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3. Da responsabilidade do recall na lei 8.078/90

3.2 A responsabilidade objetiva das relações de consumo

3.2.1 A teoria do risco do negócio

A aplicação da responsabilidade objetiva no campo das relações de consumo, só aperfeiçoa a tese de que quem coloca o produto ou serviço no mercado de consumo deve saborear não apenas os lucros, objetivados no mundo capitalista, como também arcar os riscos e dissabores dos danos ocasionados por seus vícios e defeitos, que na maior parte das vezes implicam em uma indenização pecuniária.

Portanto, ratifique-se que, “quem introduz um risco novo na vida social deve arcar com eventuais conseqüências danosas a outrem, em toda sua integralidade” 66.

A partir desta breve análise, podemos concluir que a responsabilidade objetiva do fornecedor está inteiramente baseada na Teoria do Risco do Negócio, consoante ensina Rizzatto Nunes67:

“É preciso que se afirme esse princípio do risco com todas as letras: a decisão de empreender é livre; o lucro decorrente dessa exploração é legitimo; o risco é total do empreendedor. Isso implica que, da mesma forma como ele não repassa o lucro para o consumidor, não pode de maneira alguma repassar- lhe o risco. Nenhum risco, mesmo parcial, pode ser repassado. Ressalte-se que esse risco não pode ser dividido quer por meio de cláusula contratual, quer por meio de ações concretas ou comportamentos reais. Nem por norma infraconstitucional – por obvia inconstitucionalidade – poder-se-á transferir o risco da atividade para o consumidor”.

66 Lisboa, Roberto Senise. Responsabilidade Civil nas Relações de Consumo, RT, 2001, p. 42. 67 Idem, ibidem, p. 55.

Vejamos que o simples fato do fornecedor colocar no mercado qualquer produto ou serviço, já o torna responsável pelos danos que estes vierem a ocasionar, o que conseqüente garante ao consumidor o direito de requerer, por meio da interpretação das normas em comento, que o fornecedor efetive o recall daqueles produtos e serviços que porventura foram introduzidos com algum tipo de vício, ou que porventura os tenham adquirido após sua introdução no mercado de consumo, sem que para isso haja a necessidade da prévia comprovação da culpa do fornecedor.

A aplicação da responsabilidade objetiva,

principalmente relacionada ao recall é muitíssimo interessante, pois vejam, não resta dúvida que todo o fornecedor ao colocar seu produto ou serviço no mercado, o faz salvo raríssimas exceções, acreditando que os mesmos não acarretarão nenhum risco à saúde ou a segurança de seus consumidores, até porque, se ali estão, é por que foram admitidos no quase sempre rigoroso teste de averiguação da presença de nocividade ou periculosidade na fruição dos mesmos, ou seja, o fornecedor tomou todas as medidas possíveis ao seu alcance para que tais produtos e serviços fossem realmente adequados, não gerando nenhum tipo de risco ou dano aos consumidores. Essa sem dúvida é a regra que deve ser tomada como base de toda e qualquer produção, visto que não seria interessante ao fornecedor colocar no mercado produtos e serviços desqualificados, que só trariam prejuízos a imagem e aos cofres de suas empresas. Em suma, não há como negar que em algum momento o fornecedor agiu com imperícia, imprudência ou negligência. Todavia, como sabemos, a produção em série de determinado produto, ou a prestação reiterada do mesmo serviço, apesar de contrário à vontade de seus fornecedores, implica numa certa margem de erro, utilizando um exemplo bastante comum: em mil carros fabricados por uma montadora, ao menos cinco sairão com algum tipo de vício, seja de fácil ou difícil constatação, que poderá causar algum tipo de dano ao consumidor, nem que seja de simples inadequação.

Ratifique-se que caso as relações de consumo fossem submetidas à teoria da responsabilidade subjetiva, nem a montadora,

nem a concessionária onde estes cinco veículos foram vendidos seriam responsabilizadas, ou muito menos se preocupariam com os ônus da realização de um recall, posto que comprovadamente não teriam agido com culpa para consecução daquele dano. Nesse caso, restaria ao consumidor apenas o lamento pela má-sorte de ter adquirido justamente um daqueles cinco carros viciados, tendo doravante a arcar com todos os custos e riscos que poderiam advir daquele veículo.

A aplicação deste tipo de responsabilidade, que como podemos verificar pouco se coaduna com a atual realidade das relações de consumo, foi deixada de lado após a implantação da responsabilidade objetiva pelo CDC, a qual tem como fundamento a teoria do risco, que vincula a responsabilidade pelos fatos dos produtos e serviços àqueles que os põem no mercado, mesmo porque não é justo que o fornecedor fique com os lucros de seu empreendimento e deixe os riscos inteiramente a cargo de seus consumidores.

Assim, no caso destacado, restaria configurada a responsabilidade objetiva do fornecedor dos cinco veículos, devendo este promover as medidas cabíveis para prevenir ou reparar os danos ocasionados, ou seja, se valendo para tanto da prática do recalI.

A evolução da citada teoria do risco é explicada com bastante desenvoltura pelo Mestre Alvino Lima68:

“Estava, todavia, reservado à teoria clássica da culpa o mais intenso dos ataques doutrinários que talvez se tenha registrado na evolução de um instituto jurídico. As necessidades prementes da vida, o surgir dos casso concretos, cuja solução não era prevista em lei, ou não era satisfatoriamente

amparada, levaram a jurisprudência a ampliar o conceito da culpa a acolher, embora excepcionalmente, as conclusões das novas tendências doutrinárias”.

E continua:

“A teoria do risco tem conquistado terreno sobre a responsabilidade fundada a culpa, quer na elaboração dos próprios preceitos do direito comum, como em sua interpretação pelos tribunais, quer na legislação especial, resolvendo hipóteses que não o poderiam ser, com justiça e eqüidade, no âmbito estreito da culpa”.

A responsabilidade objetiva regrada no CDC trata-se na verdade de um dever de segurança do fornecedor para com o consumidor diante dos produtos e serviços que coloca no mercado.

Neste tipo de responsabilidade as atenções estão plenamente voltadas para a vítima do dano, e não mais para o autor do ato ilícito. Nas palavras de Lambert-Faivre69: “de uma dívida de responsabilidade evoluiu-se para um crédito de indenização”.

3.2.1.1 DA RELAÇÃO DE CAUSALIDADE

Em seus estudos sobre os fundamentos da

responsabilidade objetiva, Sergio Cavalieri70 teceu proveitosos comentários

sobre a Teoria do Risco, vejamos:

69 Lambert-Faivre, Revue Trimestrielle de Droit Civil, 1987, p. 1. 70 Idem, ibidem, p. 145.

“Na busca de um fundamento para responsabilidade objetiva, os juristas, principalmente na França, conceberam a teoria do risco, justamente no final do século XIX, quando o desenvolvimento industrial agitava o problema da reparação dos acidentes de trabalho. Risco é perigo, é probabilidade de dano, importando isso, dizer que aquele que exerce uma atividade perigosa deve-lhe assumir os riscos e reparar o dano dela decorrente. A doutrina do risco pode ser assim resumida: todo prejuízo deve ser atribuído ao sei autor e reparado por quem o causou, independentemente de ter ou não agido com culpa. Resolve-se o problema na relação de causalidade, dispensável qualquer juízo de valor sobre a culpa do responsável, que é aquele que materialmente causou o dano”.

Na parte final de seus comentários, o autor destacou um novo e relevante elemento para configuração da responsabilidade objetiva – diverso do simples fato do fornecedor ter colocado o produto ou serviço no mercado, devendo assim arcar com todos os riscos a eles inerentes – que é a chamada relação de causalidade, ou seja, o nexo causal entre defeito do produto ou serviço e o dano sofrido pelo consumidor, ou por terceiro.

Num primeiro momento pode parecer que esse novo

elemento tem o condão de enfraquecer a teoria do risco do negócio, ao introduzir mais um pressuposto necessário para a caracterização da responsabilidade objetiva, além da simples introdução no mercado de consumo pelo fornecedor de produto ou serviço defeituoso. Todavia, apesar de filiar-nos a corrente que defende a necessidade da comprovação do nexo causal entre o acidente de consumo e sua autoria, ou seja, entre a fruição daquele produto ou serviço e o defeito ocorrido, acreditamos que a identificação de quem colocou o

produto ou serviço no mercado, somada com a chamada de relação de causalidade, em nenhum momento enfraquece a teoria da responsabilidade objetiva, ao contrário, fortifica-a considerando que não restará dúvidas acerca da nocividade ou periculosidade daqueles bens de consumo.

Paulo Scartezzini71, também adverte para

necessidade da configuração nexo causal, como pressuposto da responsabilidade objetiva:

“A responsabilidade imposta pelo legislador, seguindo a orientação de diplomas estrangeiros, é objetiva, significando que não se discuti o elemento subjetivo ‘culpa’, mas tão-somente a existência do dano e o nexo causal deste com o produto utilizado ou serviço prestado”.

Conceituada a responsabilidade objetiva, e levantada à questão da necessidade de comprovação do nexo causal para configurá-la, forçando assim o fornecedor a prevenir ou ressarcir os danos causados por seu produto ou serviço, necessário agora fazermos algumas ponderações sobre a relação de tais teorias com a prática do recall no Código de Defesa do Consumidor.