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Cidadania e ética da vida: pressupostos e novas perspectivas

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Academic year: 2021

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Ijuí (RS) 2012

UNIJUÍ – UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais

MESTRADO EM DESENVOLVIMENTO

MÁGIDA CRISTIANE DE ALMEIDA

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Ijuí (RS) 2012

MÁGIDA CRISTIANE DE ALMEIDA

CIDADANIA E ÉTICA DA VIDA: PRESSUPOSTOS E NOVAS PERSPECTIVAS

Dissertação apresentada ao Curso de Pós- Graduação Stricto Sensu – Mestrado em Desenvolvimento, Área de Concentração: Direitos Humanos e Desenvolvimento, da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ), como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Desenvolvimento.

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A447c Almeida, Mágida Cristiane de.

Cidadania e ética da vida : pressupostos e novas perspectivas / Mágida Cristiane de Almeida. – Ijuí, 2012. –

103 f. ; 30 cm.

Dissertação (mestrado) – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Campus Ijuí). Desenvolvimento.

“Orientador: Gilmar Antonio Bedin”.

1. Globalização. 2. Direitos humanos. 3. Ética da vida. 4. Alteridade.

5. Antropocentrismo. 6. Cidadania planetária. I. Bedin, Gilmar Antonio.

II. Título. III. Título: Pressupostos e novas perspectivas. CDU: 172 372.832 Catalogação na Publicação

Frederico Cutty Teixeira

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A Banca Examinadora, abaixo assinada, aprova a Dissertação C CIIDDAADDAANNIIAAEEÉÉTTIICCAADDAAVVIIDDAA::PPRREESSSSUUPPOOSSTTOOSSEENNOOVVAASS P PEERRSSPPEECCTTIIVVAASS elaborada por

Mágida Cristian e d e Al meid a

como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Desenvolvimento

Banca Examinadora:

Prof. Dr. Gilmar Antonio Bedin (UNIJUÍ): ________________________________________

Prof. Dr. Noli Bernardo Hahn (URI/SA): _________________________________________

Prof. Dr. Darcísio Corrêa (UNIJUÍ): _____________________________________________

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AGRADECIMENTOS

A Deus, pela dádiva do sonho e da esperança de um mundo melhor.

Ao querido esposo, Nilton Kasctin dos Santos, pelo incentivo à conclusão deste trabalho e pela revisão ortográfica.

À filha Maria Letícia, pela compreensão da ausência durante o tempo da pesquisa.

Ao professor doutor Darcísio Corrêa, pelas dicas bibliográficas, empréstimos de livros e por ter-me iniciado nesse tema tão apaixonante.

Ao professor doutor Gilmar Antonio Bedin, orientador desta dissertação, pelas valiosas e inesquecíveis lições sobre Estado, ética e cidadania.

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RESUMO

A partir do processo de globalização, a humanidade passou a experimentar profunda transformação em todos os aspectos das relações sociais. Mas esse fenômeno, embora tenha provocado radicais mudanças nas esferas política, social, cultural e econômica, não trouxe soluções para os problemas socioeconômicos do mundo; ao contrário, fez intensificarem-se a miséria e a concentração de renda, o que é inaceitável em um período histórico cujo avanço tecnológico torna possível a disponibilização de recursos e a produção de bens suficientes para satisfazer as necessidades básicas de toda a comunidade humana. Depois de tecer algumas considerações sobre Estado nacional, cidadania e direitos humanos, o trabalho passa a tratar das consequências humanas da globalização hegemônica, sustentando a necessidade de ações concretas no sentido de se buscar a implantação de uma cidadania plena e planetária, que permita a vivência dos direitos humanos não mais sob a ótica da universalidade - que tende a homogeneizar de cima para baixo, como se todos os seres humanos do Planeta sentissem idêntica necessidade de usufruir idênticos direitos, independentemente dos aspectos particulares de cada cultura -, mas a partir de uma dimensão multicultural. Isso implica o surgimento de uma nova ética, baseada no respeito às diferenças de ser, pensar e viver. E o ator principal nessa luta em defesa de uma cidadania cosmopolita será o indivíduo tornado sujeito autônomo e livre a partir do encontro com o outro, quando se tornam possíveis práticas de alteridade que oportunizam a reinvenção constante do humano. Por fim, o presente trabalho aponta que uma ética da vida voltada a fundamentar essa cidadania plena e cosmopolita não se mostra possível apenas no respeito à alteridade, no (re)encontro do sujeito com o outro, mas pressupõe e significa também o (re)encontro do ser humano com a natureza, levando-o a enxergar todos os seres não humanos como parceiros de morada na grande casa planetária, a partir de uma nova ética ambiental, despida de qualquer traço de antropocentrismo.

Palavras-chave: Cidadania planetária. Globalização. Ética da vida. Direitos humanos. Alteridade. Antropocentrismo.

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ABSTRACT

From the globalization process on, humanity started to experience a deep change on all the social relationship aspects. However, despite de fact that this phenomenon have created radical changes in politic, social, cultural and economic spheres, it did not bring solutions for the world’s social and economic problems. On the contrary, it contribute to intensify poverty and income concentration, which is unacceptable in a historical moment that the technology advances make possible to have resources and production to satisfy basic need of the whole human community. After making some considerations on the national State, citizenship and human rights, this work approaches the consequences of the hegemonic globalization for humans, sustaining the need for concrete actions in the sense of reaching the implementation of a fulfilling and planetary citizenship that allows the human rights to transcend the universality point of view; which tends to homogenize from top to bottom as all human beings on the planet have the same needs of the same rights, regardless of particular aspects of each community. Transcend it to a new multicultural dimension that implies the emergence of a new ethics based on the respect for the differences on being, thinking and living. The main actor in this process, fighting for a cosmopolitan citizenship will be the individual with autonomy and freedom, beginning with meeting the other party when practices allowing reinvention of the human being based on alterity take place. To finalize, this work points out that an ethics based on supporting a fulfilling and cosmopolitan citizenship is not possible only through the meeting with the other party, alterity, but it also assumes and gives meaning to the reencounter of the human being and nature, leading to perceive human beings as partners on sharing this big planetary house, from a new environmental ethics that is free from any anthropocentric aspect.

Key words: Planetary citizenship. Globalization. Life ethics. Human rights. Empathy. Anthropocentrism.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO... 8

1 CIDADANIA NACIONAL E ESTADO MODERNO ... 11

1.1 Cidadania e espaço público: um novo conceito... 11

1.2 Precedentes históricos da cidadania moderna ... 16

1.3 Os direitos humanos como referência ético-política da cidadania nacional... 19

2 CIDADANIA E GLOBALIZAÇÃO: É POSSÍVEL UMA CIDADANIA SEM FRONTEIRAS?... 31

2.1 Globalização hegemônica e consequências humanas... 31

2.1.1 Sobre a globalização política ... 32

2.1.1.1 O consenso do Estado fraco ... 32

2.1.1.2 O consenso da democracia liberal ... 33

2.1.1.3 O consenso sobre o primado do direito e do sistema judicial ... 33

2.1.2 Sobre a globalização econômica... 35

2.1.3 Sobre a globalização cultural... 36

2.1.4 Sobre a globalização social... 38

2.2 Estado, sociedade civil e globalização contra-hegemônica ... 45

2.3 Temas globais, responsabilidades globais ... 50

2.3.1 Em relação ao tema meio ambiente ... 52

2.3.2 Em relação ao tema fraternidade ... 53

2.4 Uma cidadania cosmopolita ... 56

3 CIDADANIA PLANETÁRIA E ÉTICA DA VIDA: NOVAS PERSPECTIVAS ... 60

3.1 A ética como pressuposto da cidadania ... 60

3.2 Cidadania planetária e ética da vida: pensando novas formas de alteridade ... 69

3.3 O (re)encontro homem-natureza: a perspectiva teórica de Leonardo Boff e Peter Singer... 77

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 94

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INTRODUÇÃO

Vivemos um período histórico novo, com mudanças profundas em todas as dimensões da vida humana. Um período em que se experimenta uma forma de vida totalmente nova, mas que também e ao mesmo tempo se caracteriza como uma crise sem precedentes, expressa na sensação de completas insegurança e incerteza em relação ao futuro. Insegurança e incerteza porque “em estado de crise não sabemos que rumo as coisas irão tomar; em estado de crise as coisas escapam ao controle, não temos domínio sobre o fluxo dos acontecimentos” (BAUMAN, 2000, p. 145). Assim se caracteriza o atual momento histórico a que denominamos globalização: é um período e ao mesmo tempo uma crise.

Mas não uma crise daquelas a que estamos acostumados, cuja solução está no ajuste das contas ou no aumento do Produto Interno Bruto (PIB) com a ajuda do Fundo Monetário Internacional (FMI) ou do Banco Mundial. Trata-se de crise de cidadania, de ética, de alteridade, de dignidade de vida, que causa, também, é claro, crise econômica para a maioria das pessoas. Essa crise afeta todos os aspectos da vida humana, destacando-se – em razão das conseqüências que provoca – nos aspectos político (o enfraquecimento dos Estados nacionais), econômico (desregulação da economia, permitindo a intensificação do império econômico das empresas transnacionais em detrimento das produções local e familiar) e social (recrudescimento da desigualdade e destruição dos laços sociais). Portanto, a crise a que nos referimos atinge em cheio os Estados nacionais, a sociedade civil e os indivíduos enquanto titulares formais de direitos de cidadania.

O primeiro capítulo do trabalho analisa a evolução histórica da cidadania nacional, relacionando o tema ao surgimento e aperfeiçoamento do Estado moderno. Nesse contexto, trata ainda dos direitos humanos como fator de limite à soberania estatal e ao mesmo tempo como referência ética e política da cidadania.

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Nos capítulos seguintes, tratamos sobre as consequências humanas provocadas pela globalização hegemônica, quer indicando elementos que sustentam não só a necessidade, mas também a possibilidade de se inaugurar uma cidadania cosmopolita e plena, baseada na ética da vida, o que implica uma nova forma de alteridade e o necessário (re)encontro do homem com a Natureza.

Evidentemente, o quadro catastrófico produzido pela exacerbação da desigualdade social no mundo em razão da globalização hegemônica, representado pelo aumento absurdo da miséria e, ao mesmo tempo, pela intensificação do processo de concentração da riqueza nas mãos de poucos, induz à conclusão de que qualquer forma de atuação contra-hegemônica seja algo extremamente difícil. Entretanto, à luz de uma ética da vida (biocêntrica) e do respeito absoluto à alteridade (cujo pressuposto básico é uma vivência dos direitos humanos enquanto direitos multiculturais), a mesma situação de desesperança – que pode, sim, significar dificuldade -, pode produzir a força suficiente para o surgimento de uma nova experiência existencial, com o triunfo da vida no seu sentido mais abrangente: da vida humana e não humana.

Na ótica deste trabalho, a cidadania plena significa a construção do espaço público para viver dignamente. Mas não é só isso. Não significa apenas a possibilidade de a humanidade toda poder compartilhar um espaço onde pode satisfazer plenamente as necessidades básicas durante determinado período histórico. Significa que todos os indivíduos que integram a humanidade possam experimentar a satisfação de todas as necessidades humanas, de forma equitativa, mas não apenas por determinado período. Portanto, cidadania planetária e plena é vida digna sustentável, é garantia de continuidade, por tempo ilimitado, de todos os fatores e condições básicas que viabilizam essa vida digna. Isso envolve algo óbvio: a necessidade de enxergar os seres não humanos (animais, vegetais e minerais) como parceiros planetários, quebrando-se o paradigma antropocentrista de maneira a dar lugar a uma nova ética, biocentrada, que leve em conta a necessidade desses outros seres continuarem convivendo e coexistindo em harmonia nesse habitat que não pertence só ao homem. Equivale a dizer que não se pode falar em cidadania planetária e plena sem que isso represente a possibilidade de viver dignamente, e viver dignamente implica cuidado com todas as formas de vida, pois todos nós – seres humanos ou não – que habitamos o planeta Terra, somos absolutamente interdependentes. Em outros termos, repita-se, a cidadania cosmopolita envolve também, necessariamente, o fim do antropocentrismo.

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A situação atual da humanidade é de completa ruptura afetiva tanto em relação ao meio ambiente, quanto em relação à fraternidade. Esses dois temas (natureza e fraternidade), que se apresentam logicamente interligados, constituem, sem dúvida, os principais problemas que hoje preocupam o mundo, pois podem ser resumidos na possibilidade concreta da inviabilização da vida em todos os sentidos. Por isso sustentamos que a solução para tais problemas não consiste em outra coisa senão na inauguração de uma ética da vida que: a) em relação ao tema do meio ambiente, represente sustentabilidade das práticas humanas a qualquer custo (mesmo que isso importe, temporariamente, em estagnação do crescimento econômico); b) em relação à fraternidade, signifique a prática de uma cidadania planetária, no âmbito da vivência de uma alteridade que só encontre limite em ações que neguem a dignidade da vida. Isso implicaria, sem dúvida, tanto a solução para a degradação ambiental, como para a redução sensível das desigualdades sociais, uma vez que instaura os processos de desenvolvimento verdadeiramente sustentável e de redistribuição das riquezas, que trazem como resultado natural a tão sonhada garantia de vida planetária digna.

A pesquisa que permitiu a elaboração deste trabalho foi realizada pelo método indutivo, a partir da leitura de diversos autores, revisão bibliográfica e conversas com o orientador. Todo o apoio bibliográfico referido consistiu em material literário encontrado em livros, ensaios e outros tipos de escritos contendo informações relacionadas ao tema.

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1 CIDADANIA NACIONAL E ESTADO MODERNO

Os primeiros teóricos do Estado moderno trabalharam o conceito de cidadania necessariamente ligado à ideia de soberania estatal. Em outras palavras, sustentavam a ideia segundo a qual a cidadania na verdade decorre da soberania do Estado, significando apenas o vínculo dos indivíduos com o poder do Estado. Mesmo atualmente, quando a ideia de cidadania está inegavelmente atrelada aos princípios universais da dignidade, da igualdade e da liberdade, não é possível compreender cidadania sem relacioná-la ao conceito de Estado nacional, pois o seu exercício só se torna possível ao indivíduo que mantiver vínculos com o ente estatal.

1.1 Cidadania e espaço público: um novo conceito

Dentro do atual contexto histórico, a cidadania não pode mais ser vista apenas a partir de uma dimensão meramente jurídica, isto é, não se pode conceber a cidadania como instituto de garantia formal, apenas, da igualdade de todos perante a lei, com o que se contentou o liberalismo até aqui. Não que essa dimensão deva ser afastada, pois é através dela que são formalmente garantidos os direitos humanos. Acontece que, apesar de representar uma condição necessária para a garantia de alcance e exercício da cidadania plena, a dimensão jurídica se mostra insuficiente do ponto de vista prático, “pela simples razão de a mera formalização constitucional dos direitos de cidadania não lhes garantir eficácia e efetividade” (CORRÊA, 2010, p. 26). A essa dimensão jurídica de cidadania, portanto, deve-se juntar uma dimensão política, que “impele a construir coletivamente as condições materiais da dignidade humana” (CORRÊA, 2010, p. 26).

Garantir direitos humanos (ou fundamentais) na constituição, nas leis ou em documentos internacionais não significa tão somente a previsão desses direitos como algo inegociável, normalmente em cláusulas pétreas; é preciso que se criem as condições de fruição efetiva de tais direitos dentro de um espaço público. No entanto, como a vida social é dinâmica, está em constante transformação, as condições para que se concretize a possibilidade de exercício da cidadania na prática não aparecem prontas, logicamente; criar condições de fruição de direitos humanos pressupõe a ideia de processo. Assim, segundo Corrêa (2010, p. 26), cidadania deve ser entendida como um “processo de construção de um

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espaço público que ofereça a possibilidade concreta de realização de cada ser humano, em efetiva igualdade básica”.

A dimensão política da cidadania é que permite ao indivíduo a construção do espaço de realização efetiva dos direitos humanos garantidos na dimensão jurídica. Esse espaço é público porque diz respeito à convivência coletiva em que o indivíduo constrói sua identidade de cidadão, exercendo efetivamente a igualdade em dignidade e direitos. Em outros termos, espaço público é, portanto, a própria convivência coletiva que permite ao indivíduo realizar-se como sujeito de direitos fundamentais, alcançando assim o status de cidadão, “concedido àqueles que são membros integrais de uma comunidade” (MARSHALL apud CORRÊA, 2010, p. 23).

Buscar um novo conceito de cidadania e de espaço público implica ver atentamente o significado do que seja “realização humana”, que no capitalismo se acha historicamente atrelada ao que se entende por desenvolvimento. Isso porque, dependendo do ângulo pelo qual se analise o tema, pode-se concluir que o homem é um ser portador de necessidades ilimitadas. Nesse caso, “para satisfazê-las, o desenvolvimento deve ser também ilimitado. Ocorre que elas nunca, obviamente, podem ser satisfeitas plenamente. Logo, na medida em que o ser humano se orientar por suas necessidades, haverá sempre insatisfação” (BOFF, 2003, p. 88).

Claro que uma concepção justa de cidadania – como se pretende delinear neste trabalho – deve respeitar com rigor as diferenças de cada ser humano, até porque a ideia de justiça jamais pode estar dissociada da liberdade para ser e viver diferente. No entanto, esse direito à diferença deve ficar restrito ao que se relaciona à intimidade do indivíduo, tratando- se de assunto que diz respeito ao que se entende por privado, em contraposição àquilo que se entende por público. Assim, para que se concretize o propósito de encontrar um novo conceito de cidadania e espaço público, é necessário primeiro desconstruir-se a dicotomia público/privado vigente no capitalismo neoliberal, que historicamente coloca as relações econômicas dentro da esfera estritamente privada. Mas essa desconstrução conceitual sobre a distinção entre público e privado deverá promover uma compreensão no sentido de que

o público diz respeito ao comum, ao visível, às condições vitais de realização do ser humano (incluindo nessas condições os aspectos econômicos), enquanto o privado refere-se à dimensão da intimidade, daquilo que é exclusivo do ser humano na sua

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individualidade e que, não sendo de interesse público, não deve ser socializado. Trata-se do respeito à intimidade como um direito autônomo da personalidade. O espaço público é a esfera da democracia e da igualdade construídas pelas convenções da comunidade humana, enquanto o espaço da privacidade diz respeito à esfera íntima, não socializável, na qual se vivencia a identidade particular de cada cidadão. Nesta última predomina o direito à diferença a partir da singularidade e da especificidade de cada indivíduo, constitucionalmente garantida pelos direitos de personalidade. A norma jurídica tutela, neste sentido, o direito de cada pessoa estar só, possibilitando-lhe excluir do conhecimento de terceiros o que somente a ele diz respeito no âmbito da vida privada (CORRÊA, 2010, p. 54).

Em outros termos, esse ser e viver diferente não pode servir para justificar qualquer tipo de injustiça social; não pode significar, por exemplo, que alguns sejam compelidos à miséria econômica enquanto outros (poucos) gozam de liberdade plena e do beneplácito do Estado para repartir entre si noventa por cento das riquezas de um país inteiro, na avidez por satisfazer suas “necessidades” eternamente ilimitadas. Essa é a razão pela qual se defende a ideia de tornar de interesse público tudo o que se relaciona com a economia nacional, pois, de fato,

não pode mais a economia ser reduzida a mera questão doméstica, quando dela depende a organização pública do processo vital de sobrevivência da espécie. Ou seja, a produção social da vida material não pode mais ser considerada como um campo dos interesses privados, jogada às puras e competitivas leis do mercado. Somente essa reconstrução pode trazer um novo sentido à cidadania (CORRÊA, 2010, p. 55).

Estabelecer uma nova compreensão sobre os significados de cidadania e espaço público para o contexto da realidade social contemporânea reclama ainda e ao mesmo tempo uma análise aprofundada sobre a igualdade humana, à medida que “a cidadania é fundamentalmente o processo de construção de um espaço público que propicie as condições necessárias para a vivência e a realização de cada ser humano em efetiva igualdade básica, mas respeitadas as diferenças próprias de cada um” (CORRÊA, 2010, p. 27).

Convém deixar claro, entretanto, que a “igualdade básica” referida por Corrêa (2010, p. 27) nada tem a ver com a utopia da igualdade socioeconômica material, que sempre moveu a velha esquerda socialista, consistente na ideia de que todos os cidadãos, produtivos ou não, têm o direito de ter a mesma condição social, isto é, de gozar dos resultados da produção de forma isonômica. Também não tem a ver com as metas das revoluções liberais, que sempre tiveram em mira apenas “a igualdade jurídica, não a igualdade das condições de fato” (FERREIRA FILHO, 2010, p. 204).

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Não há dúvida, portanto, que a conceituação de cidadania cunhada por Corrêa (2010) aproxima-se do ideal para corresponder às exigências da sociedade atual, à medida que permite identificar uma perfeita confluência da dimensão jurídica com a dimensão política, única maneira de tornar possível o efetivo exercício dos direitos humanos pelos cidadãos.

Mas torna-se imprescindível, nesse contexto, analisar como se dará a possibilidade efetiva de construção do espaço público que permite ao cidadão a sobrevivência com dignidade no âmbito de uma convivência social em condição de efetiva igualdade básica entre todos os cidadãos. A positivação de direitos humanos em constituições já é realidade há mais de um século. Mas a luta pela implementação efetiva desses direitos ainda continua, e muito pouco se tem avançado no sentido de estabelecer-se uma cidadania plena, de garantir as condições de construção do espaço público onde se dá de fato a realização dos direitos humanos. Resta perguntar, portanto, que fenômeno tão forte estaria impedindo o cumprimento desse vigoroso e abundante conjunto normativo que protege os direitos de cidadania? Qual a razão de um direito humano, fundamental, constar na constituição de um país, em inúmeros documentos internacionais e nas leis, para permanecer apenas no papel? Essa indagação já foi respondida por Lassalle (1985, p. 45-46):

Podem os meus ouvintes plantar no seu quintal uma macieira e segurar no seu tronco um papel que diga: “Esta árvore é uma figueira”. Bastará esse papel para transformar em figueira o que é macieira? Não, naturalmente. E embora conseguissem que seus criados, vizinhos e conhecidos, por uma razão de solidariedade, confirmassem a inscrição existente na árvore de que o pé plantado era uma figueira, a planta continuaria sendo o que realmente era e, quando desse frutos, destruiriam estes a fábula, produzindo maçãs e não figos. Igual acontece com as constituições. De nada servirá o que se escrever numa folha de papel, se não se justifica pelos fatos reais e efetivos do poder”.

Ao escrever assim, estava Lassalle (1985) explicando que existem, na verdade, duas constituições: uma, real e efetiva, integralizada pelos fatores reais de poder que regem a sociedade, e essa outra constituição escrita, a folha de papel. Esses fatores reais de poder são representados por certos setores influentes da sociedade, como, no século XIX, na Europa, a monarquia, a aristocracia, a grande burguesia e os banqueiros. Uma vez organizados no sentido de fazer prevalecer seus interesses no texto da constituição, cada um desses segmentos sociais correspondia na verdade a uma parte da constituição:

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Juntam-se esses fatores reais de poder, os escrevemos em uma folha de papel e eles adquirem expressão escrita. A partir desse momento, incorporados a um papel, não são simples fatores reais de poder, mas sim verdadeiro direito – instituições jurídicas. Quem atentar contra eles atenta contra a lei, e por conseguinte é punido. Ninguém desconhece o processo que se segue para transformar esses escritos em fatores reais do poder, transformando-os desta maneira em fatores jurídicos.

Está claro que não aparece neles a declaração que os senhores capitalistas, o industrial, a nobreza e o povo são um fragmento da constituição, ou que o banqueiro x é outro pedaço da mesma. Não, isto se define de outra maneira, mais limpa, mais diplomática (LASSALLE, 1985, p. 19-20).

Fica fácil compreender, portanto, a partir da ilustração de LASSALLE (1985), a extrema dificuldade que se tem na implementação dos direitos humanos de qualquer minoria, apesar de a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão datar de mais de meio século. Por isso aconselhava Bobbio (1992, p. 45): “A quem pretende fazer um exame despreconceituoso do desenvolvimento dos direitos humanos depois da Segunda Guerra Mundial, aconselharia este salutar exercício: ler a Declaração Universal e depois olhar em torno de si”.

Não estamos negando pequenos avanços pontuais em termos de cidadania e espaço público, que sempre ocorreram e continuam ocorrendo nos Estados Democráticos de Direito, mesmo que não haja muita pressão e organização dos setores excluídos. Entretanto, é importante não esquecer que muitos programas de políticas públicas governamentais que beneficiam minorias (negros, índios, homossexuais, refugiados de guerra, mulheres e pobres) às vezes são de interesse dos próprios governantes, pois, mudando-se o periférico - algumas coisas pequenas da estrutura do poder -, garante-se que o centro do poder não seja atingido, e assim a elite pode continuar legitimamente no gozo das mesmas benesses políticas que historicamente usufruem. Quando falamos que muito pouco se tem avançado no sentido de estabelecer-se uma cidadania de verdade, de garantir as condições de construção do espaço público onde se dá de fato a realização dos direitos humanos, estamos pensando em um conceito diferente de cidadania e espaço público. Estamos pensando em cidadania plena e planetária. Estamos pensando no direito a uma igualdade básica que possa ser de fato exercido por todos os indivíduos que integram a humanidade, independentemente de nacionalidade, raça, sexo ou condições físicas e mentais. Estamos pensando, consequentemente, que isso pressupõe a obrigatória migração da economia para a esfera do público, o que significa, sem dúvida, uma mudança radical na atual estrutura mercadológica do capitalismo, embora não signifique, absolutamente, algo parecido com o socialismo tradicional. E só a partir dessa ideia podemos construir um novo conceito para cidadania e espaço público.

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Entretanto, para que aconteça de fato a possibilidade de implementação dos direitos humanos, no âmbito dessa redefinição conceitual de cidadania e espaço público, aí sim é preciso muita luta, pressão política e organização dos grupos que se acham alijados do processo sócio-político no que se refere ao exercício de direitos fundamentais básicos juridicamente assegurados. É o que pensa Corrêa (2010, p. 53):

[...] a concretização dos direitos de cidadania na busca de um espaço público acessível a todos depende dessa relação de poderes. Se os setores populares excluídos de seu desfrute não se articularem politicamente de forma abrangente, estendendo esse horizonte de sentido para a totalidade concreta das relações sociais, ou seja, para uma mudança global do sistema, a luta pela cidadania servirá no máximo para avanços setorizados, facilmente desestabilizados pelo poder dominante.

A alusão ao processo de concretização dos direitos humanos contextualizados nessa reconceituação de cidadania e espaço público fez-se indispensável, uma vez que, na ótica desta dissertação acadêmica, não há sentido em se buscar uma nova compreensão sobre o tema cidadania e espaço público que não envolva a possibilidade concreta de fruição de todo e qualquer direito humano, até porque nos interessa a análise da cidadania principalmente em sua dimensão política, e não apenas e meramente no aspecto de sua positivação jurídica.

1.2 Precedentes históricos da cidadania moderna

As concepções modernas acerca do significado de cidadania resultam de um longo processo iniciado ainda na Grécia antiga. Depois que a Filosofia passou a representar o caminho da virtude e da libertação humanas, em substituição aos fundamentos mitológicos da convivência social, segundo os quais o destino da humanidade era inteiramente determinado pela vontade aleatória dos deuses, firmou-se a ideia de que o homem é animal essencialmente político que necessita por isso associar-se aos semelhantes como forma de sobreviver. Ao lado das formas tradicionais de associação humana, como a família, a aldeia, o patriarcado e a tribo, surge a polis, idealizada por Aristóteles, que passa a representar o espaço de realização humana mais importante entre todas as formas possíveis de associação. Mais importante porque é exatamente nesse espaço que o homem encontra as condições de viver uma vida digna, ou, nas palavras de Corrêa (2010, p. 36):

Essa valorização absoluta da comunidade política, de cunho essencialmente moral, traz um algo a mais sobre as restantes associações, pois não se trata de apenas viver nela em conjunto por razões de utilidade comum, como a satisfação das

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necessidades primárias e materiais, mas viver bem em conjunto, tendo como princípios reitores a virtude e a justiça. É somente nela que se pode alcançar uma vida perfeita e feliz.

Mas esse status de “vida perfeita e feliz” era reservado, na Grécia clássica, apenas a uma parcela de pessoas, denominadas cidadãos, pois só estas podiam viver na polis, “restando dela excluídos, além de escravos, periecos, metecos e mulheres, também os artesãos, os mercadores e os camponeses” (CORRÊA, 2010, p. 36). O grupo dos cidadãos livres, que tinha portanto o direito a viver feliz e dignamente, era composto de três classes tidas como superiores: magistrados, sacerdotes e guerreiros. Logo, conforme disserta Corrêa (2010, p. 36),

[...] a vida perfeita e feliz pressupunha, na visão aristotélica, uma base econômica suficiente para não precisar preocupar-se com o trabalho cotidiano de produção de bens materiais. Essa tarefa, considerada inferior, caberia à maioria das pessoas menos dignas, para que uma minoria privilegiada pudesse dedicar-se ao estudo e à investigação das ciências teóricas consideradas mais elevadas.

A dignidade humana, portanto, não alcançava a maioria das pessoas. Logo, o sentido aristotélico sobre o tema tem ainda muito a mudar pela frente até que se chegue à compreensão de cidadania como processo de participação de todos no que diz respeito aos direitos e obrigações sociais. Entretanto, apesar de que na Grécia antiga a cidadania era limitada, excludente e visivelmente elitista, não se pode deixar de considerar que nesse mesmo período o significado de cidadania incorpora

um elemento indissociável de qualquer conceito de cidadania: o exercício de direitos políticos. É justamente a democracia grega que nos traz a ideia de cidadania política absoluta, eis que os cidadãos assim considerados participavam diretamente das decisões políticas da polis (SOUSA, 2009, p. 159).

Com o advento do estoicismo, surgem ideias que sustentam a necessidade de se conferir um certo grau de dignidade e liberdade também aos excluídos da polis, permitindo assim visualizar os primeiros traços de um modo de política baseado na ética. Os estoicos condenaram radicalmente a escravidão, já que a submissão de seres humanos a esse estado atentava contra os direitos de liberdade e igualdade. As ideias estoicas tomaram corpo, chegando a Roma, onde tiveram como “representantes Cícero e Sêneca (4-65 d. C), entre outros” (CORRÊA, 2010, p. 40).

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De Roma, não foi difícil alastrar-se a ideia de que a separação discriminatória clássica e institucionalizada entre quem era e quem não era cidadão violava princípios universais como os da igualdade e da dignidade da pessoa humana. E o cristianismo foi decisivo para o aprofundamento da reflexão sobre o tema, uma vez que Jesus Cristo “[...] chamou a todos para a salvação, sejam judeus ou gregos, escravos ou livres. Esse fundamento plantado pelo cristianismo caracterizou-se como um dos principais elementos que possibilitaram o tema dos direitos humanos” (CORRÊA, 2010, p. 41).

Convém destacar que a propagação das concepções estoicas através das teorias evangelísticas se deu de forma indireta, pois o cristianismo nunca teve a preocupação em combater as injustiças sociais com o fim específico de implantação de um novo modelo político, baseado no respeito a direitos de cidadania; a teoria cristã está centrada na revalorização da vida e do homem como indivíduo, em um plano espiritual e não político.

É preciso deixar claro que a ideia de cidadania, da maneira como hoje é concebida, ou seja, baseada nos princípios universais da dignidade, da igualdade e da liberdade, não surgiu de uma hora para outra, tampouco a partir de concessões unilaterais dos detentores do poder. Todo e qualquer avanço no sentido do estabelecimento de direitos relativos à cidadania sempre resultou de conquistas precedidas de longos e intensos processos de lutas desencadeadas pelas classes oprimidas. Até mesmo as transformações ocorridas na estrutura do Estado ao longo da história só foram possíveis a partir de lutas originadas do descontentamento de quem se via excluído da possibilidade de gozar certos direitos relativos à cidadania.

Na Baixa Idade Média, com o advento do absolutismo monárquico, surge uma incipiente ideia ligada à transferência de direitos políticos, o que se deve em muito ao capitalismo nascente. A burguesia mercantil aspira à mesma parcela de poder de decisão que antes cabia apenas ao clero e à nobreza. Faz-se então necessária a instituição de um novo conceito de cidadania, que privilegie a igualdade entre os cidadãos.

É com o processo de formação dos Estados nacionais, aliado à força da burguesia como classe ascendente, que toma corpo uma nova ideia de cidadania. A ascensão da burguesia mercantil, o espírito inovador das reformas religiosas e a consolidação do capitalismo como modo de produção foram fatores determinantes na redefinição do conceito de cidadania. A sociedade agora buscava igualdade, os homens nasciam livres e iguais, e cada indivíduo passa a ser considerado cidadão. Essa mudança deve-se também aos ideais do Iluminismo e das Revoluções Francesa e Americana. É essa a ideia de cidadania que se estabelece e que acompanha a sociedade até a modernidade (SOUSA, 2009, p. 160).

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Entretanto, mesmo essa ideia moderna de cidadania, correlacionada à conceituação de Estado nacional e fruto de um inegável processo de amadurecimento da humanidade no que tange aos postulados de justiça social, atualmente está para sofrer reformulações nunca experimentadas por qualquer tipo de sociedade. É verdade que comete grande equívoco quem profetiza o fim do Estado nacional em razão do inédito modelo social instalado no mundo a partir do advento da globalização. “[...] o Estado ainda é o ator por excelência nas relações internacionais, por exemplo. Declarar a morte do Estado-nação pode ser, portanto, precipitado. É preciso que se redescubra seu papel, mas o mesmo não parece condenado à extinção” (SOUSA, 2009, p. 162).

Mas também é verdade insofismável que, diante dessa nova ordem socioeconômica mundial instaurada pela globalização de tudo, a cidadania não mais se restringe àquele vínculo jurídico-político entre indivíduo e Estado, e por isso se impõe uma radical reformulação também nos papéis do Estado. Até porque o Estado-nação já merecia tal mudança mesmo antes da globalização, pois já nasceu descumprindo um de seus papéis mais importantes: o papel de oportunizar a todos os cidadãos, de forma igualitária, a construção dos espaços públicos em que possam exercer plenamente a cidadania.

1.3 Os direitos humanos como referência ético-política da cidadania nacional

Antes de tecer algumas considerações sobre os direitos humanos, sua influência e importância no significado e compreensão de cidadania, convém lembrar alguns aspectos relacionados ao surgimento do Estado moderno, sem o qual não é possível falar em cidadania da maneira como é hoje compreendida, muito menos na positivação dos direitos humanos enquanto referência da cidadania nacional.

Como instituição pública, o Estado surge da metade para o fim do século XV, substituindo, portanto, o regime feudal, e quem primeiro teorizou algo sobre a nomenclatura

Estado foi Maquiavel. Tem-se então a concepção de um ente público que monopoliza o

domínio sobre os indivíduos, mas cuja autoridade para governar provém agora de regras jurídicas e não mais de Deus, como no sistema feudal. Sobre o tema, assim disserta Corrêa (2010, p. 339-340):

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Se no feudalismo o poder é individualizado, pois se encarna num homem que concentra na sua pessoa os instrumentos do poder sob a justificação de uma autoridade externa (Deus), na legitimação do Estado moderno, dissociado da pessoa do governante, não se apela para nenhuma abstração, ficando ela no concreto das relações homem a homem.

O que se tem até aí com o nome de Estado moderno, portanto, é uma instituição formada por três elementos indispensáveis, a saber: território, povo e domínio. Mas uma instituição dotada de soberania absoluta, isto é, que não admite, dentro do seu território de domínio, autoridade superior, e que por isso não deve obediência a indivíduos ou a outras instituições, sejam públicas ou privadas, internas ou externas. Destaca-se ainda o fato de que

o Estado moderno torna-se uma organização distinta da esfera das relações econômicas, deixando, portanto, de ter o caráter patrimonial próprio do Estado medieval, em que os monarcas, marqueses, condes, barões e bispos eram donos do território e de tudo o que nele se encontrava (CORRÊA, 2010, p. 340).

Se no feudalismo certos indivíduos podiam ser donos até mesmo das pessoas que estivessem em território de sua propriedade, bastando que – tais indivíduos - ostentassem um título de monarca, conde etc., no Estado moderno há uma separação total entre a economia e o poder estatal, de forma que os governantes e funcionários da Administração não exercem relação de domínio (não são proprietários) nem mesmo sobre o patrimônio pertencente ao Estado.

A essa altura da história, a concepção de cidadania cunhada pelos teóricos modernos aparece indelevelmente ligada à noção de soberania estatal. Em outras palavras, no início do Estado moderno, é unânime a ideia segundo a qual a cidadania na verdade decorre da soberania do Estado. Segundo Bodin (apud LUCAS, 2010, p. 99):

[...] o fundamento da cidadania, ainda que refém de alguns traços medievais, pode ser compreendido apenas na relação de sujeição pessoal de cada indivíduo ao soberano. Em certa medida, o professor de Toulouse inaugurou uma concepção que se tornou corrente na modernidade quando apresentou sua ideia de cidadania “como uma estável submissão do indivíduo à autoridade do Estado que a atribui”.

Mas é com Thomas Hobbes que se tem contato com uma das teorias mais importantes em relação ao surgimento do Estado moderno totalmente desvinculado das características do feudalismo. Para Hobbes (apud BEDIN, 2008, p. 121), a possibilidade de o homem viver em sociedade está condicionada

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a opção de todos os indivíduos pela elaboração de um pacto, convenção ou contrato que institua a sociedade política e os retire do estado pré-estatal - chamado de estado de natureza – em que vivem. Em outras palavras, a sociabilidade humana é um artifício ou uma construção humano, e não o resultado de um longo desdobramento histórico ou de uma suposta concessão divina.

Significa dizer que os indivíduos inventaram o Estado por pura necessidade de sobrevivência, isto é, como única forma de viabilizar não somente a vida em sociedade, mas também a vida de cada um, isoladamente. Não existindo o Leviatã, perpetua-se a guerra de todos contra todos, a barbárie generalizada e suicida. É claro que o homem se viu frente a um dilema sem precedentes ao ter de optar entre continuar em liberdade absoluta, sem dever de obediência a nenhuma instituição pública - no caso, o soberano -, e passar a respeitar as regras legais constantes no pacto que criou a sociedade política, regras estas às vezes favoráveis, mas outras vezes contrárias a certos interesses humanos. Entretanto, optar pela continuidade da vida em estado de natureza, sem a presença de um ente mais forte que possa resolver conflitos, torna a vida mais difícil, insegura, perigosa. Logo, é mais conveniente a vida sob o manto do poder do soberano, que obriga à obediência, mas ao mesmo tempo protege os obedientes da violência e da injustiça praticadas pelos indivíduos detentores de interesses antagônicos. Isso porque todas as divergências e disputas, que antes eram resolvidas pela lei

do mais forte – em sentido literal -, agora são entregues aos cuidados de uma justiça

institucionalizada,

que é amparada pela vontade e pela espada do soberano. Pela vontade do soberano transformada em normas jurídicas, o que permite determinar o que é legal e o que é ilegal, o que é justo e o que é injusto, o que é bom e o que é mau no interior do Estado e, consequentemente, estabelecer quais são os limites da ação dos homens. Pela espada do soberano à medida que ela torna eficaz as decisões da Justiça estabelecida, obrigando os homens a observar as leis e a cumprir os acordos realizados no interior do Estado (BEDIN, 2008, p. 128).

Ora, se para Bodin soberania consiste apenas no “absoluto e perpétuo poder sobre os cidadãos e súditos de uma república, com o soberano não precisando prestar contas a ninguém, exceto a Deus” (CORRÊA, 2010, p. 332), para Hobbes (apud LUCAS, 2010, p. 100),

a obediência é devida por homens reconhecidos como iguais perante a autoridade estatal, o que demonstra uma valorização da individualidade do cidadão por meio de um mesmo tratamento legal, base necessária, mesmo que incipiente, para se defender sua qualidade de sujeito de direito.

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Essa valorização do indivíduo, que agora também se apresenta como cidadão, transparece de forma mais sedimentada na Escola Jusnaturalista, formada a partir das ideias de Pufendorf, Locke, Rousseau, Kant, entre outros, segundo os quais todos os direitos inerentes à natureza do homem, para que possam ser efetivamente implementados com a finalidade de serem respeitados, exigidos ou obedecidos na prática, devem antes ser positivados, ou seja, escritos em códigos normativos específicos. Para que isso aconteça, no entanto, devem tais direitos primeiro

passar pelo consentimento dos indivíduos que, ao fazerem o contrato social do qual se origina a sociedade civil-política, estabelecem jurídica e politicamente a organização social. Desse momento em diante a organização dos homens em sociedade passa a ser justificada a partir do próprio homem que, tomado em estado de natureza (sem nenhuma regra positiva reguladora da convivência social), faz um acordo – o pacto social – do qual surge o Estado de Direito legitimado pelo consenso de seus cidadãos. É a justificação da política e da cidadania com base na própria vontade dos indivíduos, tornando-se, portanto, produto cultural resultante de convenções humanas (CORRÊA, 2010, p. 345).

Assim, com a positivação dos direitos básicos do homem, a soberania do Estado, recém elevado à condição de modernidade, encontra uma limitação objetiva. Ocorre que agora os indivíduos assumem status de cidadania frente ao ente estatal, figurando como pessoas livres e iguais juridicamente, ao contrário do que ocorria no feudalismo, onde as próprias regras legais estipulavam que alguns eram detentores de mais direitos do que os outros, institucionalizando-se, portanto, a desigualdade. Curioso que, durante o sistema feudal, todas as normas (consistentes basicamente em decretos do príncipe) que concediam privilégios e/ou suprimiam direitos eram rapidamente cumpridas na prática, à risca; já os princípios da igualdade e da liberdade surgidos com o Estado moderno costumam permanecer mais no plano meramente jurídico, sem muita efetividade. É inegável que

a universalização do sujeito jurídico caracteriza um significativo avanço em comparação com a desigualdade institucionalizada do Ancien Régime, por brindar o cidadão moderno com os atributos da liberdade e da igualdade legal. A grande questão surgida posteriormente à derrubada da estratificação jurídica da sociedade feudal é: como fazer acontecer no campo das condições materiais de existência essa universalização do sujeito proposta como pedra angular da nova razão jurídica do Estado moderno, expressa na máxima todos são iguais perante a lei? (CORRÊA, 2010, p. 341, grifo do autor).

De qualquer forma, foi a estrutura do Estado moderno que passou a permitir que os direitos humanos dos cidadãos estabeleçam um limite à soberania estatal interna, constituindo-se ao mesmo tempo em referência ético-política da incipiente cidadania nacional.

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Vale referir que essa limitação imposta pelos direitos humanos à soberania do Estado se torna mais rigorosa logo depois, com o advento do Estado liberal e a concretização do Estado de Direito, quando o ordenamento jurídico passa definitivamente a tratar cidadão e Estado, pelo menos no plano formal, como sujeitos de direitos em igualdade de condições. Sem dúvida, isso representou uma grande conquista em termos de cidadania, haja vista que, com essa nova estrutura estatal, possibilitou-se colocar em prática princípios que submetem tanto o cidadão como o Estado, em igualdade de condições, a regras de direitos e obrigações. Assim, se ao cidadão cabe o dever de pagar tributos e obedecer às leis e à constituição, ao Estado cabe o dever de implementar os direitos fundamentais assegurados na constituição, criando as condições para que o cidadão possa exercer plenamente a cidadania. Conclui-se então que

a soberania interna foi substancialmente limitada pela lei. O Estado liberal já não possui a prerrogativa de fazer o que quer com o poder, e os cidadãos deixam de ser súditos para figurarem na condição de sujeitos de direitos, os quais não podem ser sonegados pela ação estatal. O direito passa a representar o limite para interferência na vida dos indivíduos e o limite para toda a política estatal interna, isto é, o poder do Estado encontra no direito um limite não negociável (LUCAS, 2010, p. 136).

E essa limitação do poder do Estado frente aos direitos do cidadão se torna ainda mais intensa a partir das constituições do século XX, as quais incorporaram em seus textos um capítulo exclusivo que estabelece um conjunto de direitos fundamentais, também chamados de direitos humanos.

O discurso dos direitos humanos é, sem dúvida, o elemento mais marcante a diferenciar o Estado moderno dos anteriores sistemas de poder. Alicerçados sobre os princípios da igualdade e da liberdade, os direitos humanos, uma vez positivados em normas, tanto limitam como legitimam as ações do Estado-nação, sempre no sentido de garantir que os indivíduos-cidadãos possam construir seu espaço público e nele usufruir direitos relativos à cidadania. Mas, lembre-se, é a própria estrutura constitutiva do Estado moderno que possibilita essa limitação do poder político

pela soberania popular, manifestada por meio da legislação. Os vínculos do cidadão com o poder estatal são de natureza jurídica, os quais limitam a ação institucional ao mesmo tempo que garantem um conjunto de direitos aos indivíduos que compõem a soberania desse mesmo Estado. A modernidade estabelece, para o homem, um vínculo jurídico de cidadania, de pertença a uma organização política, territorial e institucionalmente constituída, em termos bem distintos daqueles que caracterizam a hierarquia e os privilégios da sociabilidade feudal. Essa conformação jurídica da cidadania com a nação modelou quase todas as relações entre os indivíduos e o poder político, tornando-se uma referência jurídica inicial de proteção dos direitos

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do homem por parte do Estado-nação, de modo que as declarações de direitos americana e francesa do século 18 são documentos dessa nova realidade política e jurídica (LUCAS, 2010, p. 100-101).

Com isso, não é difícil compreender o que seja um Estado Democrático de Direito, muito menos diferenciá-lo das demais formas de poder político institucional que levem o nome de Estado. Basta atentar para o respectivo ordenamento jurídico-constitucional: se está nele presente um rol de direitos humanos (também denominados fundamentais), não há dúvida que se está diante de um Estado (Democrático de Direito) que se obriga formalmente a relacionar-se com os indivíduos dentro dos limites do respeito de tais direitos, bem como da garantia da possibilidade de seu exercício por parte dos cidadãos. Esse rol de direitos constitui, portanto, a referência ético-política da cidadania nacional.

O conceito de direitos humanos apresenta divergências entre os teóricos do tema. Entretanto, para a finalidade a que se propõe esta dissertação, ficamos com o entendimento de Antonio Enrique Perez Luño, para quem os direitos humanos consistem em

um conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concretizam as exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade humanas, as quais devem ser reconhecidas positivamente pelos ordenamentos jurídicos em nível nacional e internacional (CORRÊA, 2010, p. 28).

A expressão “em cada momento histórico”, contida na interpretação citada por Corrêa (2010), indica que todo conjunto de direitos humanos arrolado no ordenamento jurídico- constitucional de um determinado Estado Democrático de Direito representa na verdade uma cláusula aberta, ou seja, sempre há a possibilidade de alteração dessa lista de direitos para conformá-la às necessidades humanas existentes dentro de um determinado momento histórico. Entretanto, qualquer revisão que se queira fazer em relação aos direitos humanos, jamais se permitirá que sejam desrespeitados os princípios básicos da dignidade da pessoa humana, da liberdade e da igualdade. Sobre o tema, novamente a lição de Corrêa (2010, p. 29):

Os direitos humanos podem ser concebidos como valores consensuais assentados nas necessidades humanas, embora tal consenso seja aberto e revisável, uma vez que o conteúdo material do sistema de necessidades básicas ou radicais do ser humano tem um suporte antropológico historicamente variável. Se a justificação filosófica dos direitos humanos busca uma base extrassocial que lhes garante um certo caráter de universalidade, os direitos fundamentais representam sua constitucionalização, reconhecendo nessas exigências ético-políticas de maior abrangência um caráter de juridicidade. Ao se constitucionalizarem em determinado Estado Democrático de

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Direito, passam a ser assumidos como referência norteadora das ações da coletividade política. Sob tal roupagem não lhes pode ser negada a obrigatoriedade legal, mesmo possuindo uma especificidade mais principiológica do que estritamente técnica.

Uma crítica: é sabido que o Poder Judiciário de inúmeros Estados que se autoproclamam Democráticos de Direito, dentre eles os chamados Países Emergentes, como é o caso do Brasil, ora emprestam maior valor a regras legais ordinárias do que aos princípios universais que se referem a direitos humanos, ora negam a aplicação destes, ao argumento de que não foram regulamentados por lei. Outras vezes simplesmente deixam de determinar a execução de normas constitucionais de direitos humanos, utilizando-se do argumento de que sua aplicação na prática pode afetar o sistema econômico do país. De qualquer forma, tanto uma como outra justificativa no sentido de não-aplicação de normas constitucionais relacionadas a direitos humanos levam a concluir que o sistema de Justiça desses Estados não tem os direitos humanos como referência ético-política da cidadania nacional, embora os tenham escritos em suas constituições.

Entretanto, é certo que o Estado Democrático de Direito, marcado indelevelmente pela presença de um rol de direitos humanos/fundamentais em sua Constituição, tende a banir totalmente qualquer possibilidade de arbítrio, uma vez que sua estrutura institucional não permite que o poder político se sobreponha ao Direito, mas, ao contrário, faz com que o Direito dite as regras do poder. Explicando de forma mais detalhada, pode-se dizer que

a afirmação do Estado de Direito pressupõe uma clara distinção entre direito e poder e uma subordinação do poder ao direito. Em razão disso, é possível afirmar que a institucionalização do Estado de Direito tende a produzir, de forma geral, a eliminação do arbítrio no exercício dos poderes públicos, a submissão do poder ao império do Direito e o reconhecimento de direitos fundamentais [...] é importante reconhecer que o Estado de Direito é uma forma singular de configuração do Estado moderno: um Estado que institucionaliza o respeito à dignidade humana como um de seus valores fundamentais (BEDIN, 2009, p. 14).

Portanto, no Estado Democrático de Direito, limitada que está sua soberania interna pelo conjunto de direitos humanos positivados no ordenamento jurídico, não podem os governantes praticar quaisquer atos político-administrativos sem ter como norte tais direitos. Ou seja, os direitos humanos tornam-se a referência ético-política básica da cidadania, o que equivale a dizer que, sem a possibilidade concreta de exercício dos direitos humanos, não há como falar-se em cidadania.

(27)

Tudo o que se disse até aqui em relação a direitos humanos, soberania e cidadania se refere ao plano interno do Estado nacional, pela simples razão de que é exatamente a isso que se propõe este item do presente trabalho. Soberania externa, cidadania cosmopolita e direitos humanos no contexto da globalização serão examinados nos próximos capítulos. No entanto, é conveniente adiantar algumas considerações sobre o tema, situando-o em linhas gerais, pelo menos no que diz respeito à possibilidade de limitação da soberania estatal externa pelos direitos humanos, uma vez que esses direitos possuem caráter de universalidade, e por isso devem servir como referência ético-política também para uma cidadania sem fronteiras.

Se no plano interno a soberania estatal começa a sofrer alguma limitação – por força da positivação de direitos dos indivíduos - já a partir das últimas décadas do século XV, no plano internacional permanece absolutamente intocada até ao advento das duas grandes guerras do século XX, acontecimentos que obrigaram a humanidade a admitir a necessidade de vincular os Estados ao respeito aos direitos humanos também em suas relações internacionais. É nesse contexto, portanto, que surge a Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 1948, cujo preâmbulo vem assim redigido:

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da

família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da

liberdade, da justiça e da paz no mundo;

Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum;

Considerando essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo Estado de Direito, para que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão;

Considerando essencial promover o desenvolvimento de relações amistosas entre as

nações;

Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla; Considerando que os Estados-Membros se comprometeram a desenvolver, em cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos humanos e liberdades fundamentais e a observância desses direitos e liberdades;

Considerando que uma compreensão comum desses direitos e liberdades é da mais alta importância para o pleno cumprimento desse compromisso,

A Assembleia Geral proclama

A presente DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIRETOS DO HOMEM como o

ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo

de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforce, através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter

nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universais e efetivos, tanto entre os povos dos próprios Estados-

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Membros, quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição (BRASIL,

2012, grifo nosso).

Ora, de regra, as normas jurídicas, tratados e outros documentos internacionais não costumam surgir de uma hora para outra, desvinculados de um determinado contexto histórico da sociedade; são instituídos normalmente como resultado de necessidades sentidas no dia a dia do processo de convivência social, podendo envolver anos ou décadas de debates e lutas até que o anseio da sociedade se materialize na criação da norma que melhor assegure certos direitos e deveres. Por outro lado, é comum ocorrer que determinados acontecimentos sociais específicos influenciem diretamente no sentido de acelerar, alterar o conteúdo ou até mesmo abortar o processo de criação de determinada norma, pois é da dinâmica da vida em sociedade que deflui a razão de existir da lei. Com a normatização dos direitos humanos não foi diferente. Embora concebidos como sagrados direitos universais desde o Iluminismo (século XVIII), foi no século XX que os direitos humanos foram catalogados como norma na Declaração Universal. A data de criação desse Documento Internacional (10 de dezembro de 1948) revela que a Segunda Guerra Mundial serviu, efetivamente, de estopim para acelerar o processo de normatização de direitos já antigos.

Com a proclamação da Declaração Universal dos Direitos do Homem, portanto, aprovada na Terceira Sessão Ordinária da Assembleia Geral das Nações Unidas, estabelece-se um marco referencial que reforça a delimitação da atuação ético-política não só dos Estados para com os cidadãos, internamente, mas também obriga os Estados em suas relações internacionais, com outros Estados nacionais, a exercerem uma governança dentro dos ditames dos direitos humanos. Analisando-se o tema por essa ótica, é possível afirmar, sem dúvida, que,

Apesar de os direitos humanos como direitos universais não terem sido uma invenção desse tempo, uma vez que figuravam nas declarações oitocentistas de matriz jusnaturalista e no iluminismo kantiano, sem dúvida que o reconhecimento formal, universal e expresso de tais direitos no pós-Segunda Guerra inaugurou uma nova etapa para as relações internacionais e para a afirmação de limites substanciais às soberanias nacionais, as quais, para não serem acusadas de arbitrárias e injustas, precisam pautar sua ação externa pelo imperativo da paz e pela proteção dos direitos humanos (LUCAS, 2009, p. 48).

Depois disso foi possível até mesmo a criação de tribunais internacionais, além de inúmeras organizações voltadas a fazer com que as ações ético-políticas dos Estados nacionais sejam obrigatoriamente pautadas nos limites estritos dos direitos humanos,

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objetivando a possibilidade do exercício pleno da cidadania. Nota-se, portanto, um esforço universal e multilateral de todos os Estados Democráticos de Direito do mundo no sentido de banir de uma vez por todas a forma hobbesiana de relacionamento internacional – a guerra de todos contra todos -, impondo severo limite à soberania externa dos entes estatais a partir do respeito aos direitos humanos, única alternativa para que um dia seja possível o exercício pleno de uma cidadania cosmopolita, planetária.

Cidadania planetária e plena, na ótica deste trabalho, significa a possibilidade concreta de construção do espaço público para viver dignamente. Mas não é só isso. Não significa apenas a possibilidade de a humanidade toda poder compartilhar um espaço onde cada um pode satisfazer plenamente as necessidades básicas durante determinado período histórico. Significa que todos os indivíduos que integram a humanidade possam experimentar a satisfação de todas as necessidades humanas básicas, de forma equitativa, mas não apenas por determinado período. Portanto, cidadania planetária é vida digna sustentável, é garantia de continuidade, por tempo ilimitado, de todos os fatores e condições básicas que viabilizam essa vida plena. Isso envolve ainda algo óbvio, de fácil compreensão teórica, mas de dificílima praticidade: a necessidade de respeito à Natureza, quebrando-se o paradigma antropocentrista de maneira a dar lugar a uma nova ética, biocentrada, que leve em conta a necessidade de outros seres - não humanos - continuarem convivendo e coexistindo em harmonia nesse

habitat que não pertence só ao homem. Não somente porque uma ética biocêntrica exige

respeito também a direitos dos seres não humanos, mas porque emprestar menor peso aos interesses destes é verdadeiro atentado contra a própria espécie humana, tendo em vista que afeta negativamente e de forma direta os direitos humanos à dignidade e à vida da pessoa humana, tornando impossível a construção de um espaço público de exercício da cidadania plena e planetária, pois esta não se concretiza, obviamente, quando se mostram prejudicados os direitos humanos à dignidade e à vida. Esse tema será desenvolvido nos próximos capítulos.

Referimos anteriormente que a cidadania plena, vivenciada na sua dimensão política, deve consistir na satisfação de todas as necessidades humanas básicas, de forma equitativa, ou seja, deve ser entendida como um processo de construção de um espaço público que ofereça a possibilidade concreta de “realização de cada ser humano, em efetiva igualdade básica” (CORRÊA, 2010, p. 27). Diante de tais afirmações, portanto, torna-se indispensável que lancemos um olhar crítico sobre o que se compreende como direito humano à igualdade

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quando se analisa a mitigação da soberania estatal externa pelo conjunto dos direitos humanos no contexto da sociedade globalizada. Tal preocupação se mostra pertinente à medida que o princípio da igualdade constitui um dos pilares mestres da cidadania, isto é, sem a possibilidade concreta de exercício desse direito humano não há a mínima plausibilidade de exercício da cidadania nacional, muito menos da cidadania planetária ou cosmopolita.

Retomando um pouco a história, constatamos que a igualdade apregoada e garantida no plano jurídico por qualquer tipo de Estado jamais correspondeu aos reais anseios dos indivíduos. É verdade que a Revolução Francesa nunca teve como meta oportunizar que todos os cidadãos pudessem um dia usufruir de forma igualitária as riquezas produzidas pela nação. “As revoluções liberais tinham em mira a igualdade jurídica, não a igualdade das condições de fato” (FERREIRA FILHO, 2010, p. 204). E esse objetivo foi plenamente alcançado, estando hoje as constituições liberais repletas de princípios, garantias, direitos fundamentais, direitos individuais, direitos coletivos, direitos sociais, direitos políticos etc. É a igualdade jurídica em sua plenitude, também designada de “igualdade perante a lei, ou, de modo erudito, isonomia” (FERREIRA FILHO, 2010, p. 204). No entanto, o anseio de igualdade que inspirou a Revolução não se limitava logicamente a tão pouco, ou seja, a uma mera inscrição do direito humano à igualdade nos textos constitucionais modernos; os revolucionários sonhavam também com a possibilidade de acontecimento da cidadania numa dimensão política, pois só assim se torna possível a justiça social. E continuam sonhando até hoje.

Já o ideal de igualdade socioeconômica do socialismo, consistente na ideia de que todos os cidadãos, produtivos ou não, têm o direito de ter a mesma condição social, isto é, de gozar dos resultados da produção de forma isonômica, pressupõe e ao mesmo tempo gera sérios prejuízos ao direito humano à liberdade.

Por tais razões e também devido às transformações sociais provocadas pelo advento da globalização é que hoje toma corpo um novo discurso no meio político:

[...] agora até mesmo os políticos que se autodesignam de centroesquerda rejeitam a própria ideia de igualdade. Dizem representar um novo liberalismo ou uma terceira

via de governo e embora rejeitem enfaticamente o credo de insensibilidade da velha

direita, que sujeita o destino das pessoas ao veredicto de um mercado muitas vezes cruel, também rejeitam o que consideram a premissa contumaz da velha esquerda de que os cidadãos devem compartilhar igualmente a riqueza de sua nação. (DWORKIN, 2001, p. 245).

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Portanto, tendo-se mostrado insuficientes para resolver o problema da injustiça social tanto a igualdade jurídica liberal como a igualdade socioeconômica absoluta do socialismo, não se tem dúvida de que é chegada a hora de pensar uma nova forma de cidadania, cuja referência ético-política seja efetivamente representada por um conjunto de direitos básicos universais e inegociáveis: os direitos humanos.

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