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4. CAPÍTULO III: A MOBILIDADE URBANA COMO UM DIREITO SOCIAL: O

4.6. Tarifa zero: uma proposta viável

A instituição do direito ao transporte como direito social significa que o transporte coletivo será prestado de forma gratuita. Dessa forma, assim como a educação e a saúde, o transporte coletivo não será financiado apenas pelos usuários por meio do pagamento na hora do fornecimento do serviço.

Para tanto, é necessário uma proposta de financiamento do transporte coletivo diferente da atual. O financiamento do transporte diz respeito a quem suportará os custos com insumos do setor. “O principal componente de custo no transporte público urbano por ônibus no Brasil é a mão de obra com seus encargos sociais29, seguido pelos gastos com combustível (diesel).” (IPEA, 2013).

Atualmente, a principal fonte de financiamento do sistema de transportes é a tarifa (SANT'ANNA; LIMA apud NASCIMENTO, 2007). Portanto, o usuário é o principal financiador do transporte coletivo.

Os sistemas de Transporte Publico Urbano no Brasil em geral seguem a metodologia de cálculo de tarifas desenvolvida e difundida no passado pela extinta Empresa Brasileira de Transporte Urbanos (EBTU), mais tarde atualizada pelo Ministério dos Transportes, podendo ocorrer algumas especificidades introduzidas pelos gestores locais. Esse modelo de cálculo é baseado na fórmula de custo médio, no qual o custo quilométrico do sistema é dividido pelo Índice de Passageiros por Quilômetro (IPK) que, em última análise, significa que os custos de produção do transporte são repartidos entre os usuários pagantes (equivalentes). (IPEA, 2013, p. 6)

A criação do vale-transporte, em 1985, fez com que os empresários participassem do financiamento do transporte coletivo. A Lei n° 7.418 determina que o empregador deva participar do custeio dos gastos de deslocamento casa-trabalho do trabalhador com a ajuda de custo equivalente à parcela que exceder a 6% de seu salário base. “No entanto, o vale-transporte tornou-se incompatível com o atual

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São custos indiretos do trabalho fixados por lei com percentual fixo sobre a folha de pagamento dos trabalhadores, como por exemplo, a contribuição para o Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e outros.

cenário do mercado de trabalho: no momento em que 51% dos trabalhadores metropolitanos brasileiros estão no mercado informal” (GOMIDE apud NASCIMENTO, 2007).

Os subsídios do Estado completam o sistema atual de financiamento do transporte coletivo. O Estado participa do financiamento quando isenta os tributos que tem como base de cálculo os insumos consumidos pelo setor e que seriam pagos pelos empresários

Outro item da estrutura de custos do TPU é a carga tributária direta incidente sobre o faturamento ou folha de pagamento, que pode ser desagregada em tributos federais, estaduais e municipais. (...) Além dos tributos diretos, são significativos para a composição dos custos de operação dos sistemas de ônibus urbanos os tributos indiretos incidentes sobre o óleo diesel: a CIDE e o Pis/Cofins, que são tributos federais com alíquotas em torno de 25%; e o ICMS, tributo de competência estadual, com alíquota variando entre 12 e 25% sobre o preço de venda. Caso os governos venham a desonerar também esses tributos, estima-se uma redução de 7 a 10% no preço final da tarifa de ônibus. (IPEA, 2013, p. 8).30 Apesar dessas formas de financiamento extra-tarifárias, na prática o financiamento é majoritariamente feito pela tarifa cobrada dos usuários.

Brasil, o custeio da operação do transporte público por ônibus urbano é feito em geral pelas receitas arrecadadas com base nas tarifas pagas pelos usuários dos serviços de transporte. São poucos os casos de recursos extratarifários financiando o TPU no Brasil, a exemplo do que ocorre nos países europeus e da América do Norte, nos quais os sistemas de transporte recebem recursos diretamente dos governos, em seus diversos níveis, provenientes ou não de impostos específicos, visando à redução da tarifa. (IPEA, 2013, p. 10).

Em 1990, a prefeita Luiza Erundina submeteu à Câmara de Vereadores de São Paulo um projeto de lei que propunha que todos os transportes coletivos funcionassem com tarifa zero no Município de São Paulo. Tratava-se de uma proposta do Governo Municipal, coordenada pela Secretaria Municipal de Transportes, que estava sob a responsabilidade do Secretário Lúcio Gregori.

A proposta consistia basicamente no financiamento do transporte coletivo indiretamente, através do recolhimento de tributos. Assim, toda a população financiaria o transporte, aplicando impostos com alíquotas progressivas, como um critério de justiça fiscal, onde aqueles que possuem mais (empresas e pessoas) pagariam mais, aqueles que possuem menos pagariam menos e aqueles que não possuem nada não pagariam.

30 As siglas PIS e CONFINS significam, respectivamente, Programas de Integração Social e

Ainda conforme a proposta, o dinheiro recolhido iria para um Fundo de Transportes, que financiaria todo o sistema de transporte coletivo, permitindo que os transportes funcionassem sem o pagamento da tarifa pelo usuário.

Ainda na proposta da prefeita Luiza Erundina para o financiamento do sistema de transporte coletivo, foi sugerida a majoração das alíquotas do Imposto Predial Territorial Urbano (IPTU), que seria acompanhada de uma reforma tributária.

“Nos debates e reuniões de que participei pude perceber a resistência que se tem em propiciar um sistema mais racional e justo para a mobilidade de todos, independentemente de classe social. A pouca mobilidade física dos usuários de transporte coletivo se traduz, também, em menor mobilidade social. O preconceito aparecia sob a forma de ditos como: “se é ruim pagando, pior se for de graça”, ou “os ônibus vão estar lotados de bêbados e desocupados” ou ainda, “se for de graça haverá vandalismo etc. etc.” (...) O projeto não pôde ser implantado. A Câmara Municipal sequer votou a necessária reforma tributária e o projeto como um todo. Esse conjunto de preconceitos esconde uma questão política e social muito mais profunda, que se constitui como um paradigma.” (GREGORI, 2011).

Mais de uma década depois, a primeira apresentação da proposta de tarifa zero nos transportes coletivos urbanos foi analisada por diversos tributaristas que apontavam, sobretudo, a impossibilidade de vinculação de impostos a órgão, fundo ou despesa, como dispõe a Constituição Federal de 1988.

“Art. 167. São vedados: IV - a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, ressalvadas a repartição do produto da arrecadação dos impostos a que se referem os arts. 158 e 159, a destinação de recursos para as ações e serviços públicos de saúde, para manutenção e desenvolvimento do ensino e para realização de atividades da administração tributária, como determinado, respectivamente, pelos arts. 198, § 2º, 212 e 37, XXII, e a prestação de garantias às operações de crédito por antecipação de receita, previstas no art. 165, § 8º, bem como o disposto no § 4º deste artigo.” (BRASIL, 1988)

Portanto, o Estado apenas pode vincular a cobrança de impostos a fundos, órgãos ou despesas que se relacionem com a educação e a saúde. A criação do direito ao transporte como direito social poderia abrir caminho para a mudança na Constituição Federal no sentido de permitir a criação de fundos e despesas relacionadas também ao transporte coletivo.

No entanto, mesmo no ordenamento jurídico atual, a tarifa zero é viável. A Constituição Federal impede a vinculação de impostos, mas é possível a vinculação de outras espécies tributárias. Há estudos e propostas legislativas que buscam vincular a receita advinda da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (CIDE) – Combustíveis a um Fundo de Transportes que iria custear a tarifa zero.

Além disso, é possível também a determinação de recursos para o financiamento do transporte coletivo na Lei Orçamentária Anual de cada Município.

Portanto, a tarifa zero nos transportes coletivos urbanos é viável. “Em Hasselt, na Bélgica, a ‘tarifa zero’ existe desde 1997. A demanda por transporte coletivo cresceu cerca de 1300% e houve considerável diminuição de investimentos no sistema viário.” (GREGORI, 2011).

Durante as manifestações do Movimento Passe Livre em 2013, era possível observar a faixa “tarifa zero paga pelos ricos”. Ou seja, o financiamento dos transportes coletivos urbanos deve ser feito a partir de um Fundo de Transportes que permita ao usuário utilizar o serviço sem pagar. Esse Fundo de Transporte reunirá a receita adquirida através da cobrança de tributos com alíquotas progressivas. Aqueles que possuem mais (empresas e pessoas) pagariam mais, aqueles que possuem menos pagariam menos e aqueles que não possuem nada não pagariam.