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Súmulas como norma jurídica: violação à tripartição de poderes?

CAPÍTULO 2 – SÚMULAS

2.4 SÚMULA: NATUREZA JURÍDICA

2.4.2 Súmulas como norma jurídica: violação à tripartição de poderes?

O fato de a súmula, conforme sustentado, ser norma jurídica geral e abstrata, embora editada pelos tribunais238, leva à conclusão de que haveria, aí, hipótese clara de violação ao princípio constitucional239 da tripartição de poderes.

Isso porque, em última análise, ao Judiciário se conferiria o poder de efetivamente legislar, o que, de acordo com a Constituição Federal, é competência exclusiva do Legislativo.

Inúmeros são os doutrinadores que assim entendem240, como é o caso de

Rubens Approbato Machado241:

237 Sobre este aspecto, Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco, com fundamento nos ensinamentos na teoria pura do direito, de Hans Kelsen, anotam: “É de Kelsen o esclarecimento de que a função criadora do direito dos tribunais, existente em todas as circunstâncias, surge com particular evidência quando um tribunal recebe competência para produzir também normas gerais por meio de decisões com força de precedentes. Conferir a tal decisão caráter de precedente é tão só um alargamento coerente da função criadora de direito dos tribunais. Se aos tribunais é conferido o poder de criar não só normas individuais, mas também normas jurídicas gerais, estarão eles em concorrência com o órgão legislativo instituído pela Constituição, e isso significará uma descentralização da função legislativa”. (Curso de direito constitucional. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 976).

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“Trata-se de uma prescrição jurídica (imperativa ou critério normativo-jurídico obrigatório) que se constitui no modo de uma norma geral e abstrata, proposta à pré-determinação normativa de uma aplicação futura, suscetível de garantia a segurança e a igualdade jurídicas, que não só impõe com a força ou eficácia de uma vinculação normativa universal como se reconhece legalmente como caráter de fonte de direito, que tipo de entidade dogmático-jurídica manifesta? [...] no conjunto destas determinações não pode deixar de ver-se a natureza de uma disposição legislativa”. NEVES, Castanheira. O instituto dos assentos e a função jurídica dos Supremos Tribunais. Revista da

Legislação e Jurisprudência. Coimbra, Universidade de Coimbra, 1983. p. 315.

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“Art. 2º. São poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.”

240 Alguns doutrinadores sustentam que a força normativa de algumas decisões do STF, com eficácia vinculante violaria a Tripartição dos Poderes, prevista na Constituição Federal. É o caso de Hugo Nigro Mazzili que afirma: “[...] não tem o Supremo Tribunal Federal legitimidade que lhe permita, em

107 Deve ser ressaltado que a súmula vinculante cria uma decisão normativa que, ante a obrigatoriedade nos demais julgamentos, se apresenta erga omnes. Isto, em bom português, quer dizer o seguinte: a decisão dos Tribunais Superiores de efeito vinculante se torna lei, transformando o Poder Judiciário em Poder Legislativo, sem que lhe tenha sido outorgado pelo povo, esse mandato. No caso do Supremo, a situação se agrava ainda mais, uma vez que o efeito normativo terá características não de uma lei ordinária, mas de preceito constitucional.242

Referido posicionamento, contudo, deve ser analisado com certo temperamento.

A súmula, em regra, é resultado de interpretação de uma situação concreta, à luz de um ou de diversos dispositivos legais pré-existentes, estes sim, elaborados pelo Poder Legislativo.

Dessa maneira, ainda que a súmula possa “inovar em matéria jurídica, estabelecendo normas que não se contêm estritamente na lei”, como sustenta Miguel Reale Junior, elas “resultam de uma construção obtida graças a conexão de diversos dispositivos, até então considerados separadamente ou, ao contrário, mediante a separação de preceitos por largo tempo unidos entre si”243.

nosso sistema, dizer a lei de forma geral e abstrata, pois a tarefa de legislar numa verdadeira democracia é exercida diretamente pelo povo ou seus representantes. Como regra, o poder dos tribunais, até do mais alto deles, consiste em dizer o direito nos casos concretos, em face dos conflitos surgidos; não em dizê-lo em abstrato, e muito menos com força vinculante, capaz de subordinar outros juízes e impor-lhe sua visão sobre qual seria a única maneira certa de aplicar uma lei – o que equivaleria a instituir a ditadura dos Juízes. Ademais, a se acolherem tais soluções vinculantes, ainda deixariam os tribunais, e especialmente o Supremo Tribunal Federal, de receber a saudável influência de decisões mais progressistas, que vêm das bases do Poder Judiciário, as quais estão em contato mais direto com a realidade do país”. (A reforma da magistratura. Revista do

Advogado. São Paulo, AASP, n. 56, 1999. p. 56). No mesmo sentido, Evandro Lins e Silva, para

quem: “[...] absoluta a inviabilidade de se introduzir o instituto do precedente absolutamente vinculado nos sistemas jurídicos da família romano-germânica. Nestes, como sabido, a fonte primária do direito é sempre a lei, isto é, norma geral e abstrata emanada do Poder competente, o qual, no regime democrático, é o próprio povo diretamente, ou os seus representantes legitimamente eleitos que formam o órgão estatal legislativo. Os juízes não têm legitimidade democrática para criar o direito, porque o povo não lhes delegou esse poder. A sua função precípua, na organização estatal, é a de funcionar como árbitros supremos dos conflitos de interesse na aplicação da lei”. (O efeito vinculante e o mito da efetividade. Justiça e Democracia - Juízes para a democracia. São Paulo, Revista dos Tribunais, n. 2, 1997. p. 44).

241 MACHADO, Rubens Approbato. A reforma do Poder Judiciário. Revista do Advogado. São Paulo, AASP, n. 56, 1999. p. 98.

242 MACHADO, Rubens Approbato. A reforma do Poder Judiciário. Revista do Advogado. São Paulo, AASP, n. 56, 1999. p. 98.

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“A jurisprudência, muitas vezes, inova em matéria jurídica, estabelecendo normas que não se contêm estritamente na lei, mas resultam de uma construção obtida graças a conexão de diversos

108 As súmulas, nessa concepção, sempre decorreriam da “interpretação” de um texto normativo isolado ou de vários conjugados, uma vez que não se confere ao Judiciário o poder de inovar completamente (ou seja: partindo do nada), como se legislador fosse.

De fato, a experiência mostra que o juiz e o legislador têm formas e modos de atuação muito diversos. O juiz não se sente à vontade em criar o Direito, ele busca (ou deveria buscar) sempre decidir de acordo com aqueles princípios estabelecidos na lei, maturados pela jurisprudência e amplamente estudados pela doutrina. Não tem o juiz, habitualmente, disposição para inovar completamente, fugir daquilo que se escreve nos livros e daquilo que é decidido pelos colegas. Ao contrário, há sempre um movimento natural de uniformização de jurisprudência, assim como tendem a se aproximar os ensinamentos da doutrina das decisões judiciais.244

Teresa Arruda Alvim Wambier, citando Mauro Cappelletti, manifesta o mesmo entendimento:

Cappelletti, como é sabido, sustenta que os juízes decidem usando certo grau de criatividade, mas afirma, com a clareza que lhe é habitual e própria, que os juízes não criam a lei. Quando se diz que são law markers, está-se, rigorosamente, querendo dizer que eles criam direito, e não que criam leis, já que sua atividade é substancialmente diversa do Poder Legislativo.245

E, também, Riccardo Guastini246:

Antes de tudo, pode-se indubitavelmente admitir que a interpretação é, num certo sentido, produção de normas. Apesar disso, outra coisa é ‘produzir uma norma’ no sentido de interpretar – isto é, decidir o significado de – um texto normativo preexistente; outro é ‘produzir uma norma’ no sentido de formular um texto normativo ex novo. Talvez não haja uma diferença nítida, mas decerto há uma diferença de grau. Ambas as coisas comportam um certo grau de discricionariedade política, é verdade. Mas, para sermos exatos, trata-se de dois graus distintos de discricionariedade. O legislador não está vinculado por textos preexistentes, o juiz sim. É ainda verdade que os textos legislativos jamais possuem um significado unívoco, que se presta a diversas e conflitantes interpretações, de

dispositivos, até então considerados separadamente ou, ao contrário, mediante a separação de preceitos por largo tempo unidos entre si”. REALE JUNIOR, Miguel. Lições preliminares de direito. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 168.

244 JANSEN, Rodrigo. A súmula vinculante como norma jurídica. Revista dos Tribunais. São Paulo, RT, ano 94, v. 838, agosto 2005. p. 59.

245 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Controle das decisões judiciais por meio de recurso de estrito

direito e ação rescisória. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 102.

246 GUASTINI, Riccardo. Das fontes às normas. Trad. Edson Bini, Apresentação: Heleno Taveira Tôrres. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 221-222.

109 sorte a constituírem para o juiz, um vínculo – ao contrário – débil. Mas mesmo um vínculo débil é sempre um vínculo, um limite: é, de fato, impossível para o juiz atribuir a um texto – literalmente – ‘qualquer’ significado a seu gosto. A atividade legislativa está livre de vínculos desse tipo.

Voltemos a analisar a Súmula vinculante n. 12.

A Constituição Federal, no art. 206, inc. IV, prevê o princípio da gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais. Esta súmula, interpretando justamente o dispositivo citado, dispôs sobre a impossibilidade de cobrança de taxa de matrícula, à luz da Constituição Federal.

Ainda que ambas determinações sejam normas jurídicas, gerais e abstratas, é certo que o dispositivo constitucional trata de absoluta “inovação”, enquanto a súmula manifesta a “interpretação” da lei, diante de uma situação específica (cobrança de matrícula). Em determinados casos, a interpretação, como sustentado antes, pressupõe “criação”247, que não pode ser confundida com

“inovação” (esta, sim, restrita ao Poder Legislativo)248.

Em contrapartida, acertadamente, o argumento de que o Poder Judiciário não poderia editar normas gerais e abstratas, com eficácia normativa, é amplamente repudiado por parte da doutrina.

O modelo rígido da tripartição de poderes proposto por Montesquieu249

tempo já foi adaptado. Hans Kelsen250, por exemplo, sustentou que as funções

legislativa, administrativa e jurisdicional não seriam substancialmente diferenciáveis.

247 Assim como o Tribunal decidiu pela violação à Constituição Federal, poderia ter entendido de forma diametralmente oposta, ou seja, pela possibilidade de cobrança de taxa de diploma. Ainda assim permaneceríamos diante de norma geral, abstrata e vinculante. Não tem como negar, portanto, que na interpretação de dispositivos legais para a edição de súmula há criação.

248“Certamente, do ponto de vista substancial, tanto o judiciário como o legislativo resultam em criação do direito, ambos são ‘law-making-processes’. Mas diverso é o modo, ou se prefere o procedimento ou estrutura desses dois procedimentos de formação do direito, e cuida-se de diferença que merece ser sublinhada para se evitar confusões e equívocos perigosos. O bom juiz pode ser criativo, dinâmico e ativista e como tal manifestar-se; no entanto, apenas o juiz ruim agiria com as formas e as modalidades do legislador, pois, a meu entender, se assim agisse simplesmente deixaria de ser juiz”. CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? p. 21.

249

“A liberdade política, num cidadão, é esta tranquilidade de espírito que provém da opinião que cada um possui de sua segurança; e para que se tenha essa liberdade, cumpre que o governo seja de tal modo que um cidadão não possa temer outro cidadão. Quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo da magistratura, o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe

110 De acordo com José Afonso da Silva251, os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário são, sim, independentes, mas, ao mesmo tempo, harmônicos.

Há interferências (entre os Poderes), que visam ao estabelecimento de um sistema de freios e contrapesos, à busca do equilíbrio necessário à realização do bem da coletividade e indispensável para evitar o arbítrio e o desmando de um em detrimento do outro e especialmente dos governados.

Sobre o tema, também disserta Daniel Giotti de Paula252:

Na verdade, do início do século XX até hoje, um complexo cenário de transformação se processou no direito e na política: 1) vive-se sob a égide de uma crise de representação parlamentar; 2) fruto, parcialmente, do abandono de uma visão mítica de que a sociedade é homogênea; 3) passou-se de um Estado de Direito para um Estado Democrático de Direito; 4) o que, em consequência, implicou o abandono da subsunção como único método de resolução de impasses sobre a interpretação e aplicação do direito; 5) instaurou-se um quadro em que agências e agentes dentro do ramo governamental, mas com alguma independência, são aqueles que realmente decidem questões técnicas da sociedade, mudança que se dá em um quadro de desformalização do direito; 6) consolidou-se, ainda, o presidencialismo de coalizão, em que às minoria sobra pouco espaço para participar da construção da agenda parlamentar. E esses ingredientes explicam, cada qual com a sua intensidade, o porquê de o Judiciário muitas vezes invadir a esfera própria de

liberdade, pois haverá também liberdade se o poder de julgar não estiver separado do poder legislativo, e do poder executivo. Se estivesse ligado ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria o legislador. Se estivesse ligado ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor. Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos principais ou dos nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes: o de fazer as leis; o de executar as resoluções públicas, e o de julgar os crimes ou as divergências dos indivíduos”. MONTESQUIEU. O espírito das leis. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1962. v. 10. p. 181. 250 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Coimbra: Armenio Amado, 1964.

251 AFONSO DA SILVA, José. Curso de direito constitucional positivo. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 111. No mesmo sentido, acena Rodolfo de Camargo Mancuso: “Justamente porque dentre nós a tripartição dos Poderes não opera, como visto, como dogma intransponível, verifica-se que, por vezes, a atuação do Poder Judiciário acaba por projetar reflexos nas searas dos demais Poderes da República. Assim se dá em face do Legislativo, quando uma lei é declarada inconstitucional, e é oficiado o Senado para que promova a supressão do texto indigitado (CF, arts. 102, I, a e 52, X); ou em face do Executivo, quando é acolhida uma ação direta interventiva (CF, art. 34, VII, c/c art. 36, III); ou mesmo quando a Justiça Eleitoral declara inelegível um governante (Lei 4.737/65, art. 22, I, j); enfim, quando se ordena a inclusão de precatório judicial na ordem cronológica de pagamentos (CF, art. 100). Ocorrências como essas, numa leitura mais apressada, podem induzir a impressão de que o Judiciário configura um suprapoder, mas, a rigor, cuida-se de aplicação do sistema de pesos e contrapesos, que busca prevenir a exacerbação de um Poder em face dos demais. E, depois, não poderia ser diferente, porque a lei obriga a todos, indistintamente, mas é o Judiciário o seu intérprete e aplicador em caráter de definitividade”. (Divergência jurisprudencial e súmula vinculante, p. 104). 252 PAULA, Daniel Giotti de. Ainda existe separação de poderes? A invasão da política pelo direito no contexto do ativismo judicial e da judicialização da Política. As novas faces do ativismo judicial. Salvador: JusPodvim, 2011. p. 307.

111 competência de outros poderes constituídos e, ainda, o porquê de as minorias político-partidárias ou da sociedade civil se dirigirem aos tribunais, após perder a arena política.

Assim, ainda que os tribunais possam editar normas jurídicas gerais e abstratas, como é o caso da súmula, não se pode afirmar que sua liberdade e poder são idênticos aos que tem o legislador no momento de editar as leis, que, por sua vez, também são normas gerais e abstratas.

Nesse sentido, há muito já revelava Mauro Cappelletti253:

O bom juiz pode ser criativo, dinâmico e ativista e como tal manifestar-se; no entanto, apenas o juiz ruim agiria com as formas e as modalidades do legislador, pois, a meu entender, se assim agisse simplesmente deixaria de ser juiz.

A edição de normas gerais e abstratas pelo Poder Judiciário, por outro lado, não significa a violação do princípio constitucional da tripartição dos poderes, que hoje é visto como forma mais flexível do que tempos atrás.