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4 OS SISTEMAS AGRÁRIOS E A ESTRUTURA FUNDIÁRIA DO MÉDIO ALTO URUGUA

4.3 EVOLUÇÃO E DIFERENCIAÇÃO DOS SISTEMAS AGRÁRIOS DO TERRITÓRIO DO MÉDIO ALTO URUGUA

4.3.1 O sistema agrário indígena

A vegetação natural de praticamente todo o território do Médio Alto Uruguai era a mata, ocupada pelos povos Guaranis e Caingangues (Gês). Os Guaranis eram grupos remanescentes das Missões que foram obrigados a se estabelecerem nas matas. Já os Caingangues, também chamados de coroados (devido ao corte de cabelo) entraram neste território fugindo das perseguições dos bandeirantes, que buscavam capturar e comercializar indígenas para o trabalho escravo, sobretudo nas minas de ouro. Também, existiam grupos que fugiram do extermínio para “liberação” da terra ocupada por eles em outros territórios. Desta forma, a floresta densa do Médio Alto Uruguai servia com barreira para proteção e fonte de alimentos e de recursos necessários para sobrevivência.

A ocupação e o “uso” da terra tem um significado diferente para os povos indígenas. Flores (1993) destaca o uso coletivo da terra que pertencia à comunidade, tendo o território de caça de uma tribo demarcado. A caçada era realizada em grupo, que tinha o cuidado de abater apenas o necessário. A cada dois anos mudavam o lugar de caça e protegiam o seu território de possíveis caçadores, o que causava intensos conflitos entre grupos/tribos rivais e, posteriormente, com os colonizadores. Percebe-se que o sistema agrário indígena exercia relações equilibradas com o meio ambiente, organizando coletivamente as práticas da caça,

pesca e coleta.

A agricultura de queimada era praticada pelos indígenas para o cultivo de mandioca, batata doce, feijão, abóbora fumo, algodão, amendoim e milho, principalmente, pelos guaranis (FLORES, 1993, p. 16). Para colocar em prática o sistema de produção eram abertas clareiras na mata, utilizando a técnica da “coivara”, derrubada da mata e posterior queima dos galhos. Este trabalho geralmente era feito pelos homens e a semeadura pelas mulheres. O sistema de produção era composto por várias clareiras em diferentes estágios de plantação, maturação e colheita. Cultivavam um ano num local e após deixavam a recomposição da mata, através da sucessão natural, para o solo se recuperar (FLORES, 1993; SILVA NETO e FRANTZ, 2005).

O hábito guarani de consumir a erva mate (Ilex paraguariensis), que hoje faz parte da cultura gaúcha do chimarrão, ganha destaque neste território pela importância dos ervais nativos. Contudo, já no início do século XIX, a erva mate passa a ser um ponto de conflito dos indígenas com os extrativistas. Estes necessitavam liberar as terras dos ervais para extração, e posterior comercialização da erva mate, que estava sendo valorizada. Iniciando um ataque sistemático aos indígenas objetivando obter a posse e uso das terras ocupadas pelas diferentes tribos (ZARTH, 1997).

Por outro lado, nos meados do século XIX, chegavam reclamações ao Império Brasileiro contra os indígenas, que partiam dos tropeiros comerciantes de gado vacum e de mulas que necessitavam passar por este território para chegarem até o estado de São Paulo. Para muitos tropeiros os índios deveriam ser simplesmente eliminados, como já havia ocorrido em outras regiões do país e em outros países, como no Uruguai. Contudo, o governo imperial via nos povos indígenas aliados para o povoamento das regiões de fronteira, que ainda estavam em disputa. Desta forma, na visão imperial, o importante era controlar os nativos e não eliminá-los. Assim, ganhou força o movimento de aldeamento dos povos indígenas no norte do Estado. A formação de aldeias objetivava reunir em um só local os povos guaranis remanescentes das reduções jesuítas e os povos “imigrantes” caingangues (coroados) que ocupavam toda a região de mata (KLIEMANN, 1986; FLORES, 1993; SILVA NETO e FRANTZ, 2005).

Um caso marcante da resistência indígena frente à ocupação do seu território é relatado por Santos (2005). O autor descreve que em 1847 iniciou-se a abertura de uma nova rota de tropeiros para o comércio de muares, destinados ao trabalho nas lavouras de café na região Sudeste do Brasil. Esta rota tinha como origem os campos das missões e o destino os cafezais de São Paulo, passando pelo vale do Goio-En, local com maior facilidade para a travessia do Rio Uruguai. Contudo, esta rota entrava no território ocupado pelo povo

Caingangue. Assim sendo, iniciaram-se tratativas com o Cacique Nonoay, para diminuir a resistência à passagem dos tropeiros e recuar a área ocupada pelo seu povo meia légua para oeste. O acordo aconteceu com a condição de que os índios não seriam mais importunados, respeitando a nova localização.

A cidade atual de Nonoai é uma homenagem ao Cacique de mesmo nome. Este município iniciou a formação a partir de 1847, sendo um lugar de parada das tropas para descanso antes de atravessar o Rio. Outras cidades foram originadas a partir deste fato. Maestri (2000, p.80) descreve que “a nova rota tropeira permitiu a ocupação dos campos de Nonoai e a fundação do povoado de Palmeira das Missões, que se desenvolveu rapidamente”.

Este episódio também deu base para a estratégia de aldeamento, que é colocada em prática no ano de 1850, pelo Império Brasileiro, quando foi criado o aldeamento indígena de Nonoai, que reuniu diversos grupos indígenas numa área previamente determinada. Estratégia que se mostrou extremamente desastrosa para os povos indígenas.

A dinâmica do sistema agrário indígena é assinalada pela grande mobilidade de pequenos grupos na floresta, e com o aldeamento a população foi ampliada e a área ocupada ficou restrita, inviabilizando o sistema. Da mesma forma, as questões sociais e culturais não foram consideradas, pois o aldeamento obrigou os grupos rivais conviverem na mesma área, originando conflitos entre eles.

Cabe ressaltar a resistência dos indígenas à política de aldeamento. Esta resistência, muitas vezes, levou ao total extermínio de grupos. O aldeamento “significava perder a liberdade de circular livremente pelas florestas em busca de caça e em atividades extrativistas, de fazer roçados em terras novas num estilo rudimentar, mas racional diante das condições presentes (abundância de terras virgens)” (ZARTH, 1997, p. 43).

Em 1910, foi criado o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) que buscou demarcar as terras indígenas e assegurar na legislação este direito. No Rio Grande do Sul foram demarcadas cerca de dez áreas indígenas, “garantindo” o acesso à terra para estes povos. As maiores áreas, demarcadas no período de 1912 a 1922, estão localizadas no norte do Estado, exatamente no Território do Médio Alto Uruguai, que são área indígena de Nonoai com 34.908 hectares e a reserva indígena do Guarita com 23.187 hectares (KLIEMANN, 1986, p. 131).

Nestas áreas foram aldeados os grupos que ainda estavam dispersos no território, que naquele momento, estavam sendo disponibilizadas para a colonização. O mapa a baixo demonstra as principais “aldeias” indígenas criadas no Estado.

Figura 3 – Mapa das áreas indígenas demarcadas no estado do Rio Grande do Sul

Fonte: Arquivo CEDOPH/URI.

Fica evidente que as ações promovidas pelo Estado, mesmo com a criação do SPI, acabam refletindo os interesses dominantes, que, historicamente, levaram a submissão dos povos indígenas. Este processo pode ser resumido na seguinte afirmação:

Para ocupar a região os pecuaristas, os extrativistas e os agricultores enfrentaram e submeteram a população guarani e caingangue numa luta que durou várias décadas e que de certa forma ainda não se encontra no fim, pois os atuais aldeamentos oficiais continuam sofrendo pressões por parte de agricultores da região, estranhos à comunidade indígena (ZARTH, 1997, p. 40-41).

O início do aldeamento dos grupos indígenas (1847) marca o fim do predomínio do sistema agrário indígena no Território do Médio Alto Uruguai, e está diretamente ligado ao processo de acesso à terra para outros grupos prioritários na sociedade capitalista da época. Contudo, a questão indígena é uma pauta atual no território do Médio Alto Uruguai, pois se trata de “povos dominados” que ainda resistem a perda da sua cultura e a integração ao modelo de sociedade dominante, materializando-se nos vários conflitos pelo acesso à terra.