• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 1 DA EPISTEMOLOGIA DO CONHECIMENTO À TEORIA

1.5 A SOCIOLOGIA DA CIÊNCIA EM BOURDIEU

Nas primeiras páginas do livro “Para uma sociologia da ciência” Bourdieu (2004c, p.7) alerta sobre a necessidade de defender a autonomia da ciência em relação aos interesses, principalmente, dos campos econômico e político, além de outros campos simbólicos (medicina, agricultura, militar, entre outros). Justifica tal preocupação no fato de que muitos pesquisadores são absorvidos pelos interesses industriais que visam garantir o monopólio de rendimentos comerciais, o que vem provocando gradativamente o desaparecimento do cientista que não cede às exigências (BOURDIEU, 2004 b, p. 8). O autor (2004c) destaca um grupo de disciplinas (filosofia das ciências, epistemologia, história das ciências, sociologia das ciências) que discutem o tema ciência apresentando controvérsias entre o que é proposto pelos sociólogos da ciência. Chama atenção para uma fraca reflexividade45 no âmbito da sociologia da ciência com domínio do campo filosófico sobre a reflexão epistemológica da ciência ao observar reacender nos debates uma visão cética radical em relação às interpretações da realidade, como o idealismo e realismo ou dogmatismo e cepticismo (BOURDIEU, 2004c, p.19).

45

Entendida como o trabalho pelo qual a ciência social, tomando-se a si mesma como objeto, se serve das suas próprias armas para se compreender e se controlar, a reflexividade é um meio particularmente eficaz de reforçar as hipóteses de se aceder à verdade ao reforçar as censuras mútuas e ao fornecer os princípios de uma crítica técnica, que permite controlar de forma mais atenta os fatores susceptíveis de alterar o sentido da investigação (BOURDIEU, 2004c, p. 123).

Com base nesse contexto Bourdieu coloca em discussão o posicionamento escolástico de filósofos e/ou cientistas sociais que focados em poucos dados empíricos, investem em textos e discussões teóricas tomadas como prática científica. Dessa forma afirma que prejudica o avanço da razão científica com o “baixo nível de exigência em matéria de rigor argumentativo [...], em particular, no recurso bastante sistemático a estratégias desleais de „desinformação‟ ou de difamação” (BOURDIEU, 2004c, p. 19). O autor também apresenta a oposição e entre o velho e o novo, defendida pelo modelo kuhniano ao analisar a evolução das teorias científicas, estabelecendo aquilo que será denominado de alternância de paradigma, como forma de verificar-se o progresso da ciência. Bourdieu, não defende, contudo a oposição sistemática, identificando na obra de Kuhn “A tensão essencial” (1977), apresentando-se de igual posicionamento:

As viragens revolucionárias de uma tradição científica são relativamente raras, e a sua condição necessária são longos períodos de investigação convergentes [...]. Só as investigações firmemente enraizadas na tradição científica contemporânea tem hipótese de quebrar essa tradição e dar origem a uma nova (KUHN, 1977, p. 307 apud BOURDIEU, 2004c, p. 30 - 31).

Bourdieu ao reinterpretar Kuhn, conclui que “[...] o revolucionário é necessariamente alguém que tem capital [...]. Ou seja, um grande domínio dos recursos coletivos acumulados e que, por isso, conserva necessariamente aquilo que supera” (2004 c, p.31). Percebe as concepções de Kuhn (1962) como de cunho internalista ao analisar a Ciência e ao definir a comunidade científica que independentemente de divisas é facilmente identificada, como potências científicas, ultrapassando ideologias e crenças (BOURDIEU, 2004c, p.30). Destaca a adaptação da obra de Kuhn (1962), mesmo contra a vontade deste, com o retorno ao campo que lhe deu origem “o campo social”, quando a obra foi utilizada para contestar a própria universidade durante o movimento desencadeado em Paris denominado “Maio de 1968”. O movimento lançou mão de armas científicas e/ou epistemológicas “[...] contra a ordem universitária, que devia parte da sua autoridade simbólica ao facto de ser uma episteme instituída, e de assentar, em última instância, na epistemologia” (BOURDIEU, 2004c, p. 32-33). O capital científico é uma espécie de capital simbólico, sustentado no conhecimento e reconhecimento conquistado pelo agente, neste caso particular, o investigador, o qual garante assim sua vantagem em relação aos adversários.

Bourdieu caracteriza as estruturas sociais enquanto uma constituição contínua, social e historicamente reproduzida e/ ou transformada por meio das práticas de seus

agentes, considerando as origens sociogenéticas46. O tratamento dado à ciência por Bourdieu é histórico e sociológico sem reduzi-lo às suas condições históricas (circunstâncias datadas e localizadas), mas fazendo com que os cientistas compreendam os mecanismos sociais que orientam a prática científica (BOURDIEU, 2004c, p. 09). A comunidade científica pode dotar seus agentes da profissão de cientista por meio das instituições corporativas, composições sociais, que resguardam a lógica do campo da ciência, “[...] uma comunidade que gere parte dos interesses comuns apoiando-se nos interesses e cultura comuns, para funcionar” (BOURDIEU, 2004c, p. 69). Entretanto não se trata de uma comunidade solidária, embora existam aspectos que unam os cientistas (posição, luta, pesquisa, comunicação, conhecimento, ensino, entre outros), certos aspectos os separam como o combate ao erro, ou melhor, tudo o que determina e possibilita à competição (PETERS, 2017, p. 341).

O campo científico caracteriza-se por um funcionamento em circuito fechado em que “um conhecimento é considerado autêntico, autentificado, homologado, quando acede ao espaço público”, neste caso, o público são os opositores (jogadores) que atuam como avaliadores em cumprimento às regras de fazer ciência. “O testemunho válido é um compromisso entre homens de honra, [...] independentes que estudam livremente fenômenos experimentais e que criam o fato comprovado. O campo impõe a competição e o desprendimento pela nova informação que tem por recompensa o reconhecimento dos pares, de tal forma que o “capital científico faz parte desta ambiguidade enquanto relação de força fundada no reconhecimento” (BOURDIEU, 2004c, p. 76 - 78). Bourdieu (2004c, p.70) observa que no caso das ciências da natureza a autonomia está gravada na objetividade das estruturas deste campo, na forma como os métodos e teorias são incorporados: passando pela matematização (que não atinge as ciências sociais); a objetividade do mundo social (universitário) por meio da criação das disciplinas e determinação de critérios de admissão no campo (competência e apetência pelo que está em jogo).

As regras para fazer ciência estão incorporadas num habitus necessário ao jogo social no qual o agente está envolvido. “Se há um lugar onde se pode supor que os agentes agem de acordo com intenções conscientes e calculadas, segundo métodos e programas conscientemente elaborados, é certamente o domínio científico”

46 Referente à origem e conservação da sociedade considerada em seus aspectos claramente humanos,

como o estético, o espiritual e o intelectual - Dicionário online. Disponível em ≤https://www.dicio.com.br/sociogenetico/≥. Acesso em 27 de abr. de 2018.

(BOURDIEU, 2004c, p. 58). Desta forma Bourdieu defende que a teoria dos campos sociais que ele propõe é a única capaz de atingir uma reflexão plenamente científica capaz de objetivar o sujeito:

É preciso buscar no objeto construído pela ciência (o espaço social ou o campo) as condições sociais de possibilidade do "sujeito" e de sua atividade de construção do objeto (de onde a skhole e toda a herança de problemas, conceitos, métodos etc.), trazendo assim à luz do dia os limites sociais de seus atos de objetivação (BOURDIEU, 2001, p. 146).

Desta forma Bourdieu reduz outros modos de reflexão científica em que não se objetive o sujeito da objetivação (ignore a teoria dos campos como padrão de análise) à reflexividade subjetiva (reflexão filosófica via escolástica ou relativismo epistemológico sobre o conhecimento científico).