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2 TEORIAS SOBRE A INCIDÊNCIA DA NORMA JURÍDICA: O

2.3 Teoria declaratória

Segundo a teoria tradicional da incidência da norma jurídica, a incidência ocorreria de forma automática e infalível, no plano factual. Acontecida, no plano fenomênico, a situação prevista na hipótese normativa já operaria a incidência, instalando-se o vínculo obrigacional.

Essa teoria se enquadra nos sistemas teóricos que não distinguem planos do direito positivo e realidade social. Se entendermos dessa maneira, será necessário concluir que a incidência é um fenômeno do mundo social. Assim, ela incidiria sozinha, por conta própria, sobre os eventos, no momento em que eles ocorrem, propagando consequências jurídicas independentemente de seu relato linguístico.

Então, primeiro a norma incidiria, fazendo com que o fato se tornasse um fato jurídico, fazendo nascer direitos e deveres. Depois, ela poderia ou não ser aplicada pelo homem. Incidência e aplicação se dariam em momentos distintos.

Essa aplicação seria o ato pelo qual a autoridade competente apenas formalizaria os direitos e deveres já constituídos com a incidência. Desse modo, nada impediria que o fato ocorresse, que se tornasse jurídico com a incidência, mas que a norma não fosse aplicada, pois dependeria de um posterior ato voluntário do ser humano.

Pontes de Miranda, devido provavelmente à sua formação sociológica, procura conciliar o universo social e o universo jurídico, transitando livremente entre eles, como se fossem algo uno. Nesse sentido, anota:

O fato social é relação de adaptação (ato, combinação, fórmula) do indivíduo à vida social, a uma, duas ou mais coletividades (círculos sociais) de que faça parte, ou adaptação destas ao indivíduo, ou entre si […].

As definições de fatos científicos correm o risco de ser ontológicas. Definamos as relações, os processos; estarão, assim, definidos os fatos. […].

Toda definição do fato religioso, moral, jurídico, econômico, artístico, político e até científico, que não aluda ao processo específico da adaptação que os caracteriza, cai inevitavelmente, em ontologismo […].

Por isso, a sociedade humana difere da animal: os processos adaptativos não se efetuam somente entre atos, e sim também entre pensamentos, porque os homens são seres pensantes.13

Com suporte nessas premissas, referido doutrinador, principal referência da teoria determinista da incidência tributária, conclui sobre a necessidade de uma realidade tangível que figure como objeto do conhecimento, o qual seria posterior a ela. Ao seu ver, o universo social preexiste, sendo a base de tudo e para tudo:

No imergir na sociedade, que preexiste a ele, deforma-se o indivíduo; e como tal deformação se dá antes da formação do seu caráter, o ente não social é que é abstrato, o deformado é que é concreto e real […] as representações coletivas são apenas o nome, não sem vício de ontologismo, que se dá a fatos dos processos sociais de adaptação. […]

As sociedades são cognoscíveis, porque são reais, se bem que os nossos sentidos não apanhem tudo que é social e tenhamos de procurar outros expedientes para conhecer realidades que não são perfeitamente coextensivas à nossa sensibilidade. A exploração dos fatos sociais obedece às leis da Lógica. Não são eles incomensuráveis com os outros fatos, nem escapam a medidas e avaliações.14

13 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Introdução à Sociologia Geral. 2. ed. Rio de

Janeiro: Forense, 1980, p. 38-39. (grifos do autor).

Clarice von Oertzen de Araújo15, em aprofundado estudo sobre a obra de Pontes de Miranda, esclarece as ideias desse doutrinador sobre o conceito fundamental da incidência e a criação do mundo:

Pontes de Miranda desenvolveu um amplo modelo científico do mundo total, em que são sete os principais processos de adaptação social: a Religião, a Moral, a Arte, a Economia, a Política, a Ciência e o Direito. Dentre todos eles é o Direito o que confere maior estabilidade às relações sociais, em razão da qualidade das regras jurídicas, as quais, dentre os sete processos, são as únicas dotadas de força de incidência, em função da coercitividade que se lhes acrescenta. É em razão dessa força coativa que uma regra moral, política, econômica ou religiosa pode passar a ser jurídica, desde que tal migração se revele necessária para a evolução e a estabilidade social.

Justamente ao refutar a principal objeção oposta à realidade do Direito é que Pontes de Miranda recorre a argumentos que em muito se assemelham à conhecida máxima pragmaticista de Peirce. São palavras do jurista: “Circunscrever a realidade ao que é existencialmente determinado, criada e mantida a distinção determinação essencial e determinação existencial, é definir arbitrariamente o existente, e a propósito outras muitas distinções seriam possíveis, porque não se tomou por ponto de partida a ciência. Demais, por-se-ia a questão do concreto em termos aflitivos, hamléticos: ser ou não ser, quando, pela informação da Epistemologia e da Filosofia científica, há graus de concreção, pois que o relacional o supõe e o comprova”. […]

Ninguém nunca viu uma relação jurídica. É a maior argüição contra a realidade do fenômeno jurídico. Mas é digna da meditação dos sábios: parte de quem desconhece a Filosofia e a Ciência. Os resultados das relações jurídicas, vemo-los todos os dias: a prisão do assassino, a penhora dos bens do devedor e outros tantos fatos da vida ordinária. Há muitas outras relações de ordem universal que nunca vimos. Não queiramos considerar os nossos sentidos o juiz da existência do mundo.

Em razão desses pressupostos sociológicos, Pontes de Miranda vê a possibilidade de uma incidência que tome por base a realidade social, ainda não vertida em linguagem jurídica (evento). E a aplicação, que lhe seria posterior, tão somente serviria como formalizadora de algo que já aconteceu, exercendo função declaratória do fato e do vínculo obrigacional supostamente preexistentes.

15 ARAÚJO, Clarice Von Oertzen. Incidência Jurídica: Teoria e Crítica. Tese (Livre-Docência

Para melhor compreensão dessa teoria, podemos assim esquematizá-la: incidência = momento da ocorrência do evento;

incidência aplicação; e

aplicação é posterior = o ato do ser humano é meramente declaratório. Segundo essa corrente, conhecida como teoria tradicional da incidência da norma jurídica, a norma cai como um raio sobre todos os acontecimentos constantes na norma, qualificando-os como jurídicos e estabelecendo as consequências. Dessa forma, os direitos e deveres jurídicos nascem automaticamente, tão logo tenha ocorrido o evento descrito na hipótese normativa.