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A SAÚDE COMO QUALIDADE DE VIDA

No documento AMPLAMENTE: SOCIEDADE EM (DES)CONSTRUÇÃO (páginas 35-39)

Segundo Berlinguer (2004), um dos maiores bioeticistas de todos os tempos, a saúde está no topo de todos os direitos humanos, já que sem saúde as lutas pelos demais direitos tendem a ser impossibilitadas. Nessa perspectiva, a saúde pode ser compreendida como o bem mais precioso do ser humano, sendo digna de receber a tutela de proteção do Estado, já que se consubstancia em característica indissociável do direito à vida; com a ressalva de que a atenção à saúde constitui um direito de todo cidadão e um dever do Estado (BRASIL: CF, 1988), devendo estar inserido de forma

O direito à saúde foi reconhecido internacionalmente há mais de 70 anos, por conta da aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos pela Organização das Nações Unidas. O artigo 25 desta Declaração, documento amplamente reconhecido e de grande impacto para os movimentos sociais em defesa dos direitos humanos universais, refere que “toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços mais indispensáveis” (ONU, 1948).

Nesse mesmo sentido, a constituição da Organização Mundial de Saúde (OMS), em seu preâmbulo, apresenta como direitos fundamentais de todo ser humano “gozar do grau máximo de saúde” e “que os governos têm a responsabilidade pela saúde de seus povos, a qual só poderá ser cumprida por meio da adoção de medidas sanitárias e sociais adequadas”. Em consonância com as intencionalidades dos documentos já citados, destaca-se também o Pacto Internacional de Direitos Econômicos Sociais e Culturais,

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que expõe o fato de que “os Estados Partes, do presente pacto, reconhecem o direito de toda pessoa de desfrutar do mais alto padrão possível de saúde física e mental” e relaciona que as medidas necessárias para se alcançar este objetivo devem levar em conta os determinantes sociais da saúde (MOSCA, AGUIRRE, 1990).

Dentre os marcos legais já indicados, cabe acrescentar também a Declaração de Alma-Ata que, em 1978, assume a saúde como um direito humano fundamental, sendo a consecução do mais alto nível possível de saúde a mais importante meta social mundial, cuja realização requer ação de muitos outros setores sociais e econômicos, além do setor da saúde (MOSCA, AGUIRRE, 1990). Esta Declaração amplia uma visão antes reducionista da saúde à puros determinantes biológicos, visto que destaca a importância dos cuidados primários de saúde, incluindo os serviços de promoção, prevenção e cura.

A Declaração de Alma-Ata (MOSCA, AGUIRRE, 1990), torna-se um marco importante nas lutas por saúde para todos, visto que enfatiza a saúde como um direito indispensável aos exercícios de outros direitos humanos. Trata-se de direitos imprescindíveis para o alcance do mais alto nível possível de saúde e condição de uma vida digna para todos, como direito à igualdade, à privacidade, à não-discriminação, à alimentação, à moradia, ao trabalho, à educação, ao direito de não ser torturado etc. Todos esses direitos são direta ou indiretamente interligados aos direitos à saúde, como qualidade de vida.

No Brasil, o direito a saúde está fortemente presente na Constituição Federal (BRASIL:CF, 1988), em seu artigo 196, “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Também no artigo 198 “As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: descentralização, com direção única em cada esfera de governo; atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais e da participação da comunidade” (BRASIL: CF, 1988).

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capítulo sobre a saúde, garantiu o que a população almejava: uma visão ampla de saúde, interligada à coparticipação comunitária nos assuntos sociais e sanitários. A saúde, nessa perspectiva, deixa de ser vista apenas como ausência de doenças, sendo considerada como um fenômeno diretamente relacionado a participação solidária de cada cidadão e cidadã nas decisões relativas às suas condições de vida, como a alimentação, o lazer, os salários dignos e a moradia, enfim, às questões que dizem respeito à uma vida minimamente digna e saudável (MS: Ministério da Saúde,1994).

Por outro lado, também tem sido bem debatida a definição de saúde apresentada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que a descreve como um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não simplesmente a ausência de doença ou enfermidade. O fato é que saúde não significa não ter doença; saúde e doença, embora sejam fenômenos indissociáveis, devem ser vistos para além das relações de causa e efeito; a saúde não se limita apenas ao corpo, ao contrário diz respeito à mente, às emoções sentidas, às relações sociais existentes, ou a própria coletividade.

Ayres (2007) faz uma crítica da compreensão da saúde e da doença como situações polares opostas de uma mesma realidade; o problema conceitual reside no fato de identificar ambos os fenômenos, segundo uma mesma racionalidade; o que seria limitante para um adequado entendimento dessas duas construções discursivas e das práticas a elas relacionadas. Ao se negar as estreitas relações que guardam, tanto a saúde, como a doença, na vida cotidiana, demonstra-se que tais conceitos estão, de certo modo, direcionados à interesses práticos e instrumentais, determinados pela elaboração racional de experiências vividas de processos de saúde-doença-cura (AYRES, 2007).

Mas afinal, o que é saúde? Este é um conceito difícil, pois em geral as pessoas têm uma ideia do que é saúde pelas experiências que passam ou que já passaram. Uma das definições mais conhecidas de saúde, já citadas nesse texto, é o da Organização Mundial da Saúde (OMS). Mas como já dito, há controvérsias. Em geral, as críticas latino-americanas da definição da OMS da saúde como "completo estado de bem-estar físico, psíquico e social” giram em torno da palavra “completo” em relação com o bem- estar, que acaba por contribuir, direta ou indiretamente, com a busca de uma "saúde perfeita"(SFEZ, 1996), a inaceitação das vulnerabilidades existenciais e a negação das condições sociais, o que acaba por favorecer a medicalização das sociedades, como

37 alternativa mais imediata e ao alcance de todos.

O entendimento de saúde no sentido de bem estar pleno e contínuo pode favorecer as tendências das indústrias farmacêuticas e das tecnologias médicas, em associação com as organizações profissionais, redefinindo as doenças e considerando problemas de saúde como questões cotidianas, facilmente superáveis, pela via da medicalização e de práticas médicas alopáticas. Além disso, a definição de saúde da OMS reduz significativamente a importância das capacidades e funcionalidades humanas (SEN,2011) para afrontar de maneira autônoma os desafios físicos, emocionais e sociais da vida e põe em xeque a questão operacional da definição (AGREST ET Al., 2011).

No sentido de contribuir com tão importante debate, o relatório final da Comissão Nacional de Determinantes Sociais da Saúde (CNDSS) criada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), traz o conceito de saúde para a discussão, na tentativa de demonstrar que as condições sociais do século XXI influenciam decisivamente nas questões de saúde, sendo preciso promover ações em todos os setores para promoção do bem-estar, como destacado pela Declaração de Alma Ata(ABRASCO, 2018) e enfatizada na carta de Ottawa.

A questão fundamental, que precisa ser enfrentada pelas sociedades, especialmente aquelas pertencentes aos países mais pobres ou em desenvolvimento, é que a maior parte das doenças e iniquidades em saúde (BARATA, 2009), que acometem as pessoas, em particular, os socialmente mais vulneráveis, acontece por conta das condições em que estas nascem, vivem, crescem, trabalham e envelhecem. Esse conjunto de condições é chamado de “determinantes sociais da saúde”, um termo que resume os determinantes sociais, econômicos, políticos, culturais e ambientais da saúde (SOLAR, IRWIN, 2010).

Dentre os determinantes sociais da saúde mais importantes, destaca-se os mecanismos que geram e mantém a estratificação social, como as estruturas de governança formais e informais; sistemas de educação, estruturas de mercado ligadas ao trabalho e aos produtos; sistemas financeiros, o nível de atenção dado, as considerações distributivas no processo de formulação de políticas; a extensão e a natureza de políticas redistributivas, de previdência e de proteção sociais (SOLAR & IRWIN,

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Trata-se de estruturas sociais, que alteram sobremaneira os posicionamentos dos indivíduos, sendo compreendidas como as causas mais profundas das iniquidades em saúde; geradoras de diferenças que acabam por dar forma às condições de saúde dos indivíduos (LÓPEZ ORELLANO et al. 2008). De qualquer modo, não custa pensar sobre o alerta feito por Navarro(2009), ao chamar a atenção para o fato de que as relações entre desigualdade, iniquidade e determinação social não podem ser reduzidas a uma simples análise circular de causa e consequência, na medida em que tais problemas, devido as suas complexidades, não podem ser vinculados apenas à fatores sociais isolados ou a fatores de vulnerabilidade e risco.

A REDUÇĂO DA POBREZA, DO ANALFABETISMO E DA DESIGUALDADE

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