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4. O DISCO CHEIO DE DEDOS – ANÁLISE DE ALGUMAS FAIXAS

4.6. Sinuoso

Na transcrição do songbook da Editora Gryphus, a peça Sinuoso apresenta a estrutura Intro/A/A’/B/A’’, ou seja, a composição está transcrita em forma canção. Ao observar, porém o arranjo presente no disco Cheio de Dedos para dois violões, ele apresenta o seguinte formato: Intro/A/A’/Intro/A/A’/B/A’’/B/A’’, ou seja existe neste arranjo uma abordagem menos usual para a forma canção.

Nesta análise, buscou-se verificar o material existente no violão principal, que foi gravado por Guinga, como forma de melhor evidenciar os aspectos relevantes da estrutura da peça. Certamente, esse fato não gera equívoco nesta investigação, dado que essa peça é uma daquelas composições que corroboram com a afirmação de que o arranjo feito por Guinga para o violão principal de uma peça já acarretam todos os elementos necessários para uma forma bem clara e estruturada, como melodia, harmonização, forma e convenções.

4.6.1. Análise melódico-estrutural

A introdução de Sinuoso apresenta quatro compassos e duas semifrases, denominadas aqui de a e a’. É importante ressaltar, neste momento, que essa análise contempla apenas um dos violões, pois, neste trecho, o segundo violão repete o início de cada semifrase de forma defasada. Observe a figura 38:

Figura 38: Introdução de Sinuoso

A seção A da peça Sinuoso possui oito compassos e quatro semifrases, denominadas a, a’, b e c, sendo que as duas primeiras frases, por sua vez, formam uma frase e as duas últimas formam outra, como se percebe na figura seguir. As duas primeiras semifrases possuem caráter rítmico bem parecido. Não é possível afirmar que de uma para outra existe

uma diferença apenas de transposição, pois o contorno das duas é distinto. Observa-se agora a seção A, na figura 39:

Figura 39: Seção A de Sinuoso

Já as semifrases b e c da seção A trazem grande contraste com relação às anteriores e, embora a semifrase b traga, em seu início, parte do mesmo motivo presente no começo das duas semifrases anteriores, o desfecho desta seção proporcionado pela semifrase c traz materiais bem diferentes do que se pode observar no início da seção A.

Na seção A’, como se mostra na figura 40, também possui oito compassos e quatro semifrases e compreende-se que as duas primeiras semifrases seguem praticamente o mesmo esquema proposto na seção anterior, porém as semifrases a e a’ dessa seção são bem mais parecidas entre si que não seção anterior, sendo que há quase uma transposição literal entre uma semifrase e outra. Com relação à seção A, entende-se que as frases b e c são completamente distintas da seção anterior. Ao final da seção A’, encontra-se a frase anacrúsica que mostra uma engenhosa solução de Guinga nesta composição, já que ela serve tanto como encaixe para o retorno da introdução como também para a entrada da seção B. Assim, tanto é possível tocar este arranjo no formato Intro/A/A’/B/A’’, como está no referido songbook da Editora Gryphus, como também é perfeitamente viável seguir o formato do arranjo aqui analisado sem que seja necessária nenhuma alteração, ou seja: Intro/A/A’/Intro/A/A’/B/A’’/B/A’’.

Figura 40: Seção A’ de Sinuoso

Já na seção B, assim como nas duas anteriores, verifica-se, na figura 41, também, que possui oito compassos. Nesta seção, existem três frases, denominadas aqui frases a, b e c. O motivo principal da peça aparece aqui também de forma recorrente, como se visualiza no primeiro tempo dos compassos 1, 3, 5 e 7 desta seção. Apesar disso, existe grande contraste rítmico entre as referidas frases da seção B, assim como elas são bastante distintas do material apresentado nas seções A e A’.

Figura 41: Seção B de Sinuoso

Na figura 42, seção A’’, apresenta-se, basicamente, o mesmo material da seção A’, com exceção do seu segundo final, em que não se encontra a frase em anacruse para voltar ao início da seção B. Assim, essa seção apresenta quatro semifrases, denominadas aqui de semifrases a, b, c e d.

4.6.2. Análise harmônica

A introdução desta peça, de forma geral, harmonicamente, pode ser analisada como um acorde E7 estendido.

Já na seção A, detecta-se um certo paralelismo entre os primeiros acordes das duas primeiras semifrases, respectivamente, Bm7(5°/11) e F#m7(5°/11), que apesar de sua tipologia, não estão envolvidos em uma cadência, portanto aqui eles estão apenas situados em suas respectivas posições. É importante ressaltar também que, apesar do paralelismo entre esses acordes, este não se aplica ao restante do conteúdo das duas primeiras semifrases.

Já na semifrase b, a progressão de acordes: Am7-G(13b)-Cb7M/Eb-Bb7M/D pode ser analisada como VI / V / -II/-VII7M / VII7M. Entretanto a alternativa seria analisar os dois acordes finais, como uma pequena digressão para o tom de Sib maior. Na semifrase c, a exemplo do material presente na introdução, trata-se de um acorde E7 estendido, embora entre esse trecho e a introdução existam evidentes diferenças no material melódico utilizado.

Melodicamente, as seções A e A’ possuem início semelhante, porém, a partir do final da semifrase a’, já se verificam as evidentes peculiaridades de cada seção. Harmonicamente, a diferença entre as duas seções se faz evidente a partir da semifrase b. Em A’, a partir da semifrase b, já se pode verificar a cadência que se direciona para a tônica, ou seja, iim7(5o) - VII, cadência essa que vai ser feita novamente, durante a semifrase c, embora com acordes diferentes: subV/V - I - V - I. É importante ressaltar que o segundo acorde da semifrase c, C7M(6)/G, estando na segunda inversão, soa não como I, mas como um acorde V com 4J, 13M e 9M, portanto poderia também ser cifrado, por exemplo, como G(6/4/9). Assim, com relação ao acorde seguinte, G(9/13-)47, a 4J resolve na 3M, a 13M em 13m e a 9M se mantém. A partir da análise das cadências presentes nas duas partes, verifica-se que a seção A possui final suspensivo, enquanto o final da seção A’ tem caráter conclusivo.

A seção A’’ possui material em grande parte bastante parecido com a seção A’, tanto melódica quanto harmonicamente. As semifrases a, a’ e b são idênticas. A diferença entre as partes se encontra, no segundo final da semifrase c, pois, na seção A’’, a cadência se direciona diretamente do subV/V para o I e, obviamente, não existe o anacruse para preparar o retorno da seção A. Assim como a finalização da seção A’, a seção A’’ possui caráter conclusivo.

4.6.3. Descrição do arranjo

É interessante verificar a declaração de Lula Galvão quanto a como foi construída a sua parte neste arranjo:

Esse é aquele processo de fazer um complemento do violão [...] Essa aí eu já tinha aprendido ela antes, não foi no estúdio não [...] Porque eu tinha que dobrar, tinha que fazer um segundo violão que respondesse o dele, por exemplo na primeira frase [cantarola a melodia de Sinuoso] [...] Foi isso, eu atuei ali na parte aguda, vendo as inversões e cobrindo aquelas melodias com intervalos de quartas também [cantarola mais um trecho da melodia de Sinuoso] com acordes de formações quartais, e também dobrar uma melodia em terças, esse cromática aí...(GALVÃO, 2019).

Nesse arranjo, Lula Galvão buscou sempre complementar as linhas principais e aberturas de acordes propostos por Guinga em sua parte. Realmente, pode ser considerado como um elemento idiomático do violão realizar grande parte das melodias principais na região mais grave ou nas primeiras casas do braço do instrumento e utilizando cordas soltas, sendo que, certamente, isso é bastante recorrente inclusive na obra do próprio Guinga, como, por exemplo, em peças como Dichavado e Perfume de Radamés. É interessante citar aqui, também, um trecho do depoimento de ARAGÃO (2019), a respeito da interação entre Guinga e Lula Galvão:

Em relação a isso, o que eu vejo muito acontecer nas gravações e tal, existe esse tipo de situação do Lula interferir realmente no violão do Guinga, acho perfeitamente possível, já que eles têm uma afinidade, uma cumplicidade tão grande, enfim, acho que é possível, apesar do Guinga em geral chegar bem fechado com o violão dele. Não que ele não esteja aberto a sugestões, mas em geral ele já chega com a coisa bem pronta e tal. Agora, tem uma situação, não sei se é isso exatamente a que você está se referindo, mas acho que vale citar também, que o violão do Guinga, por mais fechado que chegue, chegue pronto e tal, na hora em que você cria os complementos existe um certo espaço, até assim, harmonicamente falando, para certas escolhas, por parte de quem está complementando, no sentido da condução da harmonia mesmo. Então por mais que venha, por mais que o violão do Guinga já te dê toda a sugestão de harmonia e todo o caminho(...), mas tem sutilezas em termos de condução de baixos, ou mesmo de condução das tensões, de coisas que não estão no violão do Guinga e se prestam muito bem (...) O violão do Guinga, por mais completo que seja, ainda dá espaço para algumas escolhas como essas. Na Cheio de Dedos, talvez isso não aconteça tanto, mas em várias músicas [do repertório de Guinga], isso acontece bastante (ARAGÃO, 2019).

É certo que o exemplo citado por Aragão se aplica ao arranjo da peça Sinuoso, em que o violão de Lula Galvão busca preencher os espaços deixados pelo arranjo do violão principal de Guinga. Outro aspecto importante a ser destacado, em sua declaração, é que essa peça não foi aprendida durante as sessões de gravação, sendo que já era tocada em duo com Guinga antes de ser registrada. Esse procedimento mostra um contraste com relação ao que

pôde ser verificado, em outros arranjos presentes neste disco, tais como a versão para sopros de Cheio de Dedos, que foi direto da concepção, na partitura elaborada por Carlos Malta, para a sessão de gravação, pois ele próprio gravou, em separado, todos os instrumentos presentes naquele fonograma, ou ainda, em Por trás de Brás de Pina, que embora fosse bastante ensaiada antes de sua gravação, foi gravada em partes por camadas.