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Silvia Cristina Puxcwyj Krikati

No documento ILMA MARIA DE OLIVEIRA SILVA (páginas 81-88)

1 LIDERANÇAS INDÍGENAS: um caminhar pela história

1.3 Lideranças indígenas políticas krikati

1.3.2 Silvia Cristina Puxcwyj Krikati

Silvia Puxcwyj (Figura 06) nasceu no dia 03 de setembro de 1975 na aldeia São José, situada ao Oeste do Maranhão a 18km de município Montes Altos. Filha de Durval Camôc

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Os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI) são unidades de responsabilidade sanitária federal correspondentes a um ou mais territórios indígenas.

Krikati e de Luzia P`yncry Krikati, ambos falecidos. Tem cinco irmãos – três homens e duas mulheres. É casada com Jair Anjõhcohra Krikati. Tem quatro filhos – três homens, uma mulher e uma neta. O seu nome indígena foi dado pela mãe paterna – Puxcwyj – “é o feminino de jatobá69, mas pode significar também, pomba mensageira. Vim compreender meu nome muito tardiamente aos 38 anos, pois o nome determina o lado a que pertencemos, de cima ou de baixo e se é horizontal ou vertical. O meu nome me faz pertencer a metade de cima, logo é vertical”, portanto, corresponde a estação seca (Atuk).

Silvia Puxcwyj relata que viveu uma infância normal e uma adolescência cheia de sonhos e momentos nebulosos. Conta: “Cresci acompanhando a luta do meu povo pela demarcação de nossa terra, depois por saúde e educação de qualidade que viesse de fato atender nossas expectativas. A mulher indígena é quem determina a criação dos filhos e o que vai acontecer na aldeia, ou seja, é ela que decide como se dá a organização social do nosso povo e os homens sabem disso, porém muitos fingem não saber. Sempre participei das rodas de conversas das mulheres e ouvia quando elas decidiam o planejamento das atividades tanto delas

Figura 6: Fotografia de Silvia Cristina Puxcwyj Krikati

Fonte: Arquivo pessoal

quanto dos homens. A maioria das mulheres velhas não sabe escrever e nem precisa, fazem tudo oralmente e dá certo. Quando o cantor vai para o pátio esperando o sol acordar, são as mulheres que estão lá prestigiando as cantorias; quando os homens vão para roça plantar, são as mulheres que acompanham nesse processo. Preocupam-se com a colheita. Nós mulheres indígenas somos importantes para o funcionamento da aldeia, mas isso fica meio disfarçado, os homens pensam que somos submissas”.

A narrativa expressa a tradicional divisão sexual de trabalho. Embora atualmente não seja mais tão bem definida entre os Krikati quanto a tempos anteriores, ainda se percebe que as relações de gênero estão caracterizadas por desequilíbrios em favor dos homens, o que manifesta principalmente na organização social e política: as lideranças tradicionais, com exceção de duas mulheres que assumiram por um período pequeno a função de cacique – uma na aldeia Recanto do Cocais e outra na aldeia Raiz – são homens.

Observamos também, que as mulheres krikati influenciam os homens nas decisões domésticas, porém o poder de fala nas reuniões para tomar decisões, com teor mais político, ainda se dá de forma tímida. As tarefas das mulheres krikati que ainda continua de certa forma definida estão relacionadas ao preparo dos alimentos, cuidado com as crianças e algumas atividades na roça, especialmente em período de colheita, artesanato, organização de festas, etc. Já os homens, se responsabilizam pela preparação da terra para o plantio da roça, pelas atividades de caça, pesca, construção das casas, etc.

Para Sônia Guajajara (2018, p. 45) embora cada povo indígena tenha a sua organização política própria e divisão de papéis entre homens e mulheres,

em geral a participação das mulheres é mais discreta ou menos evidente. Porém, mesmo assim dentro das tradições indígenas sempre encontram formas de influenciar nas decisões da comunidade. As mulheres não vão para reuniões na casa dos caciques ou no pátio, mas exercem uma enorme pressão sobre seus maridos e influenciam significamente sobre o que estes vão dizer nas reuniões. Fora da comunidade, essa partici00pação se dá quando ela já adquire a confiança e passa a assumir o papel de liderança. Nesse patamar, geralmente expressa uma voz altiva e respeitada pelos seus povos e organizações.

Nesse sentido, a mulher indígena sempre teve um papel importante na condução das práticas em suas comunidades, bem como o espírito de líder, pois assumem no cotidiano tarefas mais difíceis e de maior responsabilidade. Sônia Guajajara (2018, p. 46) diz ainda, que como em muitos povos a mulher tem pouca visibilidade e não participa das discussões mais públicas e coletivas, “quando uma liderança mulher desponta sempre há resistências. Porém, sua força e determinação acabam sendo reconhecidas, pois muitas vezes ajuda seu povo ou comunidade a ter conquistas que os homens sozinhos não conseguem”. Contudo, vale ressaltar que o

reconhecimento e aceitação da liderança dessa mulher varia muito conforme a cultura de cada povo.

Quanto à escola, Silvia Puxcwyj diz ter conhecido muito cedo, mas não a frequentava, pois nas primeiras tentativas não conseguia compreender a professora não indígena, pelo fato de não dominar a língua portuguesa. “Somente com a chegada de outra professora comecei a me alfabetizar”. Assim, aos 12 anos iniciei meu processo de alfabetização com a professora Luzia. Minha mãe tinha uma visão de mundo além do seu tempo e uma vez me disse que eu precisava estudar e daí me entregou para a professora Luzia. Passei a morar com ela. Morávamos juntas, mas vivíamos em dois mundos diferentes. No cotidiano ela me ensinava, conversava na língua portuguesa, mesmo sabendo que eu não sabia, mas era a forma de ensinar. Ela me pedia um copo eu levava vassoura, foi nesse processo que eu aprendia com ela e ela comigo. Luzia foi mais que uma professora, foi minha segunda mãe. Ela valorizava nossa língua e dizia sempre: “você precisa aprender o português, mas sua língua materna é mais importante”. A professora Luzia, a quem Silvia Puxcwyj se refere, é uma funcionária da FUNAI que viveu entre os Krikati de 1987 a 2011. Luzia relata um pouco de sua história que aqui apresentamos em um pequeno resumo: “a minha vinda para a aldeia São José foi um pedido de Herculano Krikati a FUNAI. Quando cheguei à aldeia, tinha apenas uma professora não indígena. Logo passei a trabalhar sozinha em duas turmas de alfabetização a 4a série. Fui inserindo os índios que tinham certo domínio da língua materna escrita, como professores. Primeiro foi a Marly e depois o Bernardo. Foram eles os primeiros índios professores na aldeia. Depois fui inserindo outros, à medida que iam se alfabetizando. De início foi difícil, pois encontrei resistência das lideranças em valorizar sua língua na escola. Queriam que seus filhos estudassem na cidade e aprendessem a língua portuguesa. Lutei muito para que a valorização da língua Krikati fosse prioridade na escola. Sei que contribuí com esse povo enquanto vivi na aldeia. Lá fui professora, psicóloga, enfermeira, delegada, enfim, fiz o que pude para fortalecer a identidade dos Krikati” (LUZIA LIMEIRA. Entrevista concedida em Grajaú em 20 de outubro de 2016).

Ao concluir as séries iniciais do Ensino Fundamental, mais ou menos aos 16 ou 17 anos70, teve que parar seus estudos, pois seu pai não permitia que ela estudasse na cidade. Para que isso fosse possível precisaria ter sua independência, ou seja, “perder minha virgindade ou ter um filho”. As condições eram inaceitáveis para Silvia Puxcwyj que, não vendo alternativa,

entrou em depressão, “pois não queria me casar e menos ainda ter filhos. Porém, pouco tempo depois engravidei. Hoje olho para meu filho “Maikon” e digo que ele foi minha libertação e a forma de mostrar que nós mulheres indígenas não somos submissas. Temos força e coragem. Diante de toda luta para estudar dizia para mim mesma e para minha mãe, que sempre me apoiou que ia estudar, batalhar pela educação escolar indígena e ser professora para ajudar as jovens de nossa comunidade”.

Sua persistência não era apenas pela educação e sim, pela igualdade de direitos entre homens e mulheres indígenas. Relata que fugiu de casa para estudar na Barra do Corda, deixando seu filho com sua mãe, no entanto, sua volta se deu após um ano para cuidar de sua desta que se encontrava enferma. Deu continuidade ao Ensino Fundamental em Imperatriz.

Até o final de 1990, os jovens krikati que optavam em continuar os estudos se deslocavam para as cidades circunvizinhas. Diante das circunstâncias, a comunidade comprou71 duas casas para os estudantes, sendo uma em Montes Altos-MA e outra em Imperatriz-MA. A casa garantia uma espécie de espaço deslocado da aldeia, mas não as possibilidades de permanência.

Contrariando as dificuldades, Silvia Puxcwyj relata que “não foi fácil permanecer nessa batalha, principalmente em Imperatriz, quando concluía as séries finais do ensino Fundamental. Poucos ficaram e os que persistiram sofreram de tudo: assédio, discriminação, associação do índio às drogas (maconha), mas encontramos muita gente que nos respeitava e confiava na nossa competência como, por exemplo, alguns professores do Centro de Ensino Dorgival Pinheiro de Sousa e o diretor desta”.

Continua a narrativa das idas e vindas em sua trajetória: “Quase finalizando o último ano, tivemos que voltar para aldeia devido à situação de conflito para a demarcação de nossa terra. Retornei e dei continuidade ao Ensino Médio em Montes Altos-MA. Na época o cacique (tio Francisco) já havia mandado vinte e oito meninos e eu sozinha de mulher. Quando não queria ficar em Montes Altos voltava para aldeia a pé. Logo depois outras mulheres krikati, também começaram a estudar em Montes Altos. Sofremos muito, passamos muita fome, preconceito e discriminação, mas tudo isso serviu para me fortalecer, enquanto mulher indígena e professora que hoje sou. Nesse período, já era mãe pela segunda vez. Tive que enfrentar as resistências das mulheres mais velhas, pois na cultura krikati a mãe não pode separar do filho

antes de um ano de idade. Este deve permanecer diariamente perto do seu corpo. Hoje sou professora com muito orgulho em minha aldeia. Aldeia do meu povo”.

A profissão de professora é vivida intensamente por Silvia Puxcwyj. Esta iniciou em 1999 concomitantemente com sua formação em Magistério Intercultural Indígena72. O período marca também sua luta pelo direito a que todas as etapas da educação básica aconteçam na escola nas aldeias, bem como seu envolvimento com as políticas educacionais indígenas tanto no estado do Maranhão quanto em nível nacional. Assim, participou de fóruns locais, regionais e nacionais voltados à educação escolar indígena e de cursos ofertados pelo CIMI. Foi ainda, membro do “Grupo de Trabalho dos Povos Indígenas do Maranhão” (2010 a 2013), presidente do grupo de elaboração do Projeto Político Pedagógico da Escola Indígena Krikati, membro do grupo que elaborou as “Diretrizes para Educação Escolar Indígena no Estado do Maranhão”. Acompanha a escola como gestora educacional desde 2002, com uma interrupção de apenas quatro anos.

Como presidente da Associação de Pais e Mestres Indígenas Krikati, buscou, na ausência de apoio por parte do Estado do Maranhão, na FEST, através de seus profissionais, a contribuição no sentido de cuidar da formação continuada dos professores indígenas. Participou da elaboração de um projeto juntamente com Lourenço Acỳxit, sendo mediadora do acordo entre a FEST e o povo Krikati.

Consciente que a velocidade das mudanças na sociedade ocidental afeta todos os povos, foi a primeira professora Krikati a sair de sua comunidade em busca de continuidade dos estudos. Assim, concluiu em 2014 o curso de Licenciatura Intercultural Indígena pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Essa experiência hoje é compartilhada por vinte e oito professores indígenas Krikati.

Silvia Puxcwyj comenta que sua luta pela educação faz parte de um compromisso político que fez consigo mesma diante das dificuldades que enfrentou para estudar e por compreender que o conhecimento não indígena é uma necessidade hoje para os indígenas. “Precisamos buscar conhecimentos dos brancos para que possamos assegurar nossos direitos. Isso não nos faz nem mais e nem menos índios. É apenas um direito de escolha. Liberdade de aprendermos o que quisermos e o que for necessário para vivermos com mais dignidade”.

72 A política de formação de professores indígenas no Maranhão, responsabilidade do Estado, tem como marco as

determinações do Decreto No 26 de 1991. Nesse contexto, em 1992 o Estado do Maranhão, através da Secretaria de Estado de Educação (SEDUC), deu início às primeiras iniciativas de integração das escolas indígenas à rede de ensino estadual, tendo como pressupostos os princípios da especificidade, diferenciação, interculturalidade, bilinguismo e a formação de professores indígenas para que pudessem ser atores desse processo. O curso de Magistério Intercultural Indígena teve início em 1996 e conclusão em 2002.

Falando desse compromisso social e político com a educação escolar indígena, Silvia Puxcwyj está sempre enfatizando que sua luta por uma educação diferenciada não significa simplificar conteúdos de todas as áreas de ensino do currículo escolar do não indígena, pois “precisamos formar outros profissionais, como: advogados, economistas, ambientalistas, médicos e outros que venham contribuir com o desenvolvimento de nossa sociedade indígena e também para os brancos. Precisamos desses conhecimentos, pois os nossos conhecimentos tradicionais vivemos todos os dias. Eles precisam ser apenas fortalecidos, como por exemplo, a nossa língua”.

Em uma das entrevistas Silvia Puxcwyj narra que ainda muito jovem teve de lidar com a doença e a morte de sua mãe. Mesmo diante desse rompimento precoce, a imagem que guarda dela é de uma mulher guerreira, corajosa e determinada. Narra: “lembro-me do olhar dela, dos conselhos que dava para meu pai, de suas participações nas rodas de mulheres, escuta aos velhos no pátio e da educação que transmitia para os filhos. É nessa imagem que busco força para ajudar a cuidar de meu povo”.

Neste capítulo, analisamos particularidades de lideranças indígenas, a partir de pesquisas realizadas em contextos históricos e geográficos diferentes por antropólogos e historiadores. Diante do estudo, evidenciamos consensos reunindo-os em três distintivos para caracterizar liderança tradicional: ser generoso, bom orador e mediador de conflitos internos.

A nosso ver, esses atributos continuam sendo fundamentais para o exercício da função de líder tradicional, como ressalta os anciãos krikati. Contudo, estes não são suficientes para atender o que se espera de uma liderança política, considerada articuladora entre as sociedades indígenas e a sociedade nacional, pois, para atender às expectativas, exige-se desta, o mínimo de escolaridade, bem como o domínio da língua portuguesa.

Em síntese, a liderança política se constrói a partir de suas convicções políticas, inserções nas organizações, no movimento indígena e ter compromisso com o bem viver dos povos indígenas. Partindo desses pressupostos e das particularidades de cada um, consideramos as duas lideranças políticas krikati como pessoas que estão trilhando caminhos para fortalecimento das lutas dos povos indígenas.

No documento ILMA MARIA DE OLIVEIRA SILVA (páginas 81-88)