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Os anos 90 foram ricos na disseminação da ideologia de que a Internet seria capaz de aumentar a liberdade das pessoas; inspirou em muitos ativistas a sensação de que a rede era o espaço em que as leis às quais estavam sujeitos em seu dia a dia não valiam mais. Mas aqui é que vemos se desenvolver mais intensamente o que Alain Touraine já aponta nos anos 60 em suas análises das sociedades pós-industriais com o movimento das populações no sentido a desenvolver estilos de vida mais privatizados, buscando uma

experiência de vida individualizada (TOURAINE,1969).

Nos anos 90 a divisão dialógica entre o real e o virtual se acentuam. Podemos ver como esta distinção se dá no surgimento de alguns termos como “realidade virtual”, amizades, ou namoros virtuais. Esses termos sugerem que aquilo que se passava mediado por um computador, ou pela Internet estaria descolado do real; como algo que existe mas em outro plano, um plano que está separado da vida cotidiana das pessoas. Pierre Lévy em “O que é o Virtual” nos ajudou a pensar que as comunidades que se formavam em fóruns ou salas de bate papo estavam no mundo, mas ainda assim tinham algo de descolado do mundo cotidiano.

Este deslocamento do que é virtual que o separa do que pensamos como o mundo

real, ou o mundo físico, foi o principal mote para muitos dos net-ativistas5 dos anos 90.

Eles esperavam que este descolamento entre o real e o virtual se intensificasse e fosse em alguma medida normatizado. Para que fosse possível criar uma espécie de sociedade do digital, em que a liberdade fosse maior, e a democracia mais ampla, direta. Em 1996 um dos fundadores da Electronic Frontier Foundation (EFF), John Perry Barlow publicou uma carta endereçada “aos governos do mundo” intitulada de “A declaration of the in-

dependence of the Cyberspace”6. Neste documento é posta em disputa a capacidade de

gerir o que se passa no Ciberespaço, declarando que os governos não tem status moral,

5 Ativistas relacionados à temas da Internet.

6 A declaração pode ser encontrada no site da EFF: ℎ𝑡𝑡𝑝𝑠 : //𝑝𝑟𝑜𝑗𝑒𝑐𝑡𝑠.𝑒𝑓𝑓.𝑜𝑟𝑔/ 𝑏𝑎𝑟𝑙𝑜𝑤/𝐷𝑒𝑐𝑙𝑎𝑟𝑎𝑡𝑖𝑜𝑛−

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ou conhecimento de causa suficiente para governar ali. Afirma-se também no documento que na comunidade autogovernada pelos cidadãos da Internet as pessoas não estarão su- jeitas a preconceitos por raça, gênero ou status social, assumindo uma postura de que o Ciberespaço será capaz de sanar , ou ao menos se blindar, contra as mazelas que afe- tam negativamente o mundo físico. Este documento nos mostra como ao menos uma das maiores instituições voltadas para pensar exclusivamente a relação entre o homem e os computadores via uma distinção clara e cria distinções marcantes entre o virtual e o mundo das coisas, como uma verdadeira realização da caverna de Sócrates, onde o Cibe- respaço é a realização do mundo das ideias. As palavras de Barlow podem ser vistas aqui, se seguirmos as ideias do sociólogo americano Daniel Bell, como um marco de uma fase da sociedade pós industrial que tem grandes paralelos com a formação de uma nova classe social intelectualizada, baseada em novas manifestações de uma indústria cultural e infor- macional, cujos principais vetores são a liberdade pessoal e a contestação das instituições (BELL,1973).

A Declaração de independência do Ciberespaço de Barlow foi publicada em res- posta aos primeiros movimentos de uma série de governos para começarem a exercer sua soberania sobre a rede. Isso se deu dois anos antes da disputa entre Postel e o governo norte americano. Esta movimentação na segunda metade dos anos 90 vem como desenvol- vimento de um ethos libertário que parece ser influenciado fortemente pela contracultura dos anos 60. Essa postura assumida por muitos ativistas se aproxima do que Steven

Levy, Pekka Himanen e outros autores7 chamam de ética hacker. Segundo estes autores

a postura destes hackers está muito baseada no autodesenvolvimento, na formação de

comunidades baseadas em livre acesso a conhecimento8, descentralização de processos e

participação9.

A sociedade civil organizada, bem como empresas,ao se preocupar com questões relacionadas com a Governança da Internet está em grande medida tentando influenciar as regras que atuam sobre dependências sensíveis para as causas que defendem. Apesar de haverem organizações como a EFF que tentam atuar sobre a Internet como um todo, grande parte da atuação do terceiro setor é mais focada em temas bastante específicos como propriedade intelectual, liberdade de expressão, anonimato ou acessibilidade. E

7 Entre estes autores podemos contar Linus Trovalds, Manuel Castells e Katie Hafner.

8 Este tópico ganhou especial destaque nos últimos anos com o desenvolvimento de espaços na Internet voltados para a divulgação de crimes contra a humanidade. O site WikiLeaks é o mais famoso destes espaços. Além destes sites nos últimos anos a figura de alguns denunciantes – ou como são chamados em inglês whistleblowers – como Bradley Manning e Julian Assange.

9 As comunidades parecem muitas vezes se formar em torno de projetos. Um grupo pode se formar em torno do desenvolvimento de um código, ou do debate em torno de um tópico específico sobre ficção científica. Da mesma forma como isso poderia acontecer em um clube, ou uma universidade, agora isso acontecia em fóruns na Rede, e o processo acabou se tornando notório. As pessoas que desenvolviam algum código ou tecnologia em um esquema organizacional deste tipo geralmente não ganhavam dinheiro por este desenvolvimento, mas é comum ver pessoas atuando como consultores pagos para empresas que usam aquela tecnologia.

mesmo estas entidades mais abrangentes apresentam dificuldades no momento de atuar como verdadeiros lobistas, mantendo-se como grupos de pressão.

O modelo de representação multissetorial trouxe uma maior possibilidade do ter- ceiro setor ser representado em debates sobre a Internet, e por consequência vem sendo capaz de defender seus interesses mais eficientemente. Por si só a ideia de representação multissetorial implica na participação de pelo menos três setores interessado e envolvidos com o tema em questão, mas muitos são os arranjos que podem ser enquadrados dentro

desta caracterização como apontam tanto autores brasileiros (ALMEIDA; GETSCHKO;

AFONSO, 2015) quanto internacionais (DENARDIS; RAYMOND, 2013). Quando fala- mos acima dos whistleblowers podemos ver como em alguma medida os novos atores contestadores podem ter uma influência grande, ao menos no que diz respeito aos pro- cessos de comunicação e de gestão de imagens, e este modelo ganha centralidade por trazer para o debate as pessoas que estão fora de governos, empresas, ou academia, e que

influenciam o desenvolvimento da rede criando novas forma de usá-la10.

Além disso o terceiro setor vem fazendo pressão para que o desenvolvimento da Internet seja acompanhado por iniciativas que ajudem a desenvolver economias locais por meio de capacitação, e fazendo com que vozes locais ecoem com mais força. O processo tão explorado de tentar realçar simultaneamente questões globais e locais foram abordadas

já em 1992 por Roland Robertson (ROBERTSON,1992) usando o termo glocalization. A

ideia vem da postura de homens de negócios japoneses que buscavam atuar economica- mente acompanhando as tendencias ocidentais de negócios, mas sem perder sua identidade local, atuando em grande medida sob o mote “pense global, aja local”.

Outra grande fonte de fortalecimento para o terceiro setor vem sendo a Internet Society (ISOC), que é hoje uma das principais instituições internacionais a fazer a ligação entre o desenvolvimento humano e a Governança da Internet. Fundada em 1992 ela está conectada a grupos como a Internet Engineering Task Force, e a ICANN, mas atua siste- maticamente também no desenvolvimento de lideranças locais relacionadas à questões da rede. Graças à ISOC o relacionamento entre o terceiro setor e os processos de governança vem se estreitando consideravelmente, graças à capacitação, produção de pesquisa, e de- senvolvimento de encontros que trazem em si o espaço para o desenvolvimento de eventos organizados sobre o prisma institucional multstakeholder.

Como podemos ver, a sociedade civil – organizada ou não – teve várias formas de aproximação dos processos de Governança, e influenciou significativamente os caminhos do campo por meio de atuação técnica, de publicações de denúncias contra abusos cometidos nas redes por corporações e governos, por atuação em grupos de pressão e crítica. Neste

10 Podemos exemplificar o caso aqui com o desenvolvimento do feed RSS, os desenvolvedores associados ao navegador Tor, ou mesmo os hackers que atuam na área de segurança de redes, e divulgam falhas ajudando a proteger os usuários médios.

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grupo vemos desde pessoas que se destacaram ao longo da história da Internet como Barlow, Assange e Snowden, passando por comunidades menos estruturadas como os participantes em fóruns e comunidades de programadores, ou de direitos humanos, ou por fim entidades civis mais estruturadas como a Electronic Frontier Foundation.

As ideologias de um grupo sobre liberdade e participação decisória nas transforma- ções da rede que se mostram como as principais tônicas dos movimentos civis na Internet, e que podemos ver tão claramente no manifesto de Barlow nos parece ser reforçado, não apenas pelo modelo multstakeholder, mas também pelo processo de desenvolvimento da rede no que diz respeito à capacidade de seus usuários produzirem conteúdos e aplica- ções para a rede. A ampliação potencial da capacidade das pessoas se comunicarem, e expressarem suas ideias para audiências cada vez maiores, bem como a possibilidade de

gerenciar como apresentam suas identidades na rede11 acentuou a noção de liberdade na

rede.

Todavia as ideias de uma completa liberdade na rede, ou que é possível ser re- almente anônimo, ou ainda acreditar que somos capazes de gerenciar totalmente sua identidade são ideias baseadas muitas vezes em um raso conhecimento técnico, ou em

ingenuidade associada à um messianismo tecnológico12. Questões que tem sido trazidas a

tona com frequência pela a sociedade civil como o direito ao esquecimento, e consequente- mente ao completo anonimato, são tecnicamente quase impossíveis de serem alcançados, pois para a comunicação entre dois computadores são necessários alguns identificadores únicos que podem ser usados para encontrar um computador, e a partir dele seu usuá- rio. O mesmo vale para smartphones, smartTVs, ou qualquer aparelho que esteja hoje conectado à rede. Quanto a capacidade de criação de conteúdo para a Internet podemos observar como cada vez mais a navegação de usuários se restringe a sites que gerenciam como o conteúdo chega até os usuários, assim sendo apesar de sermos capazes de pro- duzir o conteúdo que quisermos nossa capacidade de alcançarmos alguma audiência está condicionada aos algoritmos geridos por empresas. Nos relacionamos o tempo todo com algorítimos, protocolos, e toda sorte de programas que, como aponta Lawrence Lessig (LESSIG, 1999), fazem com que a ideia de regulação seja intrínseca à Internet.

11 A possibilidade de se criar grupos de sociabilidade separados de seus corpos, em ambientes virtuais foi estudada por uma série de autores e indica como este processo parece acentuar a liberdade do indivíduo em relação às amarras sociais implicadas por gênero, cor de pele, ou idade. O primeiro exemplo de caso documentado sobre esse processo foi o relato “A rape in cyberspace”, mas outros estudos foram desenvolvidos sobre a plataforma Second Live, e sobre o desenvolvimento de comunidades via chats (SILVA,2000).

12 Por messianismo tecnológico nos referimos à ideia de que a tecnologia será capaz, de em algum tempo, resolver todos nossos problemas.