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A compreensão da contribuição intelectual e política de Celso Furtado para o desenvolvimento regional do Nordeste brasileiro exige o entendimento das bases do pensamento histórico e estrutural desenvolvido na América Latina e sobre o significado estrutural e histórico e as características do subdesenvolvimento. A fonte inicial de observação e de inspiração de Furtado era a condição dos países subdesenvolvidos da América Latina, no contexto do pós-Guerra, com a reconstrução da Europa e a valorização do desenvolvimentismo, com base na industrialização. Naquele momento, o autor demonstrava sua preocupação para com as condições histórico-estruturais daqueles países que não conseguiam acompanhar o ritmo de crescimento econômico da Europa e América do Norte.

Essas e outras questões foram analisadas pela Cepal, criada em 1948 pela ONU. Como um de seus primeiros componentes, Furtado partilhou com Raul Prebisch e equipe, em 1949, da concepção do chamado “Manifesto Latino-americano” El Desarrollo Económico de América Latina y Algunos de sus Principales Problemas, que marca a fundação pública da Cepal, conclamando os países latino-americanos a engajarem-se na industrialização. O Manifesto era uma crítica ao falso senso de universalidade da teoria econômica elaborada nos países desenvolvidos, que passava a idéia de que o progresso técnico se difundiria de maneira linear do Centro para a Periferia da economia mundial.

Ao contrário dessa perspectiva de harmonia e cooperação mundial de homogeneização do desenvolvimento, baseada na doutrina do livre mercado, o pensamento cepalino mostrava o sistema real da Divisão Internacional do Trabalho e das características das relações Centro-Periferia, que concentrava a renda em benefício dos países industrializados. Com esse manifesto, a Cepal havia redescoberto a América Latina, explicando as peculiaridades do subdesenvolvimento com base na dependência tecnológica e nos desequilíbrios comerciais. Uma das principais diferenças entre países desenvolvidos e países subdesenvolvidos é a acumulação de novos conhecimentos e sua aplicação na elevação da produtividade. Com essa percepção, explica porque o subdesenvolvimento não se tratava de uma fase que antecedia ao desenvolvimento, conforme apregoava a doutrina dominante. Para os economistas da Cepal, era algo qualitativamente diferente.

Para Furtado (1985), o processo histórico era quem determinava as características de subdesenvolvimento em cada país. Foi essa a sua principal contribuição para a teoria

estruturalista da Cepal, desvendando os processos históricos das relações entre colônias e metrópoles, perpetuadas entre os países desenvolvidos e subdesenvolvidos, o centro e a periferia. Tal realidade gerava acomodação, e não conduzia à diversificação das estruturas produtivas, fragilizando a inserção desses países na divisão internacional do comércio, herdada do período colonial, dificultando a autonomia decisória e a formação da Nação.

A principal proposta da Cepal para superar a economia do tipo colonial era a industrialização capitaneada e orientada pelo Estado. Havia a convicção de que os países latino-americanos não poderiam elevar significativamente seus níveis de consumo de produtos manufaturados fora do caminho da industrialização. O fundamento da tese da “substituição de importações” era de que o desenvolvimento desses países subdesenvolvidos dependia de modificações na composição das importações, que levaria ao fortalecimento do mercado interno, iniciando pela industrialização de bens finais não-duráveis, até chegar, pela própria dinâmica do mercado interno, à produção de bens duráveis e de capital.

O papel do Estado nesse processo era fundamental, pois a industrialização sem controle e sem planejamento poderia conduzir à busca de lucros imediatos, gerando desequilíbrios, e não conduzindo à superação do subdesenvolvimento. A outra tese da Cepal era de que o planejamento era instrumento indispensável para o Estado, na promoção do desenvolvimento, orientando as inversões econômicas. Para Furtado (1985, p. 130), o planejamento era um processo de escolha de alternativas: “Tratava-se de inventar técnicas que permitissem colocar diante da sociedade, o horizonte de opções permitidas pela estrutura existente e pelo esforço de mudança consentido”. Os programas de desenvolvimento promovidos pelo Estado deveriam evitar os desequilíbrios externos e selecionar as atividades a serem estimuladas, considerando a escassez de capital para novas inversões. Deveriam ser incentivadas as atividades que provocassem o máximo de efeitos de encadeamento na matriz de insumo produto.

Outra contribuição fundamental de Celso Furtado foi a análise qualitativa da dependência econômica, cultural e política que se estabelece nas relações entre os países centrais e os periféricos. As novas formas de dependência tinham suas origens na Revolução Industrial. A dependência de base tecnológica logo se tornaria uma dominação econômica, subordinando o processo de formação de capital das economias subdesenvolvidas. Esses fatores explicam o ritmo lento de crescimento das economias subdesenvolvidas e a forte tendência aos desequilíbrios nas contas externas. A dependência também é cultural, com a indústria nascente nos países periféricos buscando imitar os países centrais.

Com base nesses elementos explicativos da dependência, é possível compreender a tese de Furtado sobre o subdesenvolvimento como expressão da dinâmica mundial engendrada pelo capitalismo. Não constitui uma etapa na trajetória do desenvolvimento e nem se trata de um atraso de um país ou região, mas uma condição histórica de desigualdade estrutural nas relações assimétricas entre a periferia, não-industrializada do mundo capitalista, com o seu Centro. Embora reconhecesse que o fenômeno do subdesenvolvimento se apresenta sob diferentes formas, apontava algumas de suas características:

a) o dualismo tecnológico, com uma escassa diversificação no aparelho produtivo que é fruto do processo de dependência tecnológica, tornando a industrialização retardada, em concorrência com as importações e não com a atividade artesanal preexistente;

b) a existência de um mercado interno frágil, incapaz de dinamizar o crescimento econômico, tendo em vista a concentração das riquezas e o foco da produção industrial no mercado consumidor de alto poder aquisitivo;

c) a deterioração dos termos de trocas e fuga de capitais resultando em agudos desequilíbrios no balanço de pagamentos e em processos cíclicos de contração da economia; e

d) a característica política dessas sociedades agroexportadoras era o autoritarismo baseado no anacronismo da estrutura agrária.

O olhar de Furtado também se direciona para as contradições e desigualdades regionais existentes dentro de um país subdesenvolvido. Partia da constatação de que o desenvolvimento econômico era, em si mesmo, um processo heterogêneo e acentuadamente desigual. Reconhecia que a concentração das riquezas no capitalismo é inerente a todo o processo de crescimento econômico. No caso brasileiro, sendo um país de dimensão continental, o desenvolvimento espontâneo, comandado pelas forças livres do capital, traria problemas de desigualdades regionais (FURTADO, 1997, p. 376).

Essa é a porta de entrada de Celso Furtado na questão regional nordestina. Mesmo antes de assumir as funções técnicas e políticas na Região, já havia formado um referencial sobre as situações de desigualdades internas nos países periféricos. Além disso, interessava demonstrar que a superação do subdesenvolvimento era possível por meio de um processo intensivo de industrialização, planejado e conduzido pelo Estado, conjugado com outras iniciativas de modificação da estrutura agrária. A região Nordeste, sua terra natal, foi o cenário desafiador no qual começou a travar a batalha contra o subdesenvolvimento.

5.2 O DESENVOLVIMENTO COMO PROJETO SOCIAL

Furtado desenvolveu sua concepção de desenvolvimento num momento intelectual e político propício no pós-Guerra, quando os esforços mundiais de reconstrução econômica se orientavam por uma perspectiva “desenvolvimentista”. Os ideários do liberalismo que predominaram até a grande crise econômica dos anos 1920 e 1930 estavam também sendo questionados. Os estudos da Cepal colocavam a nu, o problema do subdesenvolvimento dos países periféricos e a incoerência das teorias liberais, em explicar tal fenômeno e apontar as saídas. É nesse contexto, que surgem as novas teorias: “[...] se não existia uma teoria do desenvolvimento é que até recentemente inexistira preocupação com o tema. A visão corrente dava por assentado que o dinamismo da sociedade liberal gerava espontaneamente o progresso econômico” (FURTADO, 1985, p. 150).

Sua concepção interdisciplinar do desenvolvimento faz com que ele critique o reducionismo econômico e sociológico sobre o fenômeno. Destacou a necessidade de apreender o desenvolvimento como um processo global de transformação da sociedade ao nível dos meios, como processo de acumulação e de ampliação da capacidade produtiva (crescimento econômico, evolução das forças produtivas, aumento da produtividade global), mas também dos fins, como a apropriação do produto social. Nesse sentido, os resultados concretos dos processos históricos de ampliação da capacidade produtiva podem variar quanto aos rumos e objetivos que se pretenda alcançar: “[...] como divisão social do trabalho e cooperação, mas também estratificação social e dominação; introdução de novos produtos e diversificação do consumo, mas também destruição de valores e supressão de capacidade criadora” (FURTADO, 1980, p. 11).

O conceito de desenvolvimento expressa, portanto, dois sentidos distintos: a evolução de um sistema social de produção, na medida em que este, mediante a acumulação e progresso das técnicas, torna-se mais eficaz, ou seja, eleva a produtividade do conjunto de sua força de trabalho; e o grau de satisfação de necessidades humanas, com base em critérios objetivos: alimento, vestimenta, habitação, aumento da expectativa de vida, além de critérios subjetivos. Trata-se, portanto, de uma concepção de desenvolvimento como projeto social (FURTADO, 1984, p. 12) e não apenas um processo de acumulação ou de aumento da produtividade econômica. Para Furtado, o que caracteriza o desenvolvimento é o projeto social subjacente. Ou seja, a sua direção política para responder às aspirações de uma coletividade.

O processo de desenvolvimento é, portanto, algo positivo e imperioso. Trata-se de uma batalha a ser travada, requerendo planejamento e organização, para realizar as aspirações coletivas de uma sociedade. Defendia a construção de um projeto de nação que tivesse como objetivo uma maior igualdade distributiva, por meio do desenvolvimento econômico e social. É essa a principal “causa do desenvolvimento”: um direito de uma sociedade a ter um projeto de desenvolvimento que faça prevalecer os critérios políticos sobre os interesses e a lógica econômica dos mercados (FURTADO, 1978, p. 317). Para isso, o Estado é o instrumento fundamental para promoção do desenvolvimento, com suas funções reguladoras e de intervenção, combinadas com os avanços da participação política dos setores populares nas decisões nacionais.

É a democracia a outra contribuição fundamental de Furtado na discussão sobre o desenvolvimento. Defendia a tese de que a democracia deveria ser um instrumento fundamental na solução dos impasses do subdesenvolvimento, como caminho para superação do subdesenvolvimento. Em suas obras, analisa as diferenças entre os regimes democráticos e os regimes fechados ou autoritários, e defende a democracia como o meio mais apropriado para canalizar as tensões geradas pelo processo de desenvolvimento. Portanto, como forma de superação do subdesenvolvimento e de construção da Nação. Essa defesa da democracia fica ainda mais nítida com a participação do intelectual nas lutas pela redemocratização no Brasil, contra o Regime Militar autoritário.

Deve-se ressaltar que o desenvolvimento tem também uma forte dimensão cultural. Em primeiro lugar, porque depende da criatividade humana para o desenvolvimento de técnicas e instrumentos para aumentar sua capacidade de ação. O processo de desenvolvimento comporta elementos inovadores, que expressam a criatividade diante das distintas realidades. Em segundo lugar, porque o processo e os resultados do desenvolvimento expressam “[...] valores que o homem adiciona a seu patrimônio existencial” (FURTADO, 1984b, p. 107). Ou seja, o desenvolvimento depende da orientação da capacidade criativa do ser humano, seja na geração de inovações, seja nos avanços tecnológicos ou na produção não- material (artes, idéias e valores etc) para a conquista de “formas superiores de existência”.

A teoria do desenvolvimento, de Celso Furtado tenta, portanto, recuperar o caráter multidimensional do desenvolvimento considerando suas finalidades. Desenvolvimento significa mais do que o simples crescimento da economia ou a acumulação de capital, porque, além do incremento da capacidade produtiva e do aumento da produtividade, implica também a extensão do bem-estar para a sociedade como um todo. Esta perspectiva está presente na obra “Desenvolvimento e Subdesenvolvimento”, publicada em 1961, quando o autor

explicava o processo de desenvolvimento, numa perspectiva macroeconômica, com “[...] as causas e o mecanismo do aumento persistente da produtividade do fator trabalho e suas repercussões na organização da produção e na forma como se distribui e utiliza o produto social” (FURTADO, 1961, p. 19).

Seria possível então combinar o crescimento econômico com o desenvolvimento na sua perspectiva mais ampla? Furtado acreditava totalmente nessa possibilidade e era um dos seus principais defensores em meados do século XX. Por isso, dedicou parte significativa do seu tempo e dos seus estudos para compreender e descrever as características do processo de desenvolvimento econômico, considerando as distintas realidades dos países desenvolvidos e subdesenvolvidos. No entanto esse processo tinha limites fundamentais.

A partir da década de 1970, Furtado passa a inserir nas suas obras uma discussão mais clara sobre os limites do desenvolvimento26. Chamava a atenção para dois aspectos principais: o distanciamento entre o crescimento econômico e a satisfação das necessidades essenciais da população (a contradição social do desenvolvimento); e as conseqüências do crescimento econômico na degradação dos recursos naturais (a questão ambiental). O aumento da eficácia do sistema de produção não é a condição suficiente para que sejam satisfeitas as necessidades elementares da população. Nas últimas décadas, essas contradições ficaram ainda mais visíveis, pois os processos de crescimento econômico conduziam à degradação das condições de vida de uma população pelo aumento do desemprego, devido à introdução de técnicas mais sofisticadas. O segundo limite indicado por Furtado é o relativo à degradação ambiental como conseqüência do desenvolvimento. Reconhecia que eram cada vez mais nítidos os sinais de destruição do meio ambiente, com os riscos de esgotamento de recursos naturais não renováveis e de outros processos naturais irreversíveis. É por essa razão que Buarque (2000) assinalou que Celso Furtado “[...] como poucos economistas e pensadores, está em paz com a natureza que ele, antes de tantos outros, incluiu em suas reflexões como um valor a ser respeitado” (BUARQUE, 2000, p. 63).

Todos esses aspectos ou dimensões do desenvolvimento sustentável (econômico, social, cultural, político e ambiental), de diferentes modos, estão presentes no pensamento e nos projetos de Celso Furtado para a região Nordeste, incluindo o Semi-árido.

26

Retoma-se essa discussão de forma mais detalhada na Terceira Parte da Tese, quando se aborda as novas concepções de desenvolvimento sustentável.