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Sociedade e Programas Sociais da Defesa no Livro Branco da Defesa

Para começarmos, é importante considerar como o livro branco e a política de defesa do governo Dilma Rousseff enquadravam a questão social. O documento conta com um capítulo especial sobre o tema, e a maneira de intitulá-lo foi “Defesa e Sociedade”. Ali, existem ações, previsões e conceitos que norteiam as relações mais abrangentes da sociedade com a defesa, sobre como a primeira poderia ou deveria ver a segunda. Além disso, o livro branco aponta as formas subsidiárias não coercitivas de intervir da defesa sobre a sociedade. Pelas características do capítulo, como veremos a seguir, a intenção é educar a sociedade para a defesa, justificar a manutenção da estrutura de defesa em tempos de paz, ter contato direto com a sociedade, prover bens e serviços públicos civis a ela e implementar um plano de ocupação da Amazônia. Neste texto, nos limitamos a enquadrar as situações acima na fonte primária. Interpretações, análises e eventuais confirmações presentes em documentação adicional ou bibliografia especializada serão discutidas no próximo capítulo.

De acordo com o Livro Branco da Defesa Nacional, a defesa deve se ligar com a sociedade de maneira instrumental, porque as mudanças tecnológicas no ambiente estratégico contemporâneo têm base também em mudanças de “padrões de relacionamentos políticos e humanos” (Idem, p. 167). Podemos dizer que a política de defesa expressa no documento é baseada numa percepção de mudança de cenários, num imperativo instrumental de sua parte de se adaptar a este fato, e expressa uma perspectiva de inclusão da instituição militar aos padrões de relacionamento humanos e políticos da contemporaneidade. O documento afirma ainda que “a interação harmônica entre os órgãos da defesa e a sociedade dá maior dinâmica à ação estatal no provimento da segurança e da defesa do País” (Idem, ibidem). A relação entre

a defesa e a sociedade, com base nesta citação, afirma-se como um dos fins da defesa, não se pretendendo uma política assistencial, de infraestrutura, saúde ou qualquer outra.

A seguir, a política de defesa expressa no livro branco assume a responsabilidade de:

[...] incorporar e processar interesses e demandas amplamente diversificados no âmbito nacional e internacional, compartilhando responsabilidades com a sociedade, tanto no momento de escolher prioridades e estratégias, quanto no acompanhamento e na avaliação da ação política. (Idem, ibidem).

Em outras palavras, o que o documento prevê é que as políticas e ações que serão elencadas posteriormente no capítulo “Defesa e Sociedade” devem ter conteúdos de compartilhamento de responsabilidades e de uma ação comunicativa tanto na expressão de demandas sociais à política de defesa quanto na avaliação das respostas dadas pelo ministério ou as forças. A partir de então, o documento delineia, sucessivamente, os Programas Sociais da Defesa, as relações da defesa com os poderes da República, com os Direitos Humanos, com o acesso à informação, com a academia civil e o desenvolvimento industrial. Além disso, há uma seção dedicada ao pessoal civil da administração central da defesa.

Feita a introdução sobre as relações entre a defesa e a sociedade brasileiras, o livro branco segue para a caracterização dos Programas Sociais da Defesa, que seriam “dispositivos e programas cuja implementação e aplicação contribuem para que haja um aumento de participação social em assuntos de defesa e segurança” (Idem, p. 168). Gostaríamos de realçar a perspectiva da política prevista pelo livro branco como um vetor de aumento da participação social dos assuntos da área.

Em seguida, passaremos rapidamente em revista os Programas Sociais da Defesa, apenas enquadrando-os como partes do livro branco e de como se inserem no todo da política de defesa a partir deste documento. Na próxima seção deste texto, cada um deles será trabalhado individualmente e em detalhe.

O Projeto Rondon, que teve sua primeira edição em 1967, portanto na vigência da ditadura militar, teve uma reelaboração ainda no governo Lula da Silva. No Livro Branco da Defesa, lançado no governo Rousseff, ele é apresentado como um programa do Ministério da Defesa que visa aproximar estudantes das universidades brasileiras de diversas regiões do país a administrações municipais da Amazônia, com vistas a fomentar mudanças sociais e o aumento do bem-estar local. Os estudantes são vistos também como promotores da eficiência da administração municipal das localidades que os recebem (BRASIL, 2012, p. 170).

De acordo com o documento, as Forças Armadas, além de organizadoras do programa, conferem apoio logístico às equipes rondonistas, de acordo com as necessidades da geografia

local. No ano de 2012, foram atendidos 59 municípios da área atendida pelo programa, com a participação de 1.180 estudantes. Contando todas as edições do Projeto Rondon desde sua retomada em 2005, 833 municípios receberam equipes rondonistas e 13.820 estudantes participaram do programa (Idem, p. 171).

O Programa Calha Norte foi criado em 1985, passando por um momento de forte letargia orçamentária e política no período Collor de Mello, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso. No período Cardoso, iniciaram-se estudos para reformulá-lo (SILVA, 2004, ps. 56-57). Uma nova versão do programa seria lançada por Lula da Silva em 2005. De acordo com o livro branco, ele foi criado nos anos 1980 para ocupar ordenadamente a calha norte do Rio Amazonas. Com sua retomada, a área de abrangência se estendeu à Ilha de Marajó e à Bacia do Rio Solimões, chegando aos estados de Rondônia e Mato Grosso. As ações compreendidas pelo programa abrangem “a construção de rodovias, portos, pontes, escolas, creches, hospitais, aeródromos, poços de água potável e redes de energia elétrica” (BRASIL, 2012, p. 169). De acordo com o documento, essas ações são vistas como benfeitorias para as comunidades locais. As fontes dos recursos são do próprio Ministério da Defesa ou de convênios com as administrações estaduais e municipais (Idem, ibidem).

Como o próprio documento afirma, os interesses do programa não são exclusivamente sociais, são também de natureza defensiva. Mais notável do que isso, em nossa opinião, é o livro branco assumir que o Programa Calha Norte é uma das poucas formas em que o Estado brasileiro se faz presente nas regiões que atende. O programa também é afirmado como de “grande alcance social” (Idem, ibidem).

No que tange às Ações Subsidiárias e Complementares, o terceiro programa social explicitado no Livro Branco da Defesa Nacional, o que percebemos foi a conformação de um conceito abrangente que engloba diversos tipos de ações do ministério e das Forças Armadas que prescindem do uso da força, não têm caráter administrativo e estão fora dos demais programas sociais. Dentre elas estão “o emprego da engenharia do Exército na construção de estradas, ferrovias, pontes e açudes; a evacuação aeromédica em regiões longínquas realizada pela Força Aérea; e o apoio de saúde prestado pelos navios-hospitais da Marinha. Cita-se, ainda, o apoio humanitário em ocorrências de sinistros e calamidades, como queda de aeronaves, afundamento de embarcações, enchentes, deslizamentos ou secas prolongadas” (Idem, ps. 171-172).

No geral, as ações subsidiárias elencadas acima, somadas às propriamente de defesa civil, são assumidas pelo livro branco como formas mais rápidas de o governo responder a

contingências (Idem, ibidem). Não há detalhamento do que define urgência ou contingência que implique no uso das Forças Armadas no amplo espectro de ações previstas.

Em 2004, o governo Lula da Silva criou o Programa Soldado Cidadão, destinado à desmobilização de recruta que prestaram o serviço militar obrigatório. O livro branco afirma ter conseguido, até sua publicação, qualificar 100 mil jovens por meio do programa, que além de ministrar aulas de empreendedorismo, ética e cidadania, forma os ex-recrutas como técnicos em diversas áreas. Dentre elas, estão “telecomunicações, mecânica, alimentícia, construção civil, artes gráficas, confecção, têxtil, eletricidade, comércio, comunicação, transportes, informática e saúde” (Idem, p. 168).

O Programa Forças no Esporte é retratado no livro branco como um instrumento de “integração social por meio da prática esportiva” (Idem, p. 170). Seu alvo é o público de idades entre 7 e 17 anos, e para além da educação para o esporte, há reforço nos estudos do currículo normal de jovens e crianças, educação para a “prevenção de doenças” e outras atividades educacionais não datalhadas. O programa é realizado por meio de convênio com os ministérios do esporte e do desenvolvimento social e agrário, cabendo a cada um deles algumas atribuições. Figuram entre aquelas do Ministério da Defesa, executadas por meio das Forças Armadas, o fornecimento de “infraestrutura, serviço médico, odontológico e de assistência social, coordenadores, transporte e monitores das organizações militares da Marinha, do Exército e da Força Aérea” (Idem, ibidem).

De acordo com a caracterização dos Programas Sociais da Defesa pelo próprio livro branco, percebemos uma vinculação pouco nítida com os objetivos gerais das relações entre a defesa e a sociedade brasileira. Em termos gerais, o documento afirma que esses programas deveriam agir sobre a composição e a melhora de uma mentalidade de defesa no país, e que haveria uma ligação deles com novos aspectos da defesa contemporânea, de integração do componente civil da sociedade no sistema da defesa. Ademais, seria também uma das atribuições destas políticas o compartilhamento de responsabilidades entre a sociedade e as instituições da defesa, o que o livro branco não aprofunda, seja por não colocar entes da sociedade civil como corresponsáveis pelos programas sociais ou por não explicar como eles poderiam colocá-los nessa posição.

A próxima etapa deste trabalho será o de apresentar, com base em fontes primárias e oficiais e de análises especializadas (quando houver) os Programas Sociais da Defesa. Aqueles que tiverem um histórico anterior ao período 2003-2014 terão uma discussão inicial em que se exporão seus antecedentes, e todos serão escrutinados no que tange a seu desenvolvimento nos governos Lula da Silva e Dilma Rousseff. A ordem de apresentação dos

programas estudados foi a cronológica, a partir da criação de cada um. Foram consideradas as datas de criação de cada um deles, contadas a partir de seus primeiros registros de eventos oficiais. Ao fim da caracterização de todos os programas, incluímos ainda como cada um deles foi enquadrado nos planos orçamentários dos governos aqui estudados, buscando mostrar como são vistos no âmbito do planejamento e em sua apresentação para a aprovação legislativa.