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2.1 Globalização hegemônica e consequências humanas

2.1.4 Sobre a globalização social

Em relação à dimensão social da globalização hegemônica, não se pode negar que o aspecto que mais se destaca diz respeito ao aprofundamento da desigualdade, cujas consequências humanas se tornam a cada dia mais injustas, com a intensificação alarmante da miséria e da concentração de renda ao mesmo tempo. E a desigualdade com tal roupagem é absolutamente inaceitável em um período histórico cujo avanço tecnológico, indiscutivelmente, torna possível a disponibilização de recursos e a produção de bens e serviços suficientes para satisfazer as necessidades básicas de todos os indivíduos integrantes da comunidade humana.

Segundo a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO), no ano de 2009, o número de pessoas que passam fome no mundo passou de um bilhão. Esse número equivale à sexta parte da população mundial (estimada em seis bilhões de habitantes). Segundo a mesma FAO, em 2008 eram cerca de 915 milhões os que passavam fome. Mais de um bilhão de famintos! Não há razão para não se acreditar que essa estatística sombria seja o ápice do processo de injustiça social, cuja intensificação coincidiu com o surgimento da globalização neoliberal. Algo novo, portanto, terá de surgir, em tempo muito breve, independentemente da força avassaladora da globalização hegemônica, para reverter essa realidade perversa.

Voltando aos números estatísticos - o que se torna inevitável quando se pretende analisar as conseqüências humanas do desenrolar histórico de um fenômeno socioeconômi- co -, observem-se os dados segundo a abordagem de Santos (2011, p. 33-34):

É hoje evidente que a iniquidade da distribuição da riqueza mundial se agravou nas duas últimas décadas: 54 dos 84 países menos desenvolvidos viram seu PNB per capita decrescer nos anos 80; [...] segundo as estimativas das Nações Unidas, cerca de um bilhão e meio de pessoas (1/4 da população mundial) vivem na pobreza absoluta, ou seja, com um rendimento inferior a um dólar pó dia, e outros 2 bilhões vivem apenas com o dobro desse rendimento. Segundo o Relatório do Desenvolvimento do Banco Mundial de 1995, o conjunto dos países pobres, onde vive 85,2% da população mundial, detém apenas 21,5% do rendimento mundial, enquanto o conjunto dos países ricos, com 14,8% da população mundial, detém 78,5% do rendimento mundial. [...] Segundo o Relatório do Desenvolvimento Humano do PNUD relativo a 1999, os 20% da população mundial a viver nos países mais ricos detinham, em 1997, 86% do produto bruto mundial, enquanto os 20% mais pobres detinham apenas 1% [...]. As 200 pessoas mais ricas do mundo aumentaram para mais do dobro a sua riqueza entre 1994 e 1998. Os valores dos três mais ricos bilionários do mundo excedem a soma do produto interno bruto de todos os países menos desenvolvidos do mundo onde vivem 600 milhões de pessoas.

Não se pode perder de vista que essas consequências sociais tão graves, globalizadas, resultam do imbatível consenso neoliberal no sentido de que o crescimento econômico só pode acontecer à custa da redução drástica (a quase zero) de todo e qualquer investimento social (saúde, educação, habitação e demais áreas que dizem respeito ao desenvolvimento humano). Claro que a desigualdade desencadeada pela globalização hegemônica se fez sentir em todos os países, ricos e pobres. Mas é nos países do Terceiro Mundo que essa forma cruel de injustiça social assume contornos de verdadeira tragédia, pois, já endividados exatamente em razão de uma situação de pobreza crônica, esses países periféricos e semiperiféricos se veem na contingência de seguir todas as regras ditadas pelo Banco Mundial e pelo FMI (eficientes instrumentos de coação e escravização financeiras a serviço da globalização hegemônica), implantando os Programas de Ajustamento Estrutural como condição para obtenção de novos empréstimos estrangeiros e renegociação de suas impagáveis dívidas externas. Os Estados nacionais do Terceiro Mundo passam, portanto, a uma humilhante condição de submissão absoluta ao FMI, ao Banco Mundial e até mesmo à Organização Mundial do Comércio. Privatiza-se quase tudo, reduzem-se serviços e investimentos sociais de interesse público e, o que é pior, proíbem-se as indexações dos salários dos trabalhadores aos índices de produtividade e até mesmo aos índices de inflação, o que, além de reduzir de forma direta a renda do trabalhador, causa desemprego em massa, realidade que se intensifica ainda mais pela liberalização do comércio e do mercado de trabalho. “O escritor nigeriano Fidelis Balogun descreve a chegada do PAE, em meados da década de 1980, como

equivalente a uma grande catástrofe natural, a destruir para sempre a antiga alma de Lagos e reescravizar os nigerianos urbanos” (DAVIS, 2006, p. 155).

Em Cartum, os PAEs fizeram nessa mesma década 1,1 milhão de novos pobres. Na Costa do Marfim, a pobreza urbana dobrou em apenas um ano (1987/88). Em Lagos (Nigéria), a extrema pobreza passou de 28% em 1980, para 66% em 1996. Na América Latina, a miséria urbana cresceu 50% entre 1980 e 1986. Mas os PAEs permitiram grandes lucros a empresas multinacionais, “importadores estrangeiros, narcotraficantes, oficiais militares e políticos” (DAVIS, 2006, p. 160). Esses novos ricos passaram a fazer compras em Miami e Paris enquanto seus compatriotas morriam de fome.

Na Ásia a situação não foi diferente. Os salários aviltados e o desemprego masculino obrigaram a massa feminina a entrar para o mercado de trabalho para ganhar qualquer trocado a mais. Na China e demais países asiáticos do Terceiro Mundo recém industrializados (Coréia, Tailândia etc), “milhões de moças escravizaram-se nas linhas de montagens das fábricas. Elas somam 90% dos 27 milhões de trabalhadores das Zonas de Livre Comércio” (DAVIS, 2006, p. 162).

A violenta recessão provocada pelos PAEs também fez explodir a chamada economia informal (em razão do desemprego em massa) na África e na América Latina.

A desindustrialização e a dizimação dos empregos masculinos no setor formal obrigaram as mulheres a improvisar novos meios de vida como montadoras pagas por peças, vendedoras ambulantes, costureiras, faxineiras, lavadeiras, catadoras de papel, babás e prostitutas (DAVIS, 2006, p. 162).

Mesmo assim, as condições de vida pioraram drasticamente nessas regiões. Agora 80% das crianças passaram ao nível da desnutrição, pois, além da fome, o atendimento à saúde privatizado em razão de exigência dos PAEs saiu do alcance dos pobres. Mas as desastrosas consequências humanas provocadas pela globalização hegemônica vão além. A seguir, apontamos mais alguns números estatísticos originados diretamente da implantação dos Programas de Ajustamento Estrutural pelo mundo afora, especialmente no que tange às consequências do desemprego, redução de salários e diminuição de investimentos sociais, apresentados por Davis (2006).

Os Programas de Ajustamento Estrutural (PAEs) impostos pelo Banco Mundial e pelo FMI provocaram uma verdadeira explosão de crescimento das favelas a partir da década de 1980, pois, como já abordamos anteriormente, para emprestar mais dinheiro e negociar a dívida externa, essas duas instituições, que funcionam como braços da globalização hegemônica, passaram a exigir, através de sucessivos PAEs: liberação de importações; privatizações de serviços públicos; fim dos subsídios dos alimentos; desmonte da máquina pública, com extinção de órgãos públicos e demissão de servidores; desindexação (com óbvia redução) de salários. Ora, sem dúvida, tudo isso ao mesmo tempo, por todas as partes do mundo, torna a pobreza generalizada - e globalizada -, desencadeando um processo de favelização sem precedentes, a atingir multidões que antes habitavam com alguma dignidade, mesmo com certo grau de pobreza.

Para piorar a situação, quase a totalidade dessas megafavelas surgidas do desajuste humano provocado pelos PAEs da globalização hegemônica se formaram em locais de risco de desmoronamentos, enchentes, enxurradas, deslizamentos, erupções vulcânicas etc. isso porque, obrigadas a morar próximo ao seu local de trabalho e logicamente não mais existindo terra sem dono, os novos miseráveis invadem encostas de morros, margens de rios, lixões, pântanos e até depósitos de resíduos tóxicos de fábricas.

Nem é preciso afirmar que a cada dia, na proporção que crescem essas favelas, aumentam os desmatamentos, o assoreamento de rios e córregos pelo lixo produzido, tornando-se frequentes os desastres. Em Caracas, dois terços da população (de 5,2 milhões de pessoas em 2005) vivem em favelas. Até 1950, ocorria menos de um deslizamento ou desmoronamento a cada dez anos. Hoje, ocorrem cerca de dois por mês.

Mas esse dantesco amontoado de miseráveis nesses locais sem qualquer infraestrutura gera ainda outra catástrofe humana inaceitável: as doenças derivadas da falta de saneamento básico. As doenças relacionadas a água, esgoto e lixo matam 30 mil pessoas por dia no mundo e representam 75% das doenças que afligem a humanidade. Moléstias do aparelho digestivo, “oriundas das más condições sanitárias e da poluição da água potável, como diarreia, enterite, colite, febre tifoide e febres paratifoides, são a principal causa de mortes no mundo” (DAVIS, 2006, p. 146). E não se pode esperar por números menos assustadores, efetivamente, uma vez que

90% dos esgotos da América Latina são lançados sem tratamento em rios e cursos d’água. Do ponto de vista sanitário, as cidades pobres são pouco mais que esgotos entupidos e transbordantes. [...] Em são Paulo, as favelas contaminaram a represa de Guarapiranga, que abastece 21% da cidade. São usados, “todo ano, 170 mil toneladas (17 mil caminhões) de substâncias químicas de tratamento para manter potável a água. Os especialistas avisam que esses expedientes são uma solução insustentável (DAVIS, 2006, p. 141).

Kinshasa, com cerca de 10 milhões de habitantes, não possui um só metro de sistema de esgotos, e sequer tem notícias de que é possível – e necessário – tratar os dejetos gerados por qualquer atividade humana antes de destiná-los aos cursos d’água. Em Nairóbi, na favela de Laini Saba, no bairro de Kibera, havia em 1998 apenas 10 latrinas para cada 40 mil pessoas. Usam-se os “banheiros voadores”, que consiste em defecar num saco plástico e depois atirar no telhado mais próximo. Em Manila não é diferente: menos de 10% das casas estão ligadas à rede de esgotos. Na Índia,

onde estimados 700 milhões de pessoas são obrigadas a defecar ao ar livre, apenas 17 de 3.700 cidades médias e grandes têm algum tipo de tratamento de esgoto. [...] em Bombaim, metade da população não tem um vaso sanitário para cagar, então cagam ao ar livre. São cinco milhões de pessoas. Se cada uma cagar meio quilo, serão dois milhões e meio de quilos de merda toda manhã (DAVIS, 2006, p. 144).

Apurou-se por pesquisa que, em 1990, 480 mil famílias de favelados da cidade de Délhi tinham acesso a apenas 160 vasos sanitários e 110 banheiros móveis em vans. Essa ausência de banheiros na Índia

é devastadora para as mulheres. Afeta sua dignidade, saúde, segurança e sensação de privacidade e, de forma indireta, o seu nível de instrução e sua produtividade. Para defecar, mulheres e meninas tem de esperar até o escurecer, o que as expõe a assédio e ataques sexuais. [...] Em Bangalore, mulheres pobres precisam esperar a noite para lavar-se ou aliviar-se. [...] Para evitar riscos, as mulheres têm de ir em grupos às cinco da manhã, muitas vezes em locais pantanosos [...] é comum as mulheres dizer que não comem durante o dia só para evitar ter de sair em campo aberto à noite” em Mumbai as mulheres têm de se aliviar entre as duas e cinco da madrugada [...] os banheiros públicos raramente são solução para as mulheres, pois quase nunca funcionam: as pessoas defecam em torno dos sanitários, porque estão entupidos há meses ou anos (DAVIS, 2006, p. 145).

Com efeito, esse quadro catastrófico, de degradação sistemática e progressiva das condições de vida da maioria dos habitantes do Planeta levam a concluir que o mundo se encontra socialmente no fundo do poço. Em relação à qualidade de vida e da saúde das populações faveladas, vislumbrar uma saída parece algo inalcançável, tendo em vista que, “Segundo a Organização Mundial de Saúde, os países pobres têm a seu cargo 90% das

doenças que ocorrem no mundo, mas não têm mais do que 10% dos recursos globalmente gastos em saúde” (SANTOS, 2011, p. 35).

Se em relação aos adultos a miséria provocada pelos efeitos dos PAEs no Terceiro Mundo foi avassaladora, não é preciso qualquer esforço racional para compreender o tamanho da tragédia social que atingiu em cheio o mundo da infância. Em Harare (capital do Zimbábue), o PAE de 1991 elevou 45% o custo de vida num só ano. Por conta disso,

Enquanto a mortalidade infantil dobrava, mães desesperadas de Harare mandavam os filhos pequenos de volta ao campo e reagrupavam familiares antes independentes para economizar aluguel e luz. Dezenas de milhares de crianças foram forçadas a abandonar a escola para trabalhar ou procurar comida (esmolas) (DAVIS, 2006, p. 164).

Em torno da metade das crianças faveladas de Daca exercem algum tipo de trabalho duro – sempre inadequado para sua faixa etária – com o objetivo de ganhar uns parcos trocados para ajudar no sustento do grupo familiar, “e apenas 7% das meninas e meninos entre cinco e dezesseis anos frequentavam a escola” (DAVIS, 2006, p. 186). Em Daca há 700 mil crianças trabalhadoras. Seus salários “constituem metade da renda das famílias pobres chefiadas por mulheres e quase um terço das famílias chefiadas por homens” (idem). Na cidade sagrada de Varanasi (Índia) há 200 mil crianças trabalhando na fabricação de tapetes e sáris, isso em condições de autêntica escravidão, já que até mesmo Estados não-democráticos de direito condenam o trabalho infantil.

Chamado a dar explicações ao mundo sobre a tragédia social provocada pelos PAEs nessa primeira fase do processo de globalização hegemônica, o Banco Mundial divulgou projeções dando conta de que a década de 1990, em razão da solidificação da globalização neoliberal, deveria sarar todas as feridas deixadas pelos PAEs na década de 1980. De fato, os juros caíram, o comércio se expandiu, os gastos militares recuaram e os insumos de produção industrial ficaram mais baratos. Mas esses efeitos da globalização neoliberal de nada valeram para os pobres. “Em 46 países o povo está mais pobre hoje do que em 1990. Em 25 países há mais gente faminta hoje do que em 1990” (DAVIS, 2006, p. 166).

Os PAEs da globalização neoliberal (década de 1990) aceleraram ainda mais a demolição dos serviços e empregos públicos, da indústria local e da agricultura familiar, provocando o colapso definitivo do emprego formal. Assim, muito ao contrário das falsas

projeções do Banco Mundial, “em vez de serem um foco de crescimento e prosperidade, as cidades tornaram-se o depósito de lixo de uma população excedente que trabalha nos setores informais de comércio e serviços, sem especialização, desprotegida e com baixos salários” (DAVIS, 2006, p. 175).

Nesse contexto lamentável, “Na América Latina, acrescenta o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a economia informal emprega 57% da força de trabalho e oferece 4 de cada 5 novos empregos” (DAVIS, 2006, p. 177). No período entre 2000 e 2004, no México, o índice de empregos formais permaneceu em zero, ou seja, todos os empregos criados ficaram restritos ao setor informal. “Mais da metade dos indonésios urbanos e 60% a 75% dos centro-americanos, 65% da população de Daca e Cartum e 75% dos moradores de Karachi subsistem no setor informal” (DAVIS, 2006, p. 177).

Mas de todas as megacidades com megapobreza, Kinshasa (capital do Congo) é a que mais se destaca em estratégias de trabalho informal na luta desesperada para sobreviver. Menos de 5% dos seus habitantes recebem algum tipo de salário. Segundo Davis (2006, p. 192), “A amarga frustração do povo levou a uma mentalidade de feitiçaria nefasta”. As pessoas acreditam que o seu destino miserável se deve a uma maldição causada por crianças bruxas. Assim, acreditando literalmente na saga de Harry Potter, uma revolta histérica contra as crianças tomou conta das megafavelas de Kinshasa. Acusadas de bruxaria, milhares de crianças são expulsas de casa (para viver nas ruas) ou até mesmo mortas em rituais de exorcismo.

De fato, as consequências humanas relacionadas aos efeitos provocados por esse modelo socioeconômico perverso chamado globalização neoliberal são estarrecedoras. Em muitos países do Terceiro Mundo a miséria se tornou tão intensa, que as pessoas comercializam os próprios filhos, a dignidade, a liberdade e até mesmo partes do corpo, como observa Davis (2006, p. 189):

A parte mais horrenda da economia informal, mais do que a prostituição infantil, é a crescente demanda mundial de órgãos humanos, mercado criado na década de 1980, pelas inovações da cirurgia de transplantes de rim. Na Índia, a periferia empobrecida de Chennai (Madras) tornou-se mundialmente famosa por suas “fazendas de rins”. [...] a maioria dos doadores eram mulheres obrigadas a vender um rim para levantar dinheiro para sustentar os filhos.

Todas essas trágicas consequências humanas produzidas a partir da solidificação da globalização hegemônica em todas as suas dimensões, entretanto, apesar de conter uma verdade assustadora que possibilita a perplexidade, não deixam de representar também, por si sós, um poderoso fator de mudança. Primeiro, porque desmente por completo o mito segundo o qual esse modelo perverso seria a solução definitiva de todos os males sociais, principalmente porque acabaria com a pobreza, já que - argumentava-se - “a liberdade (de comércio e a mobilidade de capital, antes e acima de tudo) é a estufa na qual a riqueza cresceria mais rápido do que nunca; e uma vez multiplicada a riqueza, haverá mais para todos” (BAUMAN, 1999, p. 79). Segundo, porque ditas consequências começam a transformar-se em sementes do novo, ou seja, de ações contra-hegemônicas equivalentes a soluções “não mais centradas no dinheiro, como na atual fase da globalização, para encontrar no próprio homem a base e o motor da construção de um novo mundo” (SANTOS, 2008, p. 118).