• Nenhum resultado encontrado

Sobre a profissão docente: à guisa de introdução

No documento PDF completo (páginas 92-96)

TRAJETÓRIAS DE CONSTITUIÇÃO DA DOCÊNCIA NA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL

1. Sobre a profissão docente: à guisa de introdução

Ao longo de sua história, a profissão docente foi-se configu- rando como uma das poucas profissões que, precisamente, não con- solidou um conjunto de saberes que lhe seriam próprios. Médicos, engenheiros, arquitetos, sapateiros, advogados, marceneiros, serralhei- ros, entre tantos outros profissionais, parecem sempre ter tido facilidade e objetividade para falar sobre os conhecimentos que caracterizam suas profissões. Mas se perguntarmos a um professor o que de fato caracteriza sua profissão, é bem provável que ele terá dificuldade em explicar.

Entre os anos de 1621 e 1657, Comenius escreveu um tratado sobre a arte universal de ensinar tudo a todos. É uma obra emblemáti- ca em vários aspectos, não apenas porque levou 36 anos para ser escri- ta, mas também pelo fato de fazer referência a diversos elementos que implícita e explicitamente vão contribuindo para caracterizar o que Comenius compreendia sobre o que é ser professor. Numa das passa- gens de sua obra, Didática Magna, podemos ler:

[…] finalmente, serão hábeis para ensinar, mesmo aqueles a quem a natureza não dotou de muita habilidade para ensinar, pois a missão de cada um não é tanto tirar da própria mente o que deve ensinar, como sobretudo comunicar e infundir na juventude uma erudição já preparada e com instrumentos também já preparados, colocados nas suas mãos. Com efeito, assim como qualquer organista executa qualquer sinfonia, olhando para a partitura, a qual talvez ele não fosse capaz de compor, nem de executar de cor só com a voz ou com o órgão, assim também porque é que não há-de o professor ensinar na escola todas as coisas, se tudo aquilo que deverá ensinar e, bem assim, os modos como o há-de ensinar, o tem escrito como que em partituras?” (In Didática Magna, Capítulo XXXII: Da organização universal e perfeita das escolas, p. 519-520 – eBook).

Na sua concepção, o exercício do magistério parece não se caracterizar como uma atividade que requer grandes habilidades ou conhecimentos específicos; ao contrário afirma ser a docência uma profissão relativamente simples que pode ser exercida bastando seguir um manual, como um livro didático, por exemplo.

Porém, em nosso olhar, Comenius banalizou demais as duas profissões. É muito provável que todo organista seja capaz de reproduzir uma peça com grande exatidão, de acordo com a partitura, porém, por diversas razões, nem todos a interpretam da mesma forma.

De modo análogo, uma mesma aula pode ser conduzida por diferen- tes professores, mas certamente existem diferenças marcantes nessa condução que estão sujeitas às relações que o professor estabelece com o conteúdo, com a aprendizagem dos estudantes, com a própria profissão e com muitos outros aspectos. Isso significa dizer que ensi- nar está longe de ser um ato que depende exclusivamente de habili- dades técnicas, embora essa visão, herdada desde Comenius, atraves- sou os tempos e foi se impregnando na maneira pela qual a profissão é compreendida por muitos até hoje.

Na contramão desse entendimento, foi sendo gestada em diferentes momentos da história da educação, com base nas elabora- ções de John Dewey, Anísio Teixeira, Paulo Freire, Stenhouse, Schön, contribuições teóricas que colocam em destaque a complexidade da profissão docente. Esse autores trazem como centralidade nas suas discussões a ênfase no conceito de reflexão como componente essen- cial do processo educativo, e buscam superar a abordagem excessiva- mente técnica que caracterizava a atividade de ensino dos professores em sala de aula.

Na década de 70, tem início, no Brasil, o movimento de pro- fissionalização do ensino. Nessas circunstâncias os pesquisadores da área de educação, em consonância com a produção internacional, também passam a insistir na constituição de um repertório de conhe- cimentos profissionais para o ofício do magistério. Os estudos, que desde então vêm sendo desenvolvidos nessa perspectiva, carregam, de modo geral, uma visão sobre a profissão docente que, ao reco- nhecer sua complexidade, busca superar a visão de que basta seguir determinado protocolo técnico para alcançar uma prática exitosa. Como considera Pimenta (2009, p. 18) “professorar não é uma ativida- de burocrática para a qual se adquire conhecimentos e habilidades téc- nico-mecânicas”. Mais especificamente, esses estudos apontam para a necessidade da criação de condições para que, em seu desenvolvi- mento profissional, o professor possa exercitar sua capacidade reflexi- va e, desse modo, ganhar consciência do seu fazer pedagógico, proble- matizando-o e orientando-o a favor da aprendizagem dos estudantes.

É na esteira desse paradigma que, mais recentemente, Sacristán (1995) vai cunhar o termo profissionalidade3, noção que se refere ao saber específico da profissão docente, ou ainda à ins- trumentalização própria do trabalho do professor. Nesse sentido, o

3 o termo profissionalidade representa uma derivação terminológica de profissão. Profissionalidade docente é uma expressão utilizada para designar profissionalização, profissionalismo, e mesmo profissão quando se refere ao conjunto de requisitos profissionais que tornam alguém professor.

autor (1995, p. 65) define profissionalidade docente como “[…] do que é específico na acção docente, isto é, o conjunto de comportamentos, conhecimentos, destrezas, atitudes e valores que constituem a especi- ficidade de ser professor”.

Diversos estudos consonantes com essa perspectiva vêm sendo produzidos com a intenção de inventariar ou dar expressão a conhecimentos de diferentes naturezas que caracterizam a prática docente. Assim, a compreensão sobre as finalidades da Educação, os objetivos do curso em que atua, a elaboração do plano de curso, a reflexão sobre as etapas do processo de ensino, a consciência da in- tencionalidade educativa, a articulação do conteúdo com os temas da realidade social, a escolha das estratégias de ensino e o desenvolvi- mento das atividades em sala de aula, os instrumentos de avaliação, a relação professor-aluno-conhecimento e a articulação teoria-prá- tica são exemplos de questões de ordem pedagógica que interferem significativamente no compromisso e na efetivação da aprendiza- gem do aluno, o que representa questão central, e não secundária, do trabalho do professor. Como alerta Ponte (1999, p. 71-72),

um professor é um profissional multifacetado que tem de assumir competências em diversos domínios. Não basta possuir conhecimentos na sua área disciplinar, dominar duas ou três técnicas para os transmitir a uma classe e ter um bom relacionamento com os alunos. Um professor tem de ter conhecimentos na sua área de especialidade e conhecimentos e competências de índole educacional. Tem de ser capaz de conceber projetos e artefatos – nomeadamente, aulas e materiais de ensino. Tem de ser capaz de identificar e diagnosticar problemas – tanto problemas de aprendizagem de alunos e grupo de alunos, como problemas organizacionais e de inserção da escola na comunidade. A actividade do professor requer uma combinação de conhecimentos científicos e acadêmicos de base na sua especialidade com conhecimentos de ordem educacional.

Diante disso, queremos destacar que a centralidade do debate sobre a profissionalidade da docência reside na consideração de que esse é um processo que exige formação e preparação específi- cas, superando a concepção do trabalho do professor no polo de um ensino transmissivo de matérias e conteúdos, e resgatando a dimen- são pedagógica desse ofício.

Como se nota, vivemos atualmente outros tempos no que se refere à maneira pela qual a comunidade científica caracteriza e valoriza a profissão docente. A esse propósito Nóvoa (2009, p. 10) comenta:

Os professores reaparecem, neste início do século XXI, como elementos insubstituíveis não só na promoção das aprendizagens, mas também na construção de processos de inclusão que respondam aos desafios da diversidade e no desenvolvimento de métodos apropriados de utilização das novas tecnologias.

Ou seja, os professores, neste início do século XXI, voltam ao centro das nossas preocupações e também das nossas políticas. Ao mesmo tempo, não poderíamos deixar de notar um descompasso entre o que a comunidade científica e a política educacional consi- deram constituir a profissão docente e o que vem ocorrendo de fato no âmbito desse ofício. Noutras palavras, é possível apontar para múl- tiplas ambiguidades neste campo de tensões que é a formação de professores:

• A Universidade aponta para uma formação complexa, mas não parece dar conta de promover as competências delineadas.

• A Sociedade demanda uma educação nova e competen- te, porém não valoriza o trabalho docente.

• As Escolas pretendem o reconhecimento social, porém poucas conseguem realizar projetos pedagógicos inclu- sivos com a necessária qualidade de ensino.

• A Política Educacional pressiona para uma mudança mo- derna, mas não está fornecendo a sustentação necessária. Além disso, as escolas, de modo geral, parecem não se reco- nhecer como centros de formação no sentido de oferecer aos profes- sores em início de carreira, ou mesmos àqueles que já se encontram em serviço, condições para que possam desenvolver-se profissional- mente (NÓVOA, 2009).

A questão da profissionalização docente esbarra ou mesmo colide, ainda, com o fato de que muitos profissionais oriundos de áreas diversas assumem a docência sem que tenham tido a oportunidade de uma formação inicial, como acontece em muitas instituições voltadas para a educação profissional. Certamente isso nos chama a atenção, pois também compreendemos a complexidade da profissão docente, e portanto, o fato de que essa profissão carrega conhecimentos espe- cíficos. Mesmo reconhecendo os limites de uma formação inicial para o magistério, não podemos deixar de indagar: de que forma esses pro- fissionais se constituem professores? A partir de que condições conse- guem eles construir os conhecimentos necessários para tanto?

2. Os Institutos Técnicos Federais e o

No documento PDF completo (páginas 92-96)