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4.2 JOSUÉ DE CASTRO E A GEOGRAFIA DA FOME NO SEMI-ÁRIDO

4.2.1 Seca, fome e subdesenvolvimento no Semi-árido brasileiro

A Região Nordeste do Brasil recebeu atenção especial na profícua obra de Josué de Castro, desde a juventude, em 1936, quando escreveu o livro “Documentário do Nordeste”, abordando, de forma sintética e literária, os grandes temas, os quais aprofundou em seus estudos sobre a questão regional. Distingue as áreas regionais com suas particularidades e similitudes. Aparece com nitidez o drama humano da fome e da miséria nos manguezais de Recife, onde homens e caranguejos dividem a vida e o ambiente da lama, na área canavieira e nas áreas secas, onde o drama das fomes epidêmicas e da injustiça estrutural que explicam o subdesenvolvimento: “[...] o Nordeste dentro do conjunto nacional é o ponto máximo no qual transparece o subdesenvolvimento” (CASTRO, 1967, p. 167).

Durante o período de exílio forçado, criticou as visões errôneas e os pré-conceitos em relação ao Nordeste, explicitando na obra “Sete Palmos de Terra e um Caixão” (1967), quais eram as verdadeiras causas do empobrecimento da população nordestina, do atraso econômico regional e das tensões sociais que se avolumavam. A obra apresenta um retrato sociológico de uma região que passava também por transformações sociais, com suas profundas contradições e antagonismos das forças sociais. Ao mesmo tempo, a desmistificação da realidade social era acompanhada de uma valorização da terra e sua gente, de “[...] uma zona privilegiada, sendo injusto o julgamento daqueles que não o conhecendo bem, afirmam seja essa zona a menos dotada de condições favoráveis à vida humana” (CASTRO, 1968, p. 109).

É o olhar sobre as diversas expressões da fome nas paisagens geográficas, com suas características econômicas e sociais, a porta de entrada da análise de Josué de Castro sobre o Sertão semi-árido. Compara a fome endêmica, como a fome parcial ou oculta, que ocorre na Zona da Mata nordestina, com a fome epidêmica que ocorre no Sertão semi-árido. A primeira área é uma zona de acentuada subalimentação do país, com a fome crônica, de pobreza energética, com deficiência de proteínas, que reduz a capacidade de trabalho, provoca o crescimento lento e precário (nanismo) e encurta a vida. Nessa área, a miséria física e moral é fruto do crescimento canceroso da monocultura, do latifúndio e da escravidão. Ao contrário da área canavieira, o Sertão nordestino é uma área de fome epidêmica, na qual a fome não era permanente, mas ocorria de forma aguda nos períodos de secas, sobretudo, nas de longa duração.

O Sertão nordestino não é uma área de miséria alimentar porque existia uma coexistência de certas condições naturais locais, e o gênero de vida dos seus habitantes, com seus hábitos alimentares complexos, que resultaram num tipo de dieta que considerava como a mais racional e equilibrada do país. A explicação está na ausência da monocultura e nas atividades pecuárias que contribuíram para que houvesse um expressivo consumo de carne, de milho e de rapadura, quase sempre associado ao leite. Daí a melhor dieta alimentar do sertanejo frente à dos moradores pobres da área canavieira, usando métodos de preparo e de cozinha trazidos da Europa e combinados aos novos ingredientes da terra. As “roças de matuto” expressam um tipo de policultura que associa a agricultura com a pecuária, expressando uma forma de adaptação do sertanejo às condições físico-climáticas. Além disso, o clima Semi-árido, com seus baixos graus de umidade relativa do ar, torna-se um elemento saudável, isento de inúmeras doenças tropicais.

No entanto, ao abordar a geografia sertaneja, aparece o contraditório. Apesar da valorização quase que telúrica, Josué de Castro, em alguns momentos, relaciona a paisagem geográfica do Sertão com as cenas do sofrimento humano. Castro destaca a presença da morte e do sofrimento na Região, que acompanha o sertanejo desde o nascimento: “O fato é que as crianças nascem mais para morrer do que para viver” (CASTRO, 1967, p. 41). De forma diversa da sua postura sobre a paisagem ambiental do Sertão nordestino, no livro “Geografia da Fome”, Josué de Castro dedicou o segundo capítulo do livro “Sete Palmos de Terra e um Caixão” (1967) a uma descrição do sofrimento humano no Semi-árido, intitulado de “Seiscentas Mil Milhas Quadradas de Sofrimento”:

Realmente que terra poderá dar maior impressão de sofrimento do que essa terra do Sertão Nordestino com seu solo curtido e roído pelos rigores do clima? Com a pele de seu solo magro, mal encobrindo o seu esqueleto de granito e de calcáreo, dilacerada em vários pontos, rompida pelos pontos das rochas mais duras que irrompem no meio da paisagem em brancos blocos escarpados, como se fossem mesmo os ossos da terra descarnada (CASTRO, 1967, p. 40).

Será então a seca a culpada pelo drama nordestino? Naquela época, a resposta a essa pergunta foi uma das mais importantes contribuições de Josué de Castro. Os julgamentos superficiais e os interesses políticos criaram um mito de que o atraso econômico e social da Região Nordeste decorria da terra, das condições físicas e climáticas desfavoráveis, e da raça de sua gente. A atuação intelectual e política do autor contribuiu para desmistificar a seca no Nordeste, retirando-lhe o peso da culpa total pelos problemas regionais.

Castro procurou distinguir as secas prolongadas e as calamidades sociais relacionadas com a própria constituição ambiental e geográfica da Região; ou seja, apesar da imagem episódica, as chuvas escassas, a temperatura elevada e a alta evaporação fazem parte da própria paisagem natural. Em discurso na Câmara Federal, analisando a seca de 1956, alardeada pelos seus pares como sendo um ano terrível de seca, chama a atenção para o fato de que as chuvas escassas, irregulares ou retardadas não são exceção, mas quase a regra naquela “[...] região chamada semi-árida, caracterizada, primordialmente pela incerteza, inconstância e irregularidade de suas chuvas” (CASTRO, 1968, p. 83). Estabelece a diferenciação entre a seca e os seus efeitos, quando se torna uma calamidade social. Nega, no entanto, que seja ela o fenômeno responsável pela fome e o subdesenvolvimento na Região. A seca, nesse caso, é causa secundária, cuja ocorrência agrava as condições de vida das famílias sertanejas empobrecidas. As causas são, portanto, mais sociais e econômicas do que naturais:

Há tempos que nos batemos para demonstrar, para incutir na consciência nacional o fato de que a seca não é o principal fator da pobreza ou da fome nordestinas. Que é apenas um fator de agravamento aguda desta situação cujas causas são outras. São causas mais ligadas ao arcabouço social do que aos acidentes naturais, às condições ou bases físicas da região. Muito mais do que a seca, o que acarreta a fome no Nordeste é o pauperismo generalizado, a proletarização progressiva de suas populações, cuja produtividade é mínima e está longe de permitir a formação de quaisquer reservas com que seja possível enfrentar os períodos de escassez [...]. Sem reservas alimentares e sem poder aquisitivo para adquirir os alimentos nas épocas de carestia, o sertanejo não tem defesa e cai irremediavelmente nas garras da fome (CASTRO, 2001, p. 242).

Em 1946, quando escreveu sobre a geografia da fome no Sertão nordestino, Castro já identificou as principais causas da calamidade que ocorre nos períodos de seca:

a) o regime inadequado da estrutura agrária na Região, a concentração da terra, expressa no latifúndio e nos minifúndios, sendo a causa central do problema;

b) a exploração do trabalho nas áreas privadas, com os trabalhadores submetidos ao regime de arrendamento para o plantio de subsistência e das lavouras de algodão, com uma alta exploração de suas capacidades de trabalho, ficando o proprietário com a maior parte do excedente gerado nas lavouras comerciais; e

c) a combinação da escassez dos produtos de subsistência com as crises econômicas inflacionárias, geradas fora da região das secas, resultavam no aumento excessivo dos preços dos alimentos, ampliando ainda mais a calamidade social.

Existem, pois, fatores estruturais internos e externos que contribuem para a manutenção das fragilidades sociais na região do Semi-árido, e que explodem como calamidade em cada período de estiagem prolongada. É essa a raiz também do atraso econômico regional, ao inviabilizar o adequado desenvolvimento das capacidades físicas e psicológicas das famílias sertanejas empobrecidas, para criar as alternativas adequadas de superação da pobreza. Ao contrário, há um desgaste permanente dessas capacidades, seja pelo desespero que se apodera do sertanejo nesses períodos de sofrimento, seja pela brusca mudança de seus comportamentos; e, finalmente, pelo abandono da sua própria terra.

Trata-se de mais uma contribuição de Josué de Castro, no campo de estudo que articula a sociologia com a psicologia, para a compreensão da complexidade dos problemas no Semi-árido. Ele foca sua atenção no ser humano, que reage inicialmente com desespero e resignação diante do drama que enfrenta, prevalecendo o sentimento de total impotência e da própria desvalia que se apodera da sua alma. A humildade e o aparente conformismo são formas silenciosas de reação “[...] diante dessa conspiração invencível das forças naturais e das forças sociais, associadas ambas, para o esmagarem em suas pretensões de obter qualquer melhoria de suas condições de vida” (CASTRO, 1967, p. 27). A mudança de comportamento expresso nas revoltas ativas, como nos saques que ocorrem até hoje nos período de seca, é um sinal de que a fome aguda avançou sobre o corpo e a alma do sertanejo, atingindo sua estrutura mental e sua conduta moral, despertando seus instintos primários.

As situações de calamidade também contribuem para desestruturação dos grupos humanos locais e para o despovoamento da Região. Acontece que o desespero da fuga também terminava em mais sofrimento e até em morte, pois chegando às cidades, desfazia-se a ilusão do sertanejo, ao perceber logo na chegada que a coisa era outra “[...] muita coisa pros olhos, pouca coisa pra barriga” (CASTRO, 1968, p. 25). Castro também afirmava que o Acre foi o grande sorvedouro de vidas sertanejas, fruto da improvisação da colonização amazônica.

Finalmente, faltava também à população, a capacidade e a oportunidade de se constituir como povo, de forma organizada, para enfrentar os desafios estruturais de uma realidade opressora. A conclusão de Josué de Castro em seu livro “Sete Palmos de Terra e um Caixão” é de que “[...] nunca se formou nesta área, pela sedimentação sociológica, a entidade povo, como expressão das aspirações e reivindicações de várias classes ou grupos sociais, e como força viva de orientação política do processo nacional” (CASTRO, 1967, p. 145).