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SURDOS NO INTERIOR DA PARAÍBA

Eleny Gianini – UFCG

Niédja Maria Ferreira de Lima – UFCG Shirley Barbosa das Neves Porto – UFCG

Introdução

É experiência aquilo que nos passa, ou que nos toca, ou que nos acontece, e ao passar-nos nos forma e nos transforma.

(Larrosa, 2000)

A

história que apresentamos neste texto é fruto da experiência que nos toca e acontece na docência e militância na educação de pessoas surdas, que nos forma e transforma como docentes, forma e transforma os espaços educacionais, e forma e transforma a vida dos surdos.

Esta história teve início, em 1979, com a criação do curso de Pedagogia da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), constituído, entre outras, pela habilitação em formação de professores para a Educação de Surdos. A criação des- ta habilitação alavancou a educação para essas pessoas na região polarizada por Campina Grande/PB, tanto em função dos estudos sobre os surdos, sua língua e sua educação propiciados pelo curso, quanto por ter gerado a necessidade de criação

de espaços educacionais para estágio, pesquisa e extensão desta habilitação. É um pouco desta história que pretendemos apresentar neste texto.

Apesar de a História da Educação de Surdos ser tema recorrente nos traba- lhos dessa área, acreditamos que, mesmo que brevemente, precisa ainda ser con- tada. Particularmente a partir do século XVIII, quando podemos considerar que a Educação dos Surdos propriamente dita se estabeleceu, pois as concepções de pessoa surda presentes naquele momento, muito mais do que marcarem, nos dias atuais, a educação e os demais desdobramentos sociais, retrospectivamente nos apresenta possibilidades diversas para o desenvolvimento humano dos surdos, como, permite, prospectivamente, acreditar em uma vida mais plena para eles, alicerçada também pela educação.

Os primórdios, propriamente ditos no séc. XVIII, advêm da fundação da pri- meira escola para surdos – o Instituto Nacional para Surdos-Mudos, em Paris. Este Instituto constituiu uma mudança fundamental na Educação dos Surdos, pois subs- tanciou, pela primeira vez, uma educação coletiva, possibilitando a interação entre crianças e adultos surdos (alunos e professores) e o reconhecimento da Língua de Sinais como própria deles, o que os colocou, provavelmente pela primeira vez, na categoria humana. Além disso, o desenvolvimento acadêmico e o nível dos conhe- cimentos alcançados pelos alunos desse Instituto, na mesma proporção que o dos ouvintes, propiciou a participação dos surdos nos debates culturais e educativos da época e a inserção nos mais variados ramos proissionais (SKLIAR, 1997).

No entanto, foi também no século XVIII, que a palavra falada, sob a inluência de ideias de cunho ilosóico e religioso, voltou a se reairmar como única credencial de humanidade. Do ponto de vista ilosóico, a palavra falada era considerava supe- rior a qualquer outra forma de comunicação como manifestação de humanidade. Do ponto de vista religioso, o homem só poderia alcançar os sacramentos por meio da palavra, do verbo, ainal início de tudo (Gênesis). Assim, para os surdos se tor- narem humanos e ilhos de Deus precisavam aprender a língua oral. Dessa forma, ganha espaço também, uma pedagogia ortopédica, na qual o treinamento da fala passa a ser o meio e o im da Educação dos Surdos.

Estava instalada a grande cisão na Educação de Surdos: de um lado os gestua- listas, que defendem a Língua de Sinais como sistema fundante; do outro, os ora- listas, que se empenham em airmar a aprendizagem da língua oral nacional como elemento fundante desta educação. É a última posição que se impõe, praticamente, em todo o mundo, a partir das deliberações do II Congresso Internacional de Edu- cação do Surdo, realizado em Milão, em setembro de 1880.

O Congresso de Milão, como passou a ser denominado na literatura da área, é considerado um marco histórico na Educação dos Surdos, por coroar o movimento em prol do Oralismo. Apesar de uma variedade de temas propostos para discussão, tratou-se, exclusivamente, da questão do método mais adequado para a Educação de Surdos, ou melhor, da substituição da Língua de Sinais pela língua oral nacional (SÁNCHEZ, 1990; SKLIAR, 1997; MOURA, 2000). Participaram também do Con- gresso os professores surdos, que segundo Skliar (1997, p. 45), “foram excluídos do voto, o oralismo saiu triunfante e o uso da língua de sinais resultou oicialmente proibido nas escolas”.

Essa cisão perdura até os dias de hoje e está representada por duas concepções antagônicas: a clínico-patológica e a sociocultural, que traduzem visões distintas de surdez, da pessoa surda, de sua educação e inserção social.

A concepção clínico-patológica da surdez, assumida pelos oralistas, concebe o surdo como uma pessoa deiciente – deiciente auditiva (DA). Dessa forma, não concebe a existência de uma identidade surda e entende que, para se integrar à so- ciedade, essa pessoa precisa ser normalizada por meio de processos reabilitacionais de suas funções auditivo-orais. Para tanto, utiliza de vários recursos clínico-terapêu- ticos, que vão dos treinamentos da audição e da fala à adaptação de equipamentos eletrônicos de ampliicação sonora. Desaconselha o uso da Língua de Sinais, con- siderada como embotadora do desenvolvimento da língua oral nacional, e procura evitar o convívio do surdo com outras pessoas surdas, consideradas como modelos inadequados de normalidade. Essa concepção dominou a Educação de Surdos por mais de cem anos, ou seja, desde o Congresso de Milão, em 1880, até os anos oitenta do século XX. No Brasil, até o inal da década de 1980, praticamente era a única forma conhecida e difundida de se trabalhar com surdos.

Entretanto, o apregoado pelo Oralismo, para a maioria dos surdos, não se realizou, o que levou, entre outros, a um grande fracasso educacional. Na procura de entender este fracasso, estudiosos de diversas áreas cientíicas começaram a conceber que o problema não estava nos surdos, em seus professores ou seus fa- miliares, mas na concepção de sujeito que norteou os processos de ensino-apren- dizagem para eles propostos.

Assim, propugnando uma nova visão de surdos e de sua educação, e espelhan- do-se em vivências resgatadas dos primórdios da Educação de Surdos, surge a Co- municação Total (CT), abordagem que foi deinida, oicialmente, na Conferência das Escolas Americanas para Surdos de 1976, como “uma ilosoia que incorpora as formas de comunicação auditivas, manuais e orais apropriadas para assegurar uma comunicação efetiva com as pessoas surdas” (MOURA, 2000, p. 57).

Os surdos passam a ser considerados, por essa ilosoia, como diferentes e não mais como deicientes. Essa concepção da surdez e da pessoa surda desencadeia e sustenta outra forma de educá-la. Todas as atividades passam, então, a ter como base a utilização de sinais, a expressão corporal, a mímica, sem excluir a fala, a lei- tura orofacial, a leitura e a escrita da língua oral nacional. Naquele momento, o importante era conseguir estabelecer uma comunicação efetiva com a pessoa surda (CICCONE, 1990; MOURA, 2000).

Convém, no entanto, lembrar que a utilização de sinais na metodologia da Co- municação Total não signiicava, ainda, o entendimento da Língua de Sinais como constituidora da pessoa surda, contudo mais um recurso didático-pedagógico, pois representava apenas um suporte para o falado oralmente, e tinha como objetivo oferecer uma imagem visual da fala para os alunos, ao mesmo tempo em que ou- viam e faziam leitura orofacial. Como podemos observar, a centralidade do proces- so educacional continuava a ser a compreensão e o desenvolvimento de língua oral nacional. O que surgia, como novidade e inovação, em um primeiro momento, foi, rapidamente, absorvido pela concepção do Oralismo subjacente e disfarçado.

Entretanto, em que pese às suas limitações, trouxe aspectos positivos para o posterior reconhecimento da Língua de Sinais na Educação de Surdos, em função

de avanços na comunicação com a pessoa surda; melhoria do rendimento escolar que ainda não tínhamos registros com o Oralismo; e na constituição das escolas como espaços de uso e de reconhecimento da Língua de Sinais (DORZIAT, 1999; MOURA, 2000).

Um novo panorama para a Educação de Surdos descortinava-se em nível in- ternacional e nacional. Surgiram discussões sobre a importância da Língua de Si- nais para a vida e a Educação dos Surdos, sobre as questões identitárias e culturais dessas pessoas.

Uma nova perspectiva para a Educação dos Surdos começa a ser discutida – a educação bilíngue –, que defende direitos no marco da diferença linguística e políti- ca destes sujeitos. Nessa perspectiva, eles são considerados videntes por excelência, plenos de potencialidades (SKLIAR, 1998, p. 26) de crescer, se desenvolver, contri- buir com seu trabalho, suas ações, seus interesses para o bem estar social. O que lhes faltava era o reconhecimento de sua condição bilíngue, quer no espaço escolar, quer em todos os demais espaços sociais. Em relação ao escolar, sendo-lhes concedido o direito de ter acesso à educação, mediante o uso da Língua de Sinais, como língua primeira (L1), e a aprendizagem da língua nacional, no caso a Língua Portuguesa, como segunda língua (L2).

O bilinguismo advoga o biculturalismo: a necessidade de os surdos terem aces- so à cultura da comunidade surda, contribuir para o seu enriquecimento cultural, literário, linguístico e, no diálogo com o patrimônio cultural de Língua Portuguesa, perceberem e transitarem na cultura ouvinte como um cidadão de pleno direito. Diferentemente do modelo oralista, para o qual está sempre latente o preceito se- gundo o qual “o companheiro mais perigoso de um surdo-mudo é outro surdo- mudo” (BEHARES, 1991, s/p.), na educação bilíngue, se sustenta, precisamente, o contrário: o melhor companheiro de um surdo é outro surdo que conheça, pratique e ensine a Língua de Sinais.

Atualmente, apesar da política educacional inclusivista assumida internacio- nalmente a partir dos anos de 1990, várias experiências de educação bilíngue estão sendo implantadas no Brasil e no mundo. Pesquisas comparativas do desenvolvi-

mento de crianças surdas inseridas em propostas educacionais com e sem bilin- guismo indicam que as primeiras têm um desempenho social, afetivo e escolar mais avançado que o das segundas, inclusive o desenvolvimento da segunda língua (QUADROS, 1997; MOURA, 2000; VALENTE, 2007; entre outros).

Em Campina Grande e em outros três pequenos municípios do semiárido pa- raibano – Gado Bravo, Aroeiras e Sumé –, vivenciamos também a implantação de uma educação bilíngue, fruto de 35 anos de um processo histórico que, localmen- te, se transformou à semelhança do que ocorreu ao longo da história da Educação dos Surdos. A criação das escolas para surdos nesses municípios e as mudanças ocorridas na educação, que foram alavancadas, em grande parte, por professoras da UFCG, é o pretendemos apresentar neste texto.