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SABERES PARA A ACEITAÇÃO DAS DIFERENÇAS E PRÁTICA INCLUSIVA

COM O ESTUDANTE SURDO

Ivone Braga Albino – UFRN

José Edmilson Felipe da Silva – UFRN

Introdução

É

uma luta constante que o princípio fundamental da Educação Inclusiva seja que os estudantes, indistintamente, aprendam juntos, independente de suas di- ferenças (CARVALHO, 2004; MANTOAN, 2006; STAINBACK, S.; STAINBACK, W, 1999), ou seja, tal procedimento instaurado na educação é mantido como si- nônimo de inclusão escolar. No entanto, há que se lutar pelo que é melhor para os surdos (SÁ, 2010; SKLIAR, 2011). O palco dessa luta é a sociedade como um todo. Paradoxalmente, o pano de fundo é o tempo de profunda desigualdade social, ma- nifestada nas instituições das quais os estudantes fazem parte. Diante disso, como participantes desse processo, assistimos que a prática inclusiva, mesmo com toda efervescência da Educação Inclusiva, não é uma tarefa fácil, porque implica no aco- lhimento do que foi, historicamente, concebido como diferente, “deixando-se ques- tionar, permitindo-se transformar” (SILVA, 2006, p. 33).

Neste contexto, surgem muitos desaios: um deles é a formação docente em con- tinuidade para a aceitação das diferenças e da prática inclusiva com o estudante surdo. Em consonância com este cenário, sabe-se que, desde os anos 90, os Referen- ciais para Formação de Professores (BRASIL, 1998) já apontavam que a formação recebida pelos docentes não tem suprido as necessidades inerentes ao desenvolvi- mento dos estudantes, para a modiicação da sociedade. Assim,

[...] muitas evidências vêm revelando que a formação de que dis- põem não tem sido suiciente para garantir o desenvolvimento das capacidades imprescindíveis para que crianças e jovens não só con- quistem sucesso escolar, mas, principalmente, capacidade pessoal que lhes permita plena participação social num mundo cada vez mais exigente sob todos os aspectos (BRASIL, 1998, p. 17).

Nesse sentido, Freitas (2006, p. 170) contribui dizendo que “[...] na maioria das vezes, o professor idealiza um aluno, sem se dar conta de que trabalhar com a diversidade é algo intrínseco à natureza da atuação docente e de que não faz sentido pensá-la como uma condição excepcional”.

Entendemos que o saber docente não é estável, não é algo que o professor guar- da e depois usa para dar conta de suas aulas. Existem os saberes que ele traz em virtude de ter tido formação inicial quando graduando e depois ter passado por experiência(s), mas estes precisam ser reelaborados e reconstruídos “[...] em con- fronto com suas experiências práticas, cotidianamente vivenciadas nos contextos escolares” (PIMENTA, 1999, p. 29). Os saberes necessários ao ensino, portanto, são construídos justamente das trocas coletivas extraídas das experiências e em con- frontos de ideias.

Percebemos, então, a relevância de sinalizarmos que todo o conhecimento teó- rico, as experiências adquiridas e as possíveis relexões sobre a realidade enfrentada se relacionam com a prática docente, quando a palavra de ordem é ensinar a todos e incluir todos, sobretudo, porque nos novos tempos a educação escolar é compulsó- ria para todos os escolares, “distante” de ameaça de repetência e de exclusão.

Partindo desses pressupostos é que registramos, no presente ensaio teórico, uma discussão crítica acerca da formação docente, tendo em vista uma escola para surdos, na perspectiva bilíngue, com educação inclusiva centrada na democratização do ensi- no e, por conseguinte, a real inclusão escolar. Entendemos sua relevância para o mo- vimento de renovação acadêmico-cientíico e cultural que se amplia no campo dos es- tudos surdos (SKLIAR, 2005; PERLIN, 2004; 2012; 2006; QUADROS, 2007; SÁ, 1998; 2011), contribuindo para assegurar a educação como um direito universal do cidadão e para ampliar a inclusão das classes populares, com vistas à sua autonomia, pois

os movimentos surdos criticam a manutenção dos surdos nos es- paços das escolas que estão estruturadas para ensinar e aprender português com alunos que crescem ouvindo e falando essa lín- gua, ou seja, as proposições são contrárias. Os movimentos sur- dos clamam por inclusão em outras perspectivas (QUADROS, 2007, p. 106).

Desse modo, estudos realizados por Quadros (2007, p. 3) revelam que os sur- dos desejam e propõem uma escola de qualidade, que ofereça a Língua de Sinais como língua de instrução com docentes surdos e/ou ouvintes bilíngues.

Os achados de Quadros e as relexões anteriores serviram como nota intro- dutória para este ensaio cujo objetivo é discutir formação docente na constru- ção de novos saberes para a aceitação das diferenças (DOZIART, 2006; RANGEL; PERLIN, 2006), considerando os descompassos já apresentados no contexto da Educação de Surdos.

Sá (2011, p. 17) nos diz que “a escola é um direito de todos, mas não a mesma escola, não a mesma proposta, pois a mesma escola não atende às necessidades e especiicidades de todos”, e os docentes da escola comum fazem parte deste palco, cheios de intenções diversas, chegando a procurar a formação continuada.

Podemos dizer assim: a universidade possibilita o acesso a saberes que se ligam a outros provenientes da história de vida do docente. A competência para a docên- cia, assim, se constrói nas experiências cotidianas do docente em articulação com conhecimentos prévios dele.

Ao provocar uma discussão a respeito da formação docente, partimos dos prin- cípios de uma educação inclusiva para a pessoa surda. Primeiramente, referimos a teóricos que apontam para a discussão sobre o contexto do estudante surdo e a legis- lação pertinente. Depois, provocamos mais relexões embasadas por outros estudos sobre a necessidade de formação docente com e para atuação bilíngue, como con- tribuição que gera mudanças e posicionamento político, tendo em vista o combate às práticas excludentes.

Para falar sobre inclusão, parafraseamos Rodrigues (2006), ao colocar que a inclusão implica, antes de tudo, rejeitar a exclusão de qualquer alunado. Para tanto, a escola

que pretende seguir uma política de educação inclusiva (EI) de- senvolve políticas, culturas e práticas que valorizam a contribuição ativa de cada aluno para a formação de um conhecimento cons- truído e partilhado – e, desta forma, atinge a qualidade acadêmica e sociocultural sem discriminação (RODRIGUES, 2006, p. 2).

Invocando essa questão para a educação inclusiva dos surdos ao longo dos anos é conhecido que, na escola tradicional, a lógica do sistema era outorgar um condi- cionamento aos alunos: ou eles se integravam à escola, demonstrando bom apro- veitamento e disciplina, ou outro caminho teriam que tomar – o de estudar numa escola especial.

A escola especial era vista como um espaço para a reabilitação da fala e treina- mento auditivo, portanto, tinha a concepção de educação enquadrada no modelo clínico, cuja visão airmava a importância da interação dos surdos na comunidade ouvinte, seguindo o padrão de normalidade exigido pela sociedade, o qual prioriza a linguagem oral, para que isso fosse possível, os surdos necessitariam desenvolver uma boa oralização. Merece destaque o papel dos docentes, que era o de terapeutas, cujas técnicas utilizadas eram fundamentadas na fonoaudiologia, icando o ensino em segundo lugar. Logo, o que de fato ocorria era uma separação dos alunos consi- derados “normais” para enquadramento nos grupos considerados “deicientes”. Isto era uma inclusão inversa?

Diante disso, tomamos emprestada a expressão popular “se correr o bicho pega, se icar o bicho come” para lembrar que tanto na escola regular (nas que estudavam os alunos normais), quanto na escola especial (na que estudavam os alunos deicientes) a atuação dos docentes era dada numa perspectiva oralista, isto é, numa prática onde havia a imposição da aprendizagem do português oral, reforçada pelas ações pedagógicas.

Com a Educação de Surdos regida pelo império da ilosoia oralista, de práticas educativas ouvincêntricas e de visão patológica sobre a questão da surdez, negou-se ao Povo Surdo condições favoráveis de produção da linguagem e a possibilidade de inclusão social e educacional.

Com o advento da Comunicação Total, o uso de sinais foi permitido, porém sem o status de língua, ou seja, sem obedecer a sua estrutura gramatical, apenas como apoio para a aquisição da língua oral, junto com outros recursos. Esta atitu- de, ainda hoje, confunde muitos leitores iniciantes, induzindo-os a pensar que a prática bimodal e a bilíngue são as mesmas devido ao uso simultâneo da oralidade e da sinalização pelos adeptos dessa corrente. Entendemos que, com o bimoda- lismo – o uso de sinais regidos pela estrutura gramatical da língua oral-auditiva – o im último era a língua oral em detrimento da Língua de Sinais e do processo ensino-aprendizagem dos demais conteúdos. Com isso muitos educadores tive- ram uma formação que os aproximavam mais à função de um clínico que a de um pedagogo. No Rio Grande do Norte, como em outras partes do país, essa formação ocorria em parceria com o Centro SUVAG, principal instituição oralista, ainda com forte atuação no contexto atual.

Diante da evidência que a escola tradicional ignorava os alunos surdos (RO- DRIGUES, 2006, p. 4), neste início do século XXI as pesquisas apontam que a reali- dade do contexto global não é muito diferente, pois as “instituições sociais defron- tam-se com novas questões de exclusão social em nível da cidadania, do trabalho, da educação, do território e da identidade” (STOER; MAGALHÃES; RODRIGUES, 2004 apud RODRIGUES, 2006, p. 302). Nesse sentido, as condições atuais de fun- cionamento da escola inclusiva mostram contradições no discurso da inclusão, no momento em que a prática dos docentes (não somente) procura cumprir um pro- grama político, muitas vezes deixando a desejar outras possibilidades concretas de opção metodológica na escola comum.

Essa prática normalizadora, que ainda é comum em nossas escolas que têm alunos surdos e ouvintes, dá continuidade à ilosoia oralista. Dessa forma, fatores como a supressão da Língua de Sinais, a imposição da aprendizagem do português oral, reforçada pelas ações pedagógicas e práticas tradicionais oralistas, e o processo de ruptura que o Povo Surdo experimentou, explicam o grande fracasso no aprovei- tamento educacional dos surdos, sobretudo em seu processo de produção escrita.

Sobre a produção escrita, destacamos o conhecimento sobre a Língua Portu- guesa pelos surdos, cujo ensino direcionado a eles e cuja aprendizagem apresentada

por esse público, são processos complexos, entendidos como uma diiculdade que limita a liberdade de acesso à comunicação e à informação, um verdadeiro desaio a esses falantes de Libras.

Desse modo, a pessoa surda sofre com as atitudes preconceituosas, pois, embo- ra legalmente seja garantido seu ingresso na escola, sua permanência e aprendiza- gem e a necessidade de complementar os currículos (BRASIL, 1996, p. 3) são direi- tos afetados diretamente pelas barreiras impostas por uma metodologia ouvintista.

A visão do surdo, portanto, como “deiciente”, que precisa do tratamento de reabilitação da fala e do treinamento da leitura labial, disseminada pela ilosoia oralista e pela comunicação total até os dias atuais, tenta apagar a questão da dife- rença sociolinguística, cultural, do aprendiz surdo, “o que coloca a surdez do pró- prio aluno como uma das principais causas da grande diiculdade dos professores em lidar com as questões da linguagem escrita.” (CASTRO, 2007, p. 19). Entretanto, podemos pensar que a grande diiculdade pode partir do próprio docente ao des- conhecer as especiicidades do seu aluno surdo e do processo de aprendizagem de uma segunda língua.