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Modernamente, a expressão cidadania aparenta ser de fácil compreensão, e parece traduzir dois aspectos de extrema obviedade: a) a possibilidade de participação efetiva de todos os indivíduos na direção política da sociedade; b) a possibilidade efetiva de que todos os indivíduos gozem de todos os direitos humanos imagináveis, dentro de uma igualdade básica garantida por um ordenamento jurídico. Teoricamente, de fato a expressão cidadania é de fácil compreensão, e seu alcance e finalidade essencial são mesmo óbvios. Entretanto, na prática é que as coisas sempre se complicaram, desde o surgimento da ideia, na Grécia antiga, quando a própria lei determinava que uma parcela dos indivíduos não se encontrava sob o manto da cidadania, sendo o status de cidadãos livres reservado aos privilegiados integrantes de algumas classes tidas como superiores.

No decorrer da história, é claro que a nomenclatura e mesmo a interpretação teórica que se deu à expressão cidadania sofreram inúmeras modificações, sempre na proporção das modificações ocorridas no âmbito das relações Estado-cidadão. Daí as designações de (a) cidadania liberal, “atrelada à ideia de participação do indivíduo no poder, via representação, com o condão de proteger as liberdades individuais diante do Estado nacional” (SILVA, 2009, p. 46); b) cidadania social, que se caracteriza em grande parte pela inclusão das pessoas carentes no sistema de proteção social do Estado nacional, proporcionando-se-lhes um mínimo de bem-estar por meio da garantia dos direitos sociais como educação, saúde, proteção nas relações de trabalho, previdência social etc.; mais recentemente, fala-se em cidadania participativa, cidadania transnacional, despontando ainda com destaque entre os teóricos modernos do tema a chamada cidadania universal ou cosmopolita.

No entanto, seja qual for a nomenclatura utilizada para designar cidadania, o que se observa é que todos os conceitos de cidadania trabalhados até aqui estão de certa forma, em maior ou menor grau, ligados à noção de Estado territorial, significando, na prática, que o indivíduo só é cidadão se pertencer a um Estado nacional, ou seja, o indivíduo só será titular de direitos humanos se estiver legalmente dentro das fronteiras territoriais de um Estado nacional. Fora disso, será “um diferente para o Estado e quase sempre diferente para os outros

nacionais” (LUCAS, 2010, p. 102). Portanto, o nacionalismo diferencia de forma objetiva aqueles que são daqueles que não são cidadãos, negando a estes, de forma implacável e peremptória, o direito a ter direitos, inclusive o direito a ter uma identidade; “o nacionalismo tranca as portas, arranca as aldravas e desliga as campainhas, declarando que apenas os que estão dentro têm direito de aí estar e acomodar-se” (BAUMAN, 2001, p. 203).

Assim, a circunscrição territorial do Estado nacional passou a representar um espaço público concreto, objetivo, em que o indivíduo nele inserido pode usufruir de todos os direitos humanos em completa segurança. Mas é bom notar bem: para gozar da titularidade e fruição dos direitos humanos, esse indivíduo deverá preencher rigorosamente os requisitos de pertencimento a esse Estado. Não os preenchendo, ou seja, se o indivíduo não pertencer a um determinado Estado nacional, todos os seus direitos lhe são sumariamente negados. Logo,

Ao constituir-se no único local de pertença, de inserção na comunidade, o Estado passou a representar a possibilidade de construir a própria identidade e de garantir um lugar no mundo. Esse processo transformou os vínculos com o Estado na única alternativa para se ter direitos, mas, paradoxalmente, na maneira mais simples de sonegá-los, pois bastava negar o direito de alguém pertencer a um Estado para negar-lhe todos os direitos humanos, ou, no mínimo, submetê-lo a um regime jurídico excepcional (LUCAS, 2010, p. 110).

Ora, é lógico que as radicais transformações sociais, políticas, econômicas e culturais decorrentes do processo de globalização tornaram essa forma excludente de exercício de cidadania (pelo vínculo ao Estado) absolutamente insuficiente, impondo-se a descoberta urgente de uma nova perspectiva de garantia de direitos humanos, que alcance todos os indivíduos do Planeta, independentemente de pertencerem ou não a um Estado, independentemente de características culturais, religiosas, ideológicas, de gênero, sexo ou raça. Neste tempo em que se compartilham mundialmente informações, tecnologias, hábitos, comportamentos, ideias, sofrimentos por desastres ambientais ou por ações terroristas, não é admissível que apenas os direitos humanos não sejam globalizados; não se pode aceitar que no moderno mundo globalizado haja pessoas privadas do direito de ter uma pátria e, por consequência, do direito de ter direitos unicamente porque não pertencem a um Estado. Sem dúvida, a ideia de cidadania já não pode mais ficar restrita a um vínculo obrigatório com os Estados nacionais; não pode mais situar-se exclusivamente “dentro das fronteiras de um único Estado-nação, como pôde sê-lo, mais razoavelmente, na época em que os Estados-nação estavam sendo forjados” (HELD, 2001, p. 572).

Não que os vínculos com os Estados nacionais devam ser extintos, tampouco que estejamos prestes a experimentar a morte dos Estados nacionais, como já se pensou, ou que a identidade nacional estaria com os dias contados; pelo contrário, “o exercício da cidadania, mesmo se avança a noção de moralidade internacional, é, ainda, um fato que depende da presença e da ação dos Estados nacionais” (SANTOS, 2008, p. 42). Com maior razão ainda, mostra-se indispensável a participação efetiva do Estado nacional no processo de construção de uma cidadania cosmopolita ou universal, em que seja possível o exercício dos direitos humanos - enquanto expressão multicultural - por todos os integrantes da comunidade humana mundial. O que estamos defendendo é que, em decorrência da intensificação e complexificação dos processos globalizantes, o vínculo com o Estado nacional, como único espaço público de produção e fruição de cidadania, apresenta-se hoje insuficiente para amparar todos os indivíduos do mundo. É necessário e urgente, portanto, o surgimento de uma nova forma de cidadania, que seja sem fronteiras, apta a

construir espaços novos de participação política, nova compreensão de pertencimento, e reconhecer a igual dignidade de todos os homens – independentemente de qualquer adjetivo -, capaz de obrigar todos os Estados a respeitarem os direitos humanos não apenas como um projeto jurídico nacional, mas essencialmente em razão de serem direitos que reciprocamente se devem os homens em função de sua humanidade compartilhada (LUCAS, 2010, p. 124).

É a cidadania cosmopolita. Uma forma de cidadania que permite considerar e conservar os Estados nacionais, sim, com todas as suas estruturas político-administrativas, mas que vai além de suas fronteiras territoriais. Uma cidadania que concebe desenvolvimento/crescimento socioeconômico não mais a partir do aumento do PIB, apenas, mas principalmente a partir do índice de desenvolvimento humano, levando em conta, preponderantemente, “o desenvolvimento democrático, o desenvolvimento igualitário, o desenvolvimento sustentável” (STIGLITZ, 2001, p. 476), o aumento dos números da inclusão social, tudo em âmbito global. Uma cidadania universal que humaniza o capitalismo, podendo por isso com ele coexistir em plena harmonia, já que desse processo de humanização das relações socioeconômicas e de poder político surge também um “indivíduo cooperativo; protetor do meio ambiente; comprometido com a partilha equitativa de trabalho remunerado e doméstico; e disposto a defender os direitos de desconhecidos tão firmemente quanto os seus próprios” (EDWARDS, 2001, p. 555-556). Uma cidadania, enfim, que respeita com rigor as diferenças humanas e rompe definitivamente com o eurocentrismo, o androcentrismo, o sexismo e demais formas de segregação ético-moral. Além disso, como uma cidadania

cosmopolita não pode vingar divorciada da preocupação radical com as condições da vida planetária (humana e não humana), sua inauguração deve confundir-se com a implantação de uma nova ética ambiental, completamente despida de qualquer traço de antropocentrismo, pois, na verdade, não há cidadania universal e planetária sem dignidade de vida, e não há vida humana digna sem respeito à vida dos seres não humanos.

3 CIDADANIA PLANETÁRIA E ÉTICA DA VIDA: NOVAS PERSPECTIVAS

Antes de adentrar o tema proposto neste capítulo, faz-se necessário lembrar que, em todo o decorrer do presente trabalho, estamos tratando de cidadania dentro do contexto da globalização, o que impõe uma análise voltada a conceber cidadania enquanto planetária e plena. Assim, consequentemente, a única abordagem que nos interessa é de uma cidadania sem fronteiras, tanto no sentido territorial como filosófico, ou seja, de uma cidadania que não se acha limitada pela circunscrição territorial do Estado nacional, tampouco por questões culturais, religiosas, de raça, classes sociais ou por qualquer outra condição social, política ou econômica. Referimo-nos, portanto, a uma cidadania cosmopolita, universal, que, como explicitado no capítulo anterior, está ligada também à preocupação radical com a manutenção das condições de vida sociobiológica planetária (humana e não humana), o que equivale a dizer que não se pode falar em cidadania planetária e plena sem que isso represente a possibilidade de viver dignamente, e viver dignamente implica cuidado com todas as formas de vida, pois todos nós – seres humanos ou não - que habitamos o planeta Terra, somos absolutamente interdependentes. Em outros termos, a cidadania cosmopolita envolve também, necessariamente, o fim do antropocentrismo.

Ora, se estamos compreendendo a cidadania a partir dessas características, é natural e lógico que também estejamos pensando a ética – como pressuposto da cidadania – com semelhante roupagem, ou seja, uma ética despida de qualquer vinculação cultural, religiosa, socioeconômica, de raça, espécie (pois condena o antropocentrismo), nacionalidade, ideologia ou qualquer outro meio capaz de converter a ética em instrumento ou meio de satisfação de interesses particulares. Enfim, nossa ética deve ser imparcial e universal, pois se presta, enquanto pressuposto da cidadania planetária e plena, à defesa da vida planetária a qualquer custo.