• Nenhum resultado encontrado

2.1 Sobre o significado do ensino tradicional

Existem várias expressões verbais correntes na linguagem comum da Educação que são utilizadas sem serem acompanhadas de um trabalho de esclarecimento do seu significado. Por exemplo, é freqüente a menção da expressão Ensino Tradicional de Matemática. Será o tradicional tomado como relativo a transmissão de um conhecimento de geração a geração? Ou será relativo a um ensino que se funda na tradição? Ou será uma forma costumeira de se ensinar?

Ao longo do tempo, de maneira geral, o tradicional é associado, de uma forma negativa, ao processo de ensino. Imenez, ao vincular o fracasso do ensino da Matemática ao modelo formal euclidiano de apresentação, fala da influência da concepção platônica que advém desse modelo:

Demorei para compreender que a mesma, tradicionalmente, inspira, permeia, marca o ensino de matemática nos 1o, 2o, 3o graus. (Imenez, 1989, p.11)

Se a tradição nos entrega, como herança cultural, uma Matemática que historicamente tem se desenvolvido e tem sido de fundamental importância para o progresso das Ciências e, portanto, da humanidade, por que uma forma de ensiná-la, reconhecida ainda como predominante e dita tradicional, pode ser associada só a aspectos negativos?

O estudo de uma expressão verbal deve ser efetuado nos vários contextos onde ela se insere. Como percebi que em minha pesquisa seria importante e necessário buscar entendimentos dessa expressão, procurei explicitar os contextos onde poderia ser identificado o ensino tradicional de Matemática, bem como o seu significado neles.

De forma geral, o debate sobre o ensino tradicional de Matemática envolve mais que a Matemática e seu ensino. Envolve concepções de homem, sociedade, Educação, ensino etc. As batalhas em torno desse ensino, em geral, são travadas em contextos históricos. Conseqüentemente, em vários deles, as discussões sobre o ensino tradicional de Matemática não são tão visíveis, elas ficam embutidas nas discussões sobre a tradição e o ensino tradicional, entendido este, então, como uma certa totalidade que engloba o ensino de Matemática.

Mizukami procura caracterizar as várias abordagens do processo ensino- aprendizagem, apresentando características e concepções da abordagem tradicional que achamos interessante reproduzir:

Como se sabe, o adulto, na concepção tradicional é considerado um homem acabado, “pronto” e o aluno um “adulto em miniatura”, que precisa ser atualizado.

O homem é considerado como inserido num mundo que irá conhecer através de informações que lhe serão fornecidas e que se decidiu serem as mais importantes e úteis para ele.

O homem, no início de sua vida, é considerado uma espécie de tábula rasa, na qual são impressas, progressivamente, imagens e informações fornecidas pelo ambiente. (Mizukami, 1986, p. 8) Os tipos de sociedade e cultura podem ser os mais variados na utilização desse tipo de ensino, que visa a sua perpetuação, ao mesmo tempo que a produção de pessoas eficientes que consigam impulsioná-los em direção a um maior domínio sobre a natureza, ampliando e aprofundando as áreas de conhecimento. Este objetivo educacional normalmente se encontra intimamente relacionado aos valores apregoados pela sociedade na qual se realiza.

Os programas exprimem os níveis culturais a serem adquiridos na trajetória da educação formal. A reprovação do aluno passa a ser necessária quando o mínimo cultural para aquela faixa não foi atingido, e as provas e exames são necessários para a constatação de que este mínimo exigido para cada série foi adquirido pelo aluno.(Mizukami, 1986, p. 9)

A atividade do ser humano é a de incorporar informações sobre o mundo (físico, social, etc.) as quais devem ir das mais simples às mais complexas. Usualmente há uma decomposição da realidade no sentido de simplificá-la... Aos alunos são apresentados somente os resultados desse processo para que sejam armazenados.

Ao indivíduo que está “adquirindo” conhecimentos compete memorizar definições, enunciados de leis, sínteses e resumos que lhe são oferecidos no processo de educação formal a partir de um esquema atomístico.(Mizukami, 1986, p. 10)

A educação é um processo amplo para alguns autores, mas na maioria das vezes, é entendida como instrução, caracterizada como transmissão de conhecimentos e restrita à ação da escola.

A abordagem tradicional é caracterizada pela concepção de educação como um produto, já que os modelos a serem alcançados estão pré-estabelecidos, daí a ausência de ênfase no processo.. Este tipo de concepção de educação é encontrado em vários momentos da história permanecendo atualmente sob diferentes formas.(Mizukami, 1986, p. 11)

Segundo Ëmile Chartier (Alain, 1978), defensor deste tipo de abordagem, a escola é o lugar também por excelência onde se raciocina. Defende um ambiente físico austero para que o aluno não se distraia. Considera o ato de aprender como uma cerimônia e acha necessário que o professor se mantenha distante dos alunos.(Mizukami, 1986, p. 12)

O isolamento das escolas e o artificialismo dos programas não facilitam a transferência de aprendizagem. Ignoram-se as diferenças individuais, pois os métodos não variam ao longo das classes nem dentro da mesma classe.

Evidencia-se uma preocupação com a sistematização dos conhecimentos apresentados de forma acabada. As tarefas de

aprendizagem quase sempre são padronizadas, o que implica poder recorrer-se à rotina para se conseguir a fixação de conhecimento/conteúdos/informações.

A relação professor-aluno é vertical, sendo que um dos pólos (o professor) detém o poder decisório quanto à metodologia, conteúdo, avaliação, forma de interação na aula, etc. Ao professor compete informar e conduzir seus alunos em direção a objetivos que lhes são externos, por serem escolhidos pela escola e/ou pela sociedade em que vive e não pelos sujeitos do processo.(Mizukami, 1986, p. 14) O professor já traz o conteúdo pronto e o aluno se limita, passivamente, a escutá-lo... A reprodução dos conteúdos feita pelo aluno, de forma automática e sem variação, na maioria das vezes, é considerada como um poderoso e suficiente indicador de que houve aprendizagem e de que, portanto, o produto está assegurado. A utilização freqüente do método expositivo, pelo professor, como forma de transmissão de conteúdo, faz com que muitos concebam o magistério como uma arte centrada no professor. (Mizukami, 1986, p.15)

Percebe-se então que a autora apresenta as características consideradas negativas no ensino tradicional: ensino pronto e acabado, transmissivismo, processo de ensino centrado no professor, aluno passivo, ênfase no produto e não no processo, autoritarismo.

Já ao tratar da abordagem sócio-cultural Mizukami associa a ela concepções e características discordantes com as da abordagem tradicional:

Na obra de Freire, o homem é o sujeito da educação e, apesar de uma grande ênfase no sujeito, evidencia-se uma tendência interacionalista, já que interação homem-mundo, sujeito-objeto é imprescindível para que o ser humano se desenvolva e se torne sujeito de sua práxis.

Segundo esta abordagem, não existem senão homens concretos, situados no tempo e no espaço, inseridos num contexto sócio- econômico-cultural-político, enfim, num contexto histórico.

Considerando-se esta inserção, a educação, para ser válida, deve levar em conta necessariamente tanto a vocação ontológica do homem (vocação de ser sujeito) quanto as condições nas quais ele vive. (contexto)

Sendo o homem sujeito de sua própria educação, toda ação educativa deverá promover o próprio indivíduo e não ser instrumento de ajuste deste à sociedade.(Mizukami, 1986, p. 86)

Toda ação educativa, para que seja válida, deve, necessariamente, ser percebida tanto de uma reflexão sobre o homem como de uma análise do meio de vida desse homem concreto, a quem se quer ajudar para que se eduque.

É preciso que se faça, pois, desta tomada de consciência, o objetivo primeiro de toda a educação: provocar e criar condições para que se desenvolva uma atitude de reflexão crítica, comprometida com a ação. (Mizukami, 1986, p. 94)

A relação professor-aluno é horizontal e não imposta. Para que o processo educacional seja real é necessário que o educador se torne educando e o educando, por sua vez, educador. Quando esta relação não se efetiva, não há educação.

Haverá preocupação com cada aluno em si, com o processo e não com produtos de aprendizagem acadêmica padronizados.(Mizukami, 1986, p. 99)

A verdadeira avaliação do processo consiste na auto-avaliação e/ou avaliação mútua e permanente da prática educativa por professor e alunos. Qualquer processo formal de notas, exames, etc deixa de ter sentido em tal abordagem. (Mizukami, 1986, p.102)

Percebe-se, portanto, confrontando estas abordagens, diferentes concepções de homem, sociedade, ensino, etc. Às vezes estas diferentes concepções levam a movimentos na própria história.

Historicamente o termo tradicional é colocado quando há implantação das idéias de valores da modernidade; aparece também quando há luta contra as formas de dominação. No contexto da modernidade a idéia de tradição indica uma idéia de permanência, de passado e a idéia de moderno seria o seu oposto, a de transformação e de futuro. A questão tradição x modernidade ao ser colocado como uma discussão de valores, leva a concepções positivas ou negativas frente à tradição.

Como Gadamer, Barroso Filho (1998), na introdução de sua tese de doutorado, relaciona as críticas à tradição ao movimento iluminista:

O passado nos faz, nele estamos irremediavelmente imersos. Somos frutos do passado... Mas a ideologia do progresso quebra essa idéia de continuidade, tornando o passado cada vez menos visível, menos comum a todos, menos presente. O racionalismo iluminista, dificultando a crença da história como evolução, como produto de uma intervenção consciente, direcionada, cria uma ruptura entre passado e presente. Até então a mudança era um processo natural, permanente, mesmo quando parecia ser imperceptível, era contínuo. Mas a ideologia do progresso faz da mudança uma meta, um dever: o futuro faz-se negação do passado; este passa a ser visto como um entrave, um elemento paralisador, refúgio dos que resistem à instauração do novo. A ideologia do progresso inevitável envolve as pessoas na crença em um futuro de rupturas, no qual a mudança é permanente, irresistível e inquestionável. O passado passa a ser visto com desconfiança; a memória social, disseminada em coletivos, internaliza-se em indivíduos.

Para o autor, ideologia do progresso é aquela que associa velho a ruim e novo a bom; tem a tradição como ruína, como obstáculo, e coloca a qualidade como uma meta para o futuro, o que explica, em parte, a associação negativa do termo tradicional.

Mas a questão moderno x tradicional atravessa o tempo e surge em vários outros momentos:

A educação escolar se resumia a um processo de preparo de alguns indivíduos para uma vida mais fácil e, em rigor, privilegiada. Os saberes que circulavam nas escolas secundárias tratavam de realidades diferentes daquelas que faziam parte do exercício diário dos homens comuns. Marcada por essa tradição, ela irá mostrar-se resistente a eventuais mudanças curriculares na direção de se adequar a modernização, isto é, entrar em sintonia com o surto industrial em que o país viveu nos anos 50. (Teixeira, 1957, p. 28)

Como veremos, apresentar contextos onde se coloca o ensino tradicional (de Matemática) é apresentar uma história do embate moderno × tradicional.