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5.2 Dez Casos em Análise sob óticas distintas

5.2.1 Ótica das Vítimas e dos Processos Jurídicos

5.2.1.6 Sexto: o caso de Zilá

Zilá nascida em Uberlândia, em 1957, é negra e casada com um homem negro, é também mãe de dois meninos e duas meninas, cujas idades eram, na época do caso, quatorze, dez, sete e um ano, respectivamente. A vítima com primeiro grau completo é a única entre as entrevistadas que trabalhou por menos de seis meses na empresa em que sofreu as agressões, pois tinha contrato de serviço temporário, pelo prazo de quatro meses (duração). Foi selecionada pela empresa X, para trabalhar na empresa I, na função de ajudante industrial, separando produtos e empacotando-os.

A ex-funcionária da empresa I, uma indústria multinacional, afirma que o emprego era fundamental para agregar renda à família a fim de prover o sustento dos filhos. Tal informação foi corroborada por sua testemunha, a qual menciona que o gerente, denominado nesta pesquisa como Zev, dizia não depender do trabalho, visto ser proprietário de uma empresa, insinuando, assim, que a vítima não deveria confrontá-lo, já que sua situação era oposta.

O marco para o assédio moral ocorreu quando Zev dirigiu-se à funcionária como “neguinha”, em público (momento em que a entrevistada pensou que não fosse com ela, mas o agressor insistiu: “Você mesmo neguinha, vem cá!” [Zilá]), dando ordem para que ela trabalhasse à frente da esteira. Segundo a vítima, o gerente entendia que as negras e mais “gordinhas” (“relação com força”) eram mais aptas, tanto que, em situação anterior, havia chamado Zilá e outra colega negra de “negronas”. Zev já tinha agido de forma semelhante com outra funcionária, no passado, chamando-a sempre de “pretinha”, com ares de

superioridade e sarcasmo, como apontam a inicial (AUTOS). Contudo, o caso de Zilá foi além, devido à sua repercussão. O gerente, dias depois, advertiu a funcionária, dizendo que não a havia chamado de “negrinha”, e, sim, de “amiguinha”, intimidando a vítima a não falar mais sobre o assunto, pois poderia ser demitida. A vítima, em uma situação de desbalanceamento de poder (EINARSEN, 1999; SALIN, 2003a) diante do assédio descendente (direção), pede ao gerente que a chame pelo nome, já que utiliza crachá de identificação. Entretanto, o agressor, sem dar atenção à funcionária, ordenou que voltasse ao trabalho, explicando que a vítima não entendeu a forma “carinhosa” com a qual foi tratada.

A partir da discriminação racial sofrida e diante da indiferença do agressor, Zilá procura aconselhamento jurídico (reação). Na tentativa de apaziguar a situação, a diretora da unidade convoca Zilá para uma conversa em particular e pede desculpas, trocando, ainda, o gerente de turno, a fim de evitar o convívio com Zilá. Isso ocorreu nos seus últimos dois meses de trabalhos. Nesse momento, a entrevistada já vinha de um quadro de sofrimento, a partir dos olhares de deboche do gerente, suas ameaças e do tratamento desrespeitoso e sarcástico (táticas).

Zilá, com a dignidade ferida, disse à diretora que aceitava as desculpas, mas já havia tomado providências no âmbito jurídico, apesar do receio de não encontrar outro emprego a posteriori, receio esse compartilhado por seu marido. No desenrolar desse processo, a vítima também passou a ser a notícia da empresa, tornando-se alvo de boatos e de olhares curiosos e especulativos por parte dos colegas. E se sentia, conforme seu relato, envergonhada de entrar no refeitório e, por isso, uma colega buscava seu lanche e Zilá fazia suas refeições de modo mais isolado no pátio.

A entrevistada aponta a falta de profissionalismo do gerente como causa da violência moral vivenciada. Alega, ainda, que não houve reciprocidade de dedicação por parte da empresa, pois o funcionário deve se apressar para levar os filhos para a creche e bater o cartão na hora certa enquanto a empresa não ouve os funcionários e não investiga o ambiente de trabalho. Além disso, centraliza, muitas vezes, o poder em um superior que se sente no direito de rebaixar os subordinados pelo fato de esses não terem um alto grau de escolaridade (como o superior hierárquico), ou mesmo pela cor da pele. Em relação a ações reativas, a entrevistada explica que, depois do seu caso, soube, por intermédio de outras pessoas que trabalham na empresa I, que o ambiente de trabalho mudou bastante, tendo sido inseridas, na empresa, palestras proferidas por especialistas sobre o assunto. Ademais, ela menciona que, após praticamente um mês do seu contrato de trabalho ter sido encerrado, Zev foi demitido.

Vale observar que o caso de Zilá não seguiu o curso típico do psicoterror apresentado por Leymann (1996b), uma vez que saiu da empresa em virtude de seu contrato temporário ter finalizado, mas não foi demitida antes de ele vencer, além disso, como foi dito, o assédio moral teve como particularidade se desenvolver a partir da discriminação racial. Nota-se, portanto, que a empresa agiu de modo reativo as problemas enfrentados pela vítima, mas ao contrário do caso de Efrata a direção da organização não se coadunou com o agressor.

A entrevistada finaliza seu discurso, comentando que o dinheiro da indenização ajuda muito, porém, o sentimento de ter sido injustiçada e desmerecida ainda lhe causa desconforto e revolta interior (consequência). O “clima pesado” experimentado no ambiente de trabalho também desencadeou o medo de ser novamente tratada daquela forma. No entanto, por necessidade de trabalhar, Zilá relata que não ficou desempregada, tendo encontrado outro emprego rapidamente, no prazo de um mês, citando ainda que trabalhou, desde sua saída da empresa I, como doméstica e em uma lanchonete.

Assim, considera-se também como fonte de assédio moral a discriminação, como no caso apresentado de Zilá. Adams (1992) reforça essa consideração, ao mencionar que as formas de hostilidade no mundo do trabalho são, de fato, distintas, mas podem se sobrepor. Corroborando nessa direção Battistelli, Amazarray e Koller (2011) explicam que as vítimas geralmente pertencem a segmentos sociais de mulheres, negros, homossexuais e portadores de alguma necessidade especial. Zilá apresenta mais de um elemento que a coloca no quadro exposto pelos autores, pois é mulher, negra, moradora de periferia e com baixo poder aquisitivo (DIÁRIO DE CAMPO).

A vítima expressa reflexão sobre o preconceito racial, mostrando preocupação em relação aos seus filhos, pois diz que a sociedade tenta mascarar, mas existe muito preconceito, referindo-se, também, às escolas. Nesse sentido, Barreto (2006) refere-se à forma de colonização nacional, pois, segundo as palavras da autora, perpetua até os nossos dias a prática de impor uma condição de inferioridade ao outro, revelando relações sociais autoritárias e atrasadas entre as classes sociais.

De acordo com o parecer do juiz de primeira instância sobre o caso: “o brasileiro insiste em afirmar que não tem preconceito racial, quando a realidade demonstra o contrário” (AUTOS). O magistrado também mostra outros casos na jurisprudência, em que a discriminação ocorre, como, por exemplo, a discriminação por motivo de sexo, enfatizando que não se podem considerar tais práticas como “normais”, porque, nesse caso, logo “nos tornaremos insensíveis moralmente” (AUTOS). E ainda reflete que

Não se pode pactuar com atitudes como as perpetradas pelo gerente da primeira reclamada. Fechar os olhos para tais questões ou tentar minimizá- las é contribuir para que continuem ocorrendo injustificadas exclusões sociais, seja em virtude da raça, do sexo, da idade, da condição econômica etc. Fazer de conta que o problema não existe é pactuar com o ilícito, é permitir que a cada dia e cada vez mais pessoas sejam atingidas em sua dignidade. Não podemos perder nossa capacidade de indignação diante de atos que importem em violações do patrimônio moral de quem quer que seja (AUTOS).

Apesar de a empresa I não ter fechado os olhos completamente para a perseguição cujo alvo foi Zilá, a mediação foi reativa, sendo mais efetivo o caminho pautado na mediação preventiva, pois os atos agressivos tendem a se multiplicar, já que os trabalhadores espelham- se nas condutas observadas de seus superiores por intermédio do aprendizado social (SALIN, 2003a). No caso da entrevistada, quando o gerente a intimidou, dizendo que não a chamou de “negrinha” e sim, de “amiguinha”, o discurso foi proferido tendo por testemunha um supervisor em treinamento.

Diante do exposto, é vital estimular a comunicação transparente e de confiança entre os funcionários (KEASHLY; NEUMAN, 2004; MARTININGO FILHO; SIQUEIRA, 2008), tendo em vista um compromisso expresso da empresa de que ali não se toleram condutas que representem abuso de poder. Faz-se necessário investir na formação e informação dos trabalhadores a respeito do tema (NASCIMENTO, 2011), podendo envolver, para isso, setores internos da empresa, bem como assistência externa advinda de pesquisadores acadêmicos, profissionais de RH, consultores, entre outros, no intuito de contribuir para o bem estar do trabalhador, operando sob o pilar do monitoramento contínuo do ambiente de trabalhado (KEASHLY; NEUMAN, 2004). Isso significa que a decisão pela ação preventiva mostra, potencialmente, maiores benefícios e menores dispêndios (BRADASCHIA, 2007), não apenas para a organização, mas, também, para a própria sociedade. Por esse motivo, o Estado também é responsável por combater um problema de consequências complexas e graves que tem se tornado uma questão de saúde pública (FREITAS, 2007a; ZANETTI, 2008).

Dessa maneira, o monitoramento do ambiente de trabalho, levando em consideração a prevalência do uso de táticas externas do agressor, viabiliza alternativas austeras de não concordância com a prática da violência moral no trabalho, adotando uma política séria contra o assédio moral. Mas, a prevalência de táticas mais sutis, como vistas no caso de Acsa, de Diná e, especialmente, no caso de Carmela, parece representar o assédio moral em seu estado mais puro e mais difícil de ser identificado, já que há uma razão contundente, porém,

camuflada para eliminar o alvo. No entanto, sabe-se que, na prática, há uma mescla entre as duas táticas: as externas, mais perceptíveis, e as mais sutis. Porém, como dito, há, geralmente, proporções diferenciadas em cada caso, atreladas às raízes do assédio. Essa consideração torna ainda mais salutar a necessidade de prevenção do assédio moral, tendo em vista a sutileza das táticas.

Para os próximos quatro casos a serem expostos, optou-se por apresentá-los na ordem em que, na percepção da pesquisadora, pareceu haver maior impacto no sentido de expressão da vítima face ao assédio moral sofrido. Esse teor de consequência no nível individual atrela- se, justamente, à tipologia dos atos agressivos, ou seja, à prevalência de táticas externas ou sutis. Em geral, permeia nas ocorrências falta de preparação gerencial dos superiores, denotando, potencialmente, como se refere Amazarray (2010), em expressões de estratégias de gestão. Cabe ainda ressaltar que para as próximas reflexões serão detalhados contextos diferenciados que em algum grau podem contribuir para o assédio moral. Esses contextos ligam-se a função comissionada das vítimas, em que há severas pressões para o cumprimento de metas, como também o cenário econômico instável. Tais questões demandam maior atenção por parte dos superiores de nível hierárquico, como também responsabilidade da organização na preparação de lideranças (LORENTZ; LIMA; MAESTRO FILHO, 2011).