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5.2 Análise e discussão dos resultados

5.2.3 Segundo princípio: O currículo como espaço de cultura

A este segundo princípio explicitado na nova Proposta Curricular, já discutido anteriormente, encontram-se vinculadas as seguintes categorias: aspectos políticos, aspectos emocionais, diversidade dos alunos e condições sociais. Tais categorias serão analisadas nos moldes expostos no Quadro 8 (matriz de análise).

Neste princípio, o currículo apresenta-se como “[...] a expressão de tudo o que existe na cultura científica, artística e humanista, transposto para uma situação de aprendizagem e ensino”, apontando no sentido de que “[...] todas as atividades escolares são curriculares ou não serão justificáveis no contexto escolar” (SÃO PAULO, 2008d, p. 8). Com essa concepção de currículo a ser atingido na escola, por meio da nova Proposta Curricular, foram analisados os fatores dificultadores e facilitadores desse processo.

5.2.3.1 Fatores dificultadores

Ao analisamos, nas entrevistas, os fatores dificultadores na implantação da Proposta Curricular, eixo1, núcleo1(núcleo dos professores), percebemos, de forma intensa, na fala dos entrevistados, a presença do fator diversidade dos alunos, que aparece atrelado a condições sociais e emocionais.

Na EE dos Crisântemos:

Eu acho que a Proposta em si, ela poderia ser mais bem trabalhada, se levassem em consideração as questões dos alunos, as questões de idade, as

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questões de região, a diversificação cultural do município, diversificação social, cultural que é importante. Diversificação social não é o dinheiro, é o que ele viu, o que ele teve acesso, o que ele pode falar a respeito. Nós moramos aqui no litoral, Guarujá, eles moram aqui, é a Pérola do Atlântico, mas a realidade deles é bem distante.

[...]

Não dá para fazer como a Secretaria quer, não é de uma noite para o dia não. Se você pegar a minha clientela aqui dentro do Guarujá mesmo, e pegar uma clientela de Vicente de Carvalho, são situações diferentes, não dá para você igualar... (MARGARIDA – APÊNDICE A).

Na EE dos Girassóis:

Não é toda a região que tem a mesma linguagem, os mesmos conteúdos, os mesmos problemas. Então, para algumas localidades, os cadernos pode até ser que tenham sido compreendidos, mas aqui na escola nós tivemos muitos problemas no começo, porque quando nós pegamos os nossos alunos de quinta série, eles não vieram com uma preparação de primeira à quarta, para continuar seguindo o caderno, eles vieram com outra linguagem... (GARDÊNIA – APÊNDICE A).

Regiões diferentes têm necessidades diferentes. Por que, então, ao invés de você pegar uma equipe única, com uma única visão e elaborar uma Proposta, por que não criar, nas Diretorias, grupo de estudos para analisar a nossa situação, a situação da região, quais são as características do nosso alunado, quais são os nossos interesses? Entendeu? Então vamos trabalhar em cima deles. Nós temos o currículo, como nos podemos adaptar esse currículo à nossa realidade?

[...]

Quem está pisando no chão da escola, todos os dias com seus alunos, conversando, sentindo os problemas, e mesmo entre escolas, é que pode saber. Já trabalhei em outras escolas e você sabe que as escolas são diferentes, o mesmo trabalho que você faz aqui, você não pode fazer lá dentro da favela (ÍRIS – APÊNDICE A).

Com a democratização da Educação, as escolas públicas são chamadas a atender a todas as crianças. As decisões locais são a mais glorificadas pela política institucionalizada, no entanto, a aprovação de uma Proposta Curricular unificada vem de encontro a esse número imenso de diferenças encontradas na população escolar, como colocam os professores entrevistados.

Para Apple e Beane (2001, p. 17), muitos acreditam que “[...] democracia é apenas uma forma de governo e, por isso não se aplica a escolas e outras instituições sociais. Muitos também acreditam que a democracia seja um direito dos adultos, não dos jovens, alguns pensam que a democracia simplesmente não funciona nas escolas”. Acreditamos que os que elaboraram a Proposta estão nesse grupo apontado pelos autores, tendo em vista a forma de sua implantação. Se professores fossem ouvidos, sobretudo os que se encontram no chão da escola, como os entrevistados citados acima, que percebem as disparidades existentes entre os

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alunos que estão nas escolas públicas, provavelmente a Proposta seria diferente, ou pelo menos mais democrática.

Entre as dificuldades sociais no processo de implantação, cabe citar as seguintes, na EE dos Girassóis:

Fora a questão econômica, existe assim uma questão social, que acho que vai além, é como eles encaram a escola. Não é uma questão só de conteúdo, o que preocupa é a forma como o aluno e os pais, esses poucos que vêm à escola e a gente conversa, é a visão da escola que mudou. Acho que valia a pena um estudo em cima disso, conversar com os alunos, “o que é a escola para você?” “O que representa?”. Com os pais, porque se sabe que, sem o suporte dos pais, nossas quatro, cinco horas aqui se perdem durante o restante da vida. A gente tem que ter um suporte em casa também... Para o pai, qual a expectativa que ele tem da escola? Ele coloca o filho na escola, para quê?

[...]

Quando essa escola era tempo integral, sabe o que nos ouvíamos? Eu ouvi pais dizendo: “por mim, meu filho entrava às sete da manha e sai só às nove da noite. Porque assim eu não tenho que me preocupar com ele”. Ela vê a escola como? Como depósito? (ÍRIS – APÊNDICE A).

Na mesma escola, quanto aos aspectos emocionais, seguem as colocações dos professores:

Eu gosto da Proposta, mas é complicado, é onde o professor se estressa muito. O professor que se cobra... Esse ano foi, pra mim, estressante (AMARÍLIS – APÊNDICE A).

Fala-se muito em motivação, o professor tem que motivar o aluno, a escola tem que ser fonte de motivação para o aluno, só que a maneira como eles estão tratando os problemas que são reais, que a gente observa, pelas avaliações, o modo como eles estão trabalhando isso, dá a entender, pelo menos para mim, parece que a culpa toda é do professor, só o professor tem que mudar. A progressão continuada, por exemplo, não deu certo, porque o professor não soube trabalhar... Ah, esse currículo não está surtindo o resultado esperado, porque o professor não está trabalhando como ele deveria trabalhar... Então isso acaba o quê? Desmotivando o professor, desmotiva, sabe, você não... Eu pelo menos não vejo um... Seria muito simplista falar um elogio, não é um elogio, mas, sabe, eu não sinto uma valorização, uma fala, uma palavra de valorização, em relação ao professor. O próprio aluno, você vê como a coisa, talvez não seja só da minha cabeça, porque o próprio aluno fala: “ah, eu não quero ser professor!” (ÍRIS – APÊNDICE A).

O espaço para a execução do trabalho docente é a escola, uma organização na qual vários outros sujeitos, como diretor, funcionários, pais e comunidade, intervêm e interagem uns com os outros. Dessa forma, reafirma-se que um professor trabalha com e sobre os seres humanos, sofrendo influências das diversas esferas e coletividades humanas. Nesse contexto, é importante destacar o papel da aprendizagem dentro e fora da sala de aula, assim como o papel do professor nessa sociedade.

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O que está sendo discutido pelos professores acima citados não é apenas o conteúdo formal do currículo na escola. Como Apple e Beane (2001, p. 26) apontam, a vida cotidiana oferece uma espécie de “currículo oculto”, por meio do qual as pessoas aprendem lições fundamentais sobre justiça, poder, dignidade e autoestima. Talvez uma alternativa fosse que professores e alunos, somados à comunidade escolar, criassem meios de construir uma aprendizagem que fosse significativa e que permitisse a formação de uma comunidade que ensina e aprende junto. Nas palavras de Paulo Freire (2010, p. 78), “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, midiatizados pelo mundo”.

Quanto ao papel do professor na sociedade, para Gatti e Barreto (2009), ele passa por uma significativa reformulação, tendo em vista o crescimento da informação e suas formas de circulação possibilitadas pelo avanço tecnológico. Além da importância econômica, o trabalho docente tem papel central do ponto de vista político-cultural. Os autores afirmam que: “os professores constituem, em razão do seu número e da função que desempenham um dos mais importantes grupos ocupacionais e uma das principais peças da economia das sociedades modernas” (GATTI; BARRETO, 2009, p. 14), embora existam inúmeros estudos a respeito do mal-estar docente, fenômeno provocado na contemporaneidade, e da inegável proletarização da profissão docente.

Alguns professores salientam, ainda, como dificultador, o aspecto político da implantação da Proposta. Na EE dos Crisântemos, a professora Margarida coloca:

O problema é político. Nos quatro anos não dá, e sem falar nas mudanças no meio do caminho. Se não era do meu partido, por exemplo, então vamos tirar, não levam em consideração se era bom, se funcionava, se o aluno gostava... (MARGARIDA – APÊNDICE A).

Na EE dos Girassóis, a professora Gardênia aponta:

Isso é um aspecto político, o governador quer implantar, nos quatro anos de mandato dele, então eles querem colocar em todos os anos de quinta à oitava, aí fica complicado... O que eu pude entender, o que critico foi realmente a forma de implantação e a Política da Secretaria da Educação querer resultados imediatos, realmente é mais ou menos isso... (GARDÊNIA – APÊNDICE A).

No núcleo gestor (núcleo 2), observamos que o professor coordenador Lírio, da EE dos Crisântemos, coloca:

Com a mudança de governo, todas as pessoas que fizeram a implantação do currículo, elas saíram, e a proposta inicial, pelo que a gente ficou sabendo, era acabar com os cadernos dos alunos e dos professores. Só não acabou agora, porque o pessoal da Educação estava contra. Os dirigentes, segundo fui informado, pediram para que desse continuidade, porque senão a coisa tinha acabado de uma vez, ia começar uma nova reformulação de novo. Então, como eles falaram no nosso último encontro, eles estão trocando a roda com o carro andando... (LÍRIO – APÊNDICE A).

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A diretora dessa escola toca em um ponto político crucial na implantação de programas e projetos na SEE/SP:

Mas, tudo tem que ser rápido, para acontecer no governo de “fulano”, porque ele tem que levar a fama. Se fosse devagar, passariam os quatro anos e aí poderia ficar pior, tudo ser abandonado, como já vimos acontecer (VERBENA – APÊNDICE A).

Quanto à diversidade dos alunos, a diretora da EE dos Girassóis argumenta:

Nem sempre a clientela que eu recebo, ela está apta a prosseguir, dando continuidade a um programa. A gente vê, no sexto ano, que os alunos chegam, sem estar praticamente alfabetizados, então é um trabalho que tem que ser em paralelo, a alfabetização e o conteúdo da série (GÉRBERA – APÊNDICE A).

Por fim, na mesma escola, as professoras coordenadoras também apontam fatores dificultadores:

Então, tudo que é mudança a gente tem que ter um tempo. Então tá difícil, famílias desestruturadas, que não dá o incentivo, porque o aluno precisa do incentivo dentro de casa. A escola sozinha não faz, “ah, então eu sou obrigado a ir à escola”, “ah, a Bolsa Família, senão meu pai vai ser chamado ao Conselho Tutelar”, entendeu? (TULIPA – APÊNDICE A).

A gente vê que não são todos os alunos que têm o interesse de trazer o material. A gente vê um desinteresse muito grande, eu não culpo só a escola, eu culpo também a família, porque não participa. Quando a comunidade, a família está muito engajada num problema, ou dentro da escola, eu acho que aí a gente cresce com isso, a gente se fortifica mais. Aqui nós temos muito a ausência dos pais nas reuniões (CRAVINA – APÊNDICE A).

5.2.3.2 Fatores facilitadores

Alguns pontos foram elencados como fatores facilitadores (eixo 2) em relação ao princípio do currículo como espaço de cultura.

Na EE dos Crisântemos, o aspecto de interação com a comunidade é apontado como fator facilitador. Na fala das professoras, temos:

Nós estamos dentro de uma favela, mas, ao mesmo tempo, é assim... Eu, por exemplo, eu me sinto muito bem, me sinto tão confortável de andar em qualquer rua, subir o morro, descer o morro, como eu ando no meu bairro, sem problema algum e, então, eu acho que isso acontece com a maioria dos professores aqui, conhecemos a maioria dos pais.

[...]

E a comunidade vem, participa dos eventos. O aluno está peralta demais, não deu para aguentar, chama a mãe, a mãe vem, chama o pai, o pai vem, um ou outro não aparece. Não vamos dizer que vem 100%, porque 100% não existe, mas, de um modo geral, são presentes, vêm até sem chamar. E aqui é muito bom, funciona bem. Então por isso eu acho, quanto mais livre fica a coisa aqui, melhor ela vai (MARGARIDA – APÊNDICE A).

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Somente nessa escola é que foi indicado esse aspecto de interação social como fator facilitador no princípio do currículo como espaço de cultura.

É importante considerar que a nova Proposta Curricular do estado de São Paulo teve o seu processo de implementação no ano de 2008. Segundo Murrie (2008, p. 8), “a implantação da Proposta Curricular não pode se caracterizar como a substituição das práticas já existentes pelo discurso propositivo”. Alega a autora que, naquele ano, a Proposta ainda não havia sido implantada, tendo sido realizadas diversas avaliações junto aos professores e gestores para que fossem feitas as devidas adequações, em um movimento de ação-reflexão-ação contínua, e que somente no ano de 2009 é que ela seria realmente implantada. Como podemos observar pela fala dos professores e gestores, a Proposta não foi percebida da forma como alegam os seus mentores, principalmente no tocante à preocupação com a diversidade dos alunos, com os aspectos sociais e com o aspecto político.