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CAPÍTULO III DIREITO E VIOLÊNCIA NA ZONA DE INDETERMINAÇÃO DO BANDO NA CONTEMPORANEIDADE

3.2 Os Tempos Atuais e a Biopoder

Desde o início do trabalho, mas com mais ênfase no segundo capítulo, a projeção metodológica de uma investigação sobre a constituição e determinação da sociedade a partir de relações de dominação e poder foi discutida desde as formas mais rudimentares de organização social até a de o Estado Moderno como fruto desta constatação. Da mesma forma, na projeção do Estado Moderno contemporaneamente, nós somos também atingidos por esta constatação, talvez com uma profundidade como nunca antes na história, pois, nos atuais, em especial no período pós segunda guerra mundial, a questão do biopoder e das formas do exercício da soberania são avassaladoras para as condições da vida.

As possibilidades modernas de se exercer o biopoder ou a soberania remetem a noções de violência cuja base fundadora é confusa, a

vida, a contingência e os perigos parecem funcionais aos interesses imperiais que permitem o desdobramento de toda a força coercitiva do Estado e a imposição de seu discurso, verdade e valor.173

A originalidade desta discussão, sem sombra de dúvidas, é encontrada no pensamento de Michel Foucault, para quem, na sociedade moderna, múltiplas relações de poder constituem o corpo social, que se forma a partir de sua indissociabilidade com o funcionamento de um discurso de verdade e, por mais que isto seja real em qualquer sociedade, o autor aposta que a nossa a relação entre poder, direito e verdade se organize de uma maneira muito particular.174

No Rio de Janeiro, em 1974, em palestra intitulada “O nascimento da medicina social” Foucault lançou mão, pela primeira vez, do termo biopolítica. Seu intuito não era discutir o que de fato veio a ser a “biopolítica”, mas discutir como o capitalismo teria acarretado uma socialização do corpo e não como poderia se pensar, uma privatização da medicina.

Ao se ampliar o contexto da palavra biopolítica para biopoder, surge uma interessante diferenciação entre o biopoder e poder de soberania ao qual ele sucede historicamente, insistindo-se, sobretudo, na relação distinta que é mantida entre este com a vida e a morte, pois enquanto o último faz

morrer e deixa viver, o biopoder faz viver e deixa morrer. 175

       173

Cf. KORSTANGE, Maximiliano E. Sobre la violencia: seis reflexiones marginales en respuesta a S. Zizek, Nómadas, Revista Crítica de Ciencias Socieales y Jurídicas, n. 30, 2.2011. 174

Segundo o autor “en una sociedad como la nuestra […] múltiples relaciones de poder atraviesan, caracterizan, constituyen el cuerpo social; no pueden disociarse, ni establecerse, ni funcionar sin una producción, una acumulación, una circulación, un funcionamiento del discurso verdadero. No hay ejercicio de poder sin cierta economía de los discursos de verdad que funcionan en, a partir y a través de ese poder. El poder nos somete a la producción de la verdad y sólo podemos ejercer el poder por la producción de la verdad. Eso es válido en cualquier sociedad, pero creo que en la nuestra esa relación entre poder, derecho y verdad se organiza de una manera muy particular”. FOUCAULT, Michel. Defender la sociedad, Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2001, p. 34.

175

A ampliação do termo biopolítica num contexto mais amplo acontece, como indica Peter Pál Pelbert, dois anos depois, em que se pode reencontrar a mesma expressão tanto no ultimo

O conceito de biopoder é extremamente significante para situarmos nossa proposta. A noção do “fazer viver” de Foucault - característica do biopoder -, reveste-se de suas formas principais, a saber, a disciplina e a biopolítica. A explicação delas é bem acertada na proposta de Pelbart que indica a importância de sua diferenciação.

A ideia de disciplina foi primeiramente analisada por Foucault já na obra Vigiar e punir, e pode ser encontrada no séc. XVII, surgindo nas escolas, hospitais, fábricas etc., resultando no processo de docilização e disciplinarização do corpo. Com o adestramento do corpo, a otimização de suas forças e sua integração em sistemas de controle, as disciplinas o concebem como uma máquina ou um corpo-máquina, sujeito, assim, a uma anátomo-política. Já a biopolítica, enquanto segunda forma, surgiu no século XVIII e mobiliza outra meta estratégica que seria a gestão da vida incidindo já não sobre os indivíduos, mas sobre a população enquanto população, enquanto espécie, não se centrando mais somente no corpo-máquina, mas no corpo-espécie, algo como o corpo atravessado pela mecânica do vivente, os nascimentos e a mortalidade, a proliferação, a saúde e longevidade.176

Essa tese foucaultiana tem um forte apelo, ou, ao menos, pode-se buscar antes dela para a discussão do tema em tom de apoio reflexivo, a proposta nietzschiana que analisa a tarefa colossal da época moderna, cujo caráter predominante é o técnico-científico, de fazer o homem utilizável e aproximá-lo o quanto for possível de uma máquina infalível.177

       capítulo de A vontade de saber, intitulado “Direito de morte e poder sobre a vida”, publicado em 1976, como na aula ministrada no Collège de France em março do mesmo ano, publicada posteriormente como Em defesa da sociedade. Cf. PELBART, Peter Pál. Vida capital: ensaios de biopolítica, São Paulo: Iluminuras, 2009, p. 55.

176 PELBART, Peter Pál. Vida capital, cit., p. 57.

177 Segundo Oswaldo Giacoia Junior, “esse sentido metafórico do corpo-mente-máquina constitui, a meu ver, uma das mais produtivas chaves interpretativas para compreender o sentido mais autêntico da problemática tese nietzscheana, de acordo com a qual, a despeito do irresistível predomínio do ideal democrático, a escravização permanece incrustada no seio da civilização moderna, como o abutre a dilacerar o fígado de prometeu”. GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. Sonhos e pesadelos da razão esclarecida: Nietzsche e a modernidade, Passo Fundo:

Tal tema é recorrente e extremamente atual, pois, hodiernamente as discussões de manipulações genéticas sobre o corpo humano - a moderna fabricação de corpos -, seja corpo-máquina, mas, em especial, corpo-espécie, dizem especificamente respeito à inevitabilidade das relações de poder, principalmente na inevitabilidade de se assumir a tarefa do domesticador ou

mesmo do criador seletivo por amansamento e domesticação.178

O resultado aparente deste processo pode ser pensado pelo

acontecimento das atuais pesquisas biotécnicas com embriões e genoma179,

sendo evidente que o biopoder, nesta faceta, passa a incluir em sua forma de “produções de homens” a tarefa da intervenção eugênica.

Esses termos deixam entrever, com rude evidência, o fulcro interesse da questão formulada: não teria, enfim, soado a hora em que o biopoder tivesse de incluir entre as metas estratégicas da “produção de homens” também a tarefa de intervenção eugênica no patrimônio genético da espécie, colocando em nova chance e em novo patamar de autodeterminação a antiga e tensa alternativa biopolítica entre seleção e amansamento? As atuais pesquisa biotécnicas com embriões e genoma não preconizam justamente a intervenção positiva, no sentido de uma produção tecnológica da vida, para além dos limites restritivos, determinados pelos interesse terapêutico de identificar, prevenir e/ou tratar convenientemente enfermidades geneticamente causadas, afetando indivíduos e populações?

Todo este processo centra no corpo um objeto disponível à apropriação da curiosidade científica e que tem como delimitador organizacional o direito, em especial no ponto em que hoje está centrado em discutir a temática dos direitos humanos.

       PUF, 2005, p. 189-190. Não é à toa que Foucault, no quadro geral da biopolítica e do biopoder, renova a reflexão sobre o racismo.

178 Num perfil filosófico extremamente interessante, sobre o tema, Cf. BLUMEMBERG, Hans. “Imitação da natureza”: contribuição à pré-história da ideia do homem criador in Mímesis e a reflexão contemporânea, Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2010, p. 87-189.

179 Sobre o assunto é interessante para a discussão a análise de Habermas, Cf. HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana: a caminho de uma Eugenia liberal? São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 84-91.

Isso atesta ainda mais a assertiva de Foucault ao se referir que, na modernidade, a relação do direito com o poder e, portanto, com a política.

Roberto Esposito verifica que este é precisamente o objeto da biopolítica, ao afirmar que qualquer perspectiva que se tome – que vá além da linguagem comum -, no ambiente da discussão da biopolítica, envolve o direito e apolítica, arrastando-os para uma dimensão que está fora de seus aparatos conceituais tradicionais. Este algo seria exatamente o objetivo da biopolítica.180

A ideia de uma teoria política do direito está aí, na indissociabilidade da política e do direito que, na reflexividade filosófica, são arrastados para fomentar a discussão sobre conjecturas de novas formas jurídicas, ou melhor, jurídico-políticas.

O estreitamento desta via é encontrada propriamente dizendo na relação atual entre o direito e a violência.

No contexto desta reflexão, levando em conta a projeção do desenvolvimento social e a ocorrência do bando desde os tempos primitivos, resta agora explorar a constatação de como na situação do biopoder, a vida e o Estado ganham formas específicas - jurídicas - relacionadas ao bando, além da própria noção da sacratio em que se encontram todos os homens.

3.3 Do Bando ao Apátrida: O Estado-Nação e a Salvação Paradoxal como