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CAPÍTULO 2 A SITUAÇÃO EM PORTUGAL

2.1 Evolução Histórica do Abastecimento de Água e Saneamento

2.1.1 Situação até 1993

A organização da administração local portuguesa tem as suas raízes nas reformas introduzidas na primeira metade do século XIX, pela Revolução Liberal e a consolidação dos estados liberais, após a Revolução Francesa (Oliveira, 2014). O quadro da divisão de atribuições e competências, entre a Administração Central e a Administração Local (com os diversos nomes que utilizou ao longo dos tempos), está intimamente ligada à forma do exercício do poder central. Miranda (1976), chama a atenção para a clara separação de poderes referida na Constituição de 1822, objeto de um Capítulo próprio (o II), onde se enumeram, nos artigos 220º a 222º, as atribuições da administração municipal e se refere, entre outras, «a saúde pública, e geralmente todas as comodidades do concelho», incluindo neste ponto, o abastecimento de água e a recolha de lixos.

Alterações cíclicas e profundas no exercício do poder em Portugal, entre 1820 e 1836 alteraram a divisão administrativa do País, mas a existente ainda hoje, tem como matriz o Código de 1836, com a divisão do território do continente em 18 distritos e a redução do número de concelhos para os atuais 308, depois de ter chegado a rondar os 800, afastando Portugal, neste ponto, dos países europeus que nos estão próximos como, por exemplo, a Espanha, a França e Alemanha, que têm, ainda hoje, um número de municípios proporcionalmente muito superior (Oliveira, 2014).

De 1820 a 1974 (ou mais exatamente até Dezembro de 1976, data das primeiras eleições autárquicas), a gestão dos municípios revestiu diversas formas, desde a eleição direta dos Vereadores, à eleição indireta, até à nomeação, pelo Governo, do Presidente e de um Vice-Presidente, sendo nesta última situação, resultante da Constituição Política de 1933,

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e em especial do Código Administrativo de 1936-1940, que nos encontrávamos no 25 de Abril de 1974 (Oliveira, 2014).

Às diversas formas de eleição versus nomeação, correspondiam a tendências mais descentralizadoras, ou mais centralizadoras. Ligada à forma de acesso ao poder local, surge também a questão da situação financeira dos municípios. O Código de 1878 concede uma grande liberdade financeira aos municípios para procederem a obras e melhoramentos, mas o Código Administrativo de 1886, baseado na crise financeira existente, retira às autarquias essa autonomia, que será retomada após a I República (1910). E a história dos serviços urbanos de água em Portugal pode ser resumida como de permanente tensão entre o poder central do Governo, e o poder local dos Municípios (Schmidt, Saraiva e Pato, 2011).

O 25 de Abril de 1974, consagrou, primeiro com uma legitimidade revolucionária e transitória, e depois com uma legitimidade eleitoral, através da elaboração da Constituição da República Portuguesa (CRP), em 1976, como competência das autarquias, a prossecução de interesses próprios das populações respetivas (art. 237º, nº 2) de harmonia com o princípio da descentralização administrativa (art. 239º), apelando, de facto, para o principio da subsidiariedade, nos termos do qual deve competir às autarquias locais a realização de tarefas administrativas que elas podem cumprir, só sendo utilizado um nível superior de administração pública quando a boa administração assim o exija, conferindo ainda como um dos preceitos chave, o “poder local”, ou como também é designado no texto fundamental do país, a “autonomia das autarquias locais” (Oliveira, 2014).

As sucessivas Revisões Constitucionais (1982, 1989 e 1992), sem provocarem alterações muito substanciais no quadro do poder local, reforçam, contudo, a sua autonomia (constituindo mesmo um limite material de revisão, através do art. 288º, al. n) da CRP), não podendo por isso ser ignoradas.

O texto fundamental dá-nos pontos de referência para o quadro das atribuições e competências, e nesses pontos, confirmados pela atividade legislativa subsequente, encontra-se a prestação de um vasto leque de serviços públicos, onde o legislador incluiu, claramente, a função do Abastecimento de Água, objeto primeiro do presente estudo.

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Assim, pela Lei das Autarquias Locais (DL 100/84 e Lei nº 25/85), no seu Artigo 2º (Atribuições) é conferida às autarquias a atribuição de proceder ao “Saneamento Básico” (alínea d)), querendo englobar neste termo, “o abastecimento de água”, “o tratamento de águas residuais” e “a recolha e tratamento de resíduos urbanos”.

O quadro das Atribuições e Competências, apesar de apontar claramente para uma generalização do primado municipal, é agora (com a publicação do DL 379/93) mais controverso. Se em relação aos sistemas “em baixa”, não parece haver dúvidas sobre a manutenção da responsabilidade municipal, quanto à prestação do serviço público, quer quanto ao investimento, quer ainda quanto à gestão dos sistemas, existe já alguma controvérsia sobre o quadro de atribuições e competências, relativamente aos sistemas em “alta”, especialmente os sistemas multimunicipais (ver definição dos Sistemas em “alta” e “baixa”, no ponto de “Conceitos Utilizados no Trabalho” no final da Tese).

Isto porque, com a criação dos Sistemas Multimunicipais (SMM), que será analisada mais à frente, o Governo considera que é ao Estado que cabe assegurar o financiamento dos investimentos a efetuar. Apesar de nada no Decreto-lei o referir, na prática (entre o final de 1993 e 1995 foram criados cerca de dez Sistemas Multimunicipais, e no ano de 1996 mais cerca de uma dezena), o Estado tem sido representado por uma empresa privada de capitais públicos, no caso do abastecimento de água, que detém a maioria das ações (no mínimo 50% mais uma ação) nas entidades empresariais constituídas para gerir os Sistemas Multimunicipais. Estas entidades são as responsáveis pela boa execução das concessões atribuídas com base no DL 379/93 já referido, funcionando, em todos os casos, as autarquias como acionistas minoritários, mas como os principais, e quase exclusivos, clientes dos Sistemas (Almeida, 1997).

Assim, é justo considerar, que nos sistemas em “alta”, em que o Governo decida deverem passar a constituir Sistemas Multimunicipais, o quadro de atribuições e competências, é alterado, e a responsabilidade de prestação de serviço passa a ser do Estado, representado por uma entidade empresarial privada de capital público e dependentes de órgãos centrais da Administração (nos casos já referidos de Sistemas

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Multimunicipais constituídos em 94/95/96, a maioria de capital é detida pela Águas de Portugal sgps, S.A. - AdP).

Às Câmaras Municipais, sem margem para dúvida, continua a caber a ligação mais direta com o munícipe, pois não há qualquer alteração do quadro de competências nos sistemas em “baixa”, ou nos sistemas em “alta” não considerados como Sistemas Multimunicipais, sendo que nestas funções o que foi alterado, em especial pela alteração da Lei de Delimitação de Sectores, é a possibilidade de formas diferenciadas de gestão, como se verá no ponto seguinte.

Para além da evolução histórica das Atribuições e Competências, sobre a tutela dos sistemas de saneamento básico, a análise do atual quadro das formas possíveis de gestão é fundamental para enquadrar, do ponto de vista legal e institucional, possíveis decisões ou deliberações de conteúdo positivo no sentido da alteração da atual forma de gerir os diferentes equipamentos coletivos existentes ou, quanto a equipamentos novos, equacionando a sua gestão por estruturas diversas das tradicionais.

Em Portugal, e até à aprovação da legislação com a alteração da delimitação de sectores (1993), a tutela e a gestão dos Sistemas de Saneamento Básico, estava assente nas seguintes experiências:

- Abastecimento de Água – várias formas de gestão, correspondendo a duas tutelas diferenciadas. Em todo o país, exceto no Concelho de Lisboa, e em parte do Concelho de Santiago do Cacém, a distribuição de água domiciliária é da responsabilidade das Câmaras Municipais que se podiam organizar de duas formas: ou criando Serviços Municipalizados, ou procedendo ao abastecimento através de serviços municipais diretos. A tutela é a mesma, sendo que o funcionamento dos Serviços Municipalizados sempre teve maior autonomia financeira e maior rigor contabilístico. No Concelho de Lisboa, o abastecimento de água, por tradição com mais de 160 anos, é assegurado pela Empresa Portuguesa das Águas Livres (EPAL), uma empresa privada de capitais totalmente públicos e desde 1993 integrada nas Águas de Portugal, aquando da criação desta última entidade. Até essa data a EPAL dependia diretamente do Governo, na área de tutela do Ambiente.

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Segundo Almeida (1997), o primeiro grande estudo da situação global dos sistemas de saneamento básico em Portugal foi publicado pelo Gabinete de Estudos e Planeamento da Administração do Território (GEPAT), em quatro volumes, desde a segunda metade dos anos 80 até início dos anos 90.

Em 1986, o GEPAT publicou um Estudo sobre “Estrutura e Níveis de Equipamentos do Sistema Urbano”, que tinha como principais objetivos (MAOTDR, 1986):

 Analisar os fundamentos da estrutura urbana existente, com base nos equipamentos instalados em cada um dos centros e do seu raio de influência efetivo;

 Verificar a possível existência de uma hierarquia dos centros urbanos, em função dos equipamentos;

 Determinar a relação entre o nível dos equipamentos existentes e o âmbito espacial de prestação de serviço dos respetivos centros.

De acordo com Almeida (1997) este trabalho deriva de estudos iniciados em 1972, por iniciativa do Secretariado Técnico da Presidência do Conselho, no âmbito do III Plano de Fomento.

Com a entrada de Portugal na União Europeia (na época Comunidade Económica Europeia (CEE) o Ambiente foi um dos setores onde o nosso país contraiu das maiores responsabilidades para com os restantes parceiros da União, comprometendo-se a atingir níveis de quantidade e de qualidade de serviços, que se estimaram deveriam originar investimentos na ordem dos cinco mil milhões de Euros, no período de vigência do QCA I (entre 1989 e 1993).

O montante de Fundos Estruturais comunitários destinados a Portugal, através do QCA I (1989 – 1993), totalizou cerca de 17.163 milhões Euros e por isso os fundos disponibilizados para o ambiente, onde o Abastecimento de Água e o Saneamento de Águas Residuais teve uma importante parte, quase que atingiam 30% do pacote financeiro entre Fundos Comunitários e comparticipação nacional.

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No período do QCA I, verificou-se um ganho de 10,5 pontos percentuais em termos de convergência do PIB per capita (em paridade de poder de compra), em relação à média comunitária.

As disparidades internas reduziram-se em cerca de 8%, de acordo com o "Índice Sintético", elaborado pela Universidade de Roterdão, para o período 1981/91. No conjunto da economia nacional, as transferências de fundos comunitários assumiram uma grande importância, representando 3% do PIB.

O investimento associado ao QCA I correspondeu a cerca de 15% do investimento global realizado em Portugal no período 1989/93.

Verificou-se um crescimento adicional do PIB de 0,7 % ao ano, por via dos fundos comunitários (UE, 2000).

Mas no balanço da execução do QCA I, as verbas disponíveis para o ambiente, e concretamente para a melhoria da robustez dos Sistemas de Abastecimento de Água, não tinham sido todas gastas e o Governo teve que “desviar” muitos milhões de Euros, do ambiente para outras áreas, de modo a atingir níveis elevados de cumprimento na execução física e financeira do QCA I.

Esta situação ficou a dever-se às dificuldades financeiras das autarquias, que queriam aceder aos fundos estruturais, mas não tinham fundos próprios, nem capacidade de endividamento bancário, para os investimentos que queriam efetuar e que teriam que comparticipar (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2015).

E no final de 1990, o Índice de Atendimento no abastecimento de água situava-se ainda ligeiramente abaixo dos 80% (79,8%), na média nacional, e a capitação média de água pouco passava dos 100 litros/habitante/dia (101,3) distante das metas propostas no QCA I. Para agravar ainda mais esta situação, os dados do IRAR, constantes no “Inventário Nacional de Saneamento Básico 1990”, apresentavam uma enorme assimetria regional, pois para o Índice de Atendimento os valores variavam entre 43,8% até 99,6%. E para as Capitações, os valores nacionais variavam de 48,5 litros/habitante/dia até 158,3 litros/habitante/dia (IRAR, 1994).

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Além da média nacional ser, em 1990, ainda inferior a 80% de cobertura da população, e com esse indicador Portugal se encontrar no último lugar da União Europeia, é ainda necessário ressaltar mais algumas questões que os dados apresentados levantam (UE, 2000):

 A visível assimetria nacional de cobertura do serviço, com Distritos a alcançar valores perto dos 100% (Bragança, Évora, Guarda, Lisboa, Portalegre e Setúbal), com outros Distritos, preocupantemente abaixo dos 65% de população abastecida (Aveiro, Braga, Porto, Viana do Castelo);

 O nível de atendimento não segue nenhum dos parâmetros normalmente utilizados para distinguir as regiões (Norte/Sul; Litoral/Interior; Urbano/Rural, etc.), mas sim está de acordo com as prioridades definidas local e regionalmente pelos respetivos autarcas.