Rodrigo. A súmula vinculante como norma jurídica. Revista dos Tribunais. São Paulo, RT, ano 94, v. 838, agosto 2005. p. 54.

106 perante o Poder Judiciário. Assim, a súmula vinculante é também uma norma jurídica. Será, todavia, à semelhança das leis, uma norma jurídica geral, eis que aplicável a todos indistintamente, e abstrata, enquanto endereçadas a quaisquer hipóteses presentes e futuras.

A súmula guarda, contudo, algumas diferenças com relação à lei, esta sim emanada do Poder Legislativo, único competente para tanto237.