• Nenhum resultado encontrado

O solitário

!

Exibido originalmente durante a primeira temporada, numa sexta-feira, 13 de novembro de 1959, com roteiro de Rod Serling, direção de Jack Smight, ele trazia Jack Warden no papel do prisioneiro James Corry. Este episódio, que poderia ser 27 considerado um “companheiro” (PRESNELL e MCGEE, 1998, p.39) de “Where is 28

Everybody?”, narra a história de um criminoso condenado que em algum futuro

indefinido cumpre 50 anos de pena por um assassinato. Nesse futuro, entretanto, não existem prisões, unidades correcionais ou serviços forçados. Pelo menos não para criminosos violentos. Eles servem sua pena em solitária vagando pelo espaço em asteróides desertos, com apenas as mínimas condições para a sobrevivência humana (atmosfera com oxigênio, gravidade igual a da Terra, etc.) e recebendo

Warden ficaria muito conhecido durante os anos 70 por suas participações em programas de TV

27

como “Brian’s Song” (1971), pelo qual ganhou um Emmy, e em filmes como “Shampoo” (1975) e “Heaven Can Wait” (1978), pelos quais fora indicado ao Oscar como Ator Coadjuvante. Em 1959 ele já aproveitava bastante fama após o sucesso de “12 Angry Men” (1957), dirigido pelo icônico Sindey Lumet, no qual interpretava um dos 12 jurados durante um controverso julgamento ao lado de astros como Henry Fonda, Jack Klugman, Ed Begley, Robert Webber e Lee J. Cobb. O filme receberia três indicações ao Oscar e diversos prêmios, incluindo um BAFTA por melhor ator e melhor filme e um Urso de Ouro em Berlin.

No original: “a companion piece”. Esse insight encontrado em Presnell e McGee (1998), em Booker

28

(2002b) e Zicree (1991), servirá-nos de importante ferramenta analítica: diversos episódios contém narrativas ou temáticas muito similares, como no caso que veremos no segundo eixo entre “And Then

the Sky was Opened” e “I Shot an Arrow Into the Air”. Esses dois episódios são o que poderíamos

chamar de versões da mesma história. Também presente entre os episódios “The Monsters are Due

on Maple Street” e “Will the Real Martian Please Stand Up?”, que veremos no terceiro eixo, esse

esparsas visitas de foguetes espaciais que trazem suprimentos como comida, água e alguns poucos minutos de conversa sobre a Terra.

!

O capitão encarregado deste setor do espaço profundo chama-se Allenby. Ele encontra Corry, como parece ser costumeiro, escondido em seu casebre improvisado ou mexendo num antigo carro que ele teria montado ao longo dos anos com peças sobressalentes que lhe eram trazidas em cada visita como aquela. O capitão lhe traz más e boas notícias. A corte para a qual Cory fazia uma apelação, para que suspendessem sua pena, não tomou ainda nenhuma decisão sobre seu caso, mesmo com o aparecimento de um movimento na Terra que acredita que esse tipo de punição, preso por anos sozinho num planeta ou asteróide distante, é muito cruel. Corry sempre tenta convencer Allenby e seus subordinados de que é inocente. “Eu matei em legítima defesa!”, ele diz. Os subordinados apenas o escarnecem e Allenby apressa a partida. A visita precisa ser curta, mesmo que Corry esteja desesperado, enlouquecendo e muito literalmente morrendo de solidão.

Para Corry apenas aquela atividade manual e mental, de reconstruir o carro modelo anos 1930, a própria existência daquele artefato do engenho humano, é o seu único contato com a realidade. “Realidade é o que eu preciso”, ele dizia contemplando o carro enquanto esperava a chegada de seus carcereiros. Nesta visita o Capitão Allenby se apieda de Corry. Talvez pela falta de uma solução para o caso legal do prisioneiro ou talvez por ele mesmo acreditar também que aquela é uma punição muito cruel. Além dos suprimentos usuais, Allenby deixa para ele uma caixa e o instrui para que somente a abra depois que ele e sua equipe tiverem deixado o asteróide. Ele também avisa Corry de que o conteúdo começará a operar automaticamente, assim que a caixa for aberta, e que se caso ele tenha alguma dúvida há um manual dentro da caixa.

!

Dentro dela Corry encontra um andróide.

!

“Você é agora o orgulhoso proprietário de um robô construído na forma de uma mulher. Para todos os efeitos esta criatura é uma mulher. Fisiológica e psicologicamente ela é um ser humano com emoções, uma faixa de memória, a habilidade de raciocinar, pensar e falar. Ela está além das doenças e sob condições normais deve ter a expectativa de vida de um ser

humano normal. Seu nome é Alicia ”. 29

!

O que Corry encontra dentro é o mesmo manequim que o piloto Ferris 30 encontrara sentado dentro de um carro e que ele imaginara ser uma mulher. É uma “mentira”, ele diz a princípio, rejeitando o “robô” (robot) (a palavra utilizada por Allenby e pelo manual que Corry lê incrédulo). Ela é a mesma mentira, a mesma ilusão que Ferris vivera, ainda que, no caso, seja mais convincente. “Eu não preciso de uma máquina!”, ele grita, rejeitando exatamente o comportamento robótico de Alicia que se apresenta e lhe pergunta o seu nome repetidas vezes de forma mecânica. Ela é um substituto e mesmo o capitão Allenby não tem certeza, afinal, do que a máquina representa: “Talvez seja uma ilusão, talvez uma salvação... eu não sei”. Ela acaba se tornando um sistema capaz de transpor a ‘barreira da solidão’ e suprir a necessidade de companheirismo que os concentrados, filmes, livros e condições essenciais para a vida humana não conseguiam.

!

Como a teoria do “Vale da Estranheza” , ele projeta na figura de Alicia a 31 verdade que seu exterior mascara e que transparece apenas no momento em que ela primeiramente se ativa: “Você goza de mim!”, ele acusa. “Por que não fizeram você para parecer com uma máquina?”, ele pergunta para a Alicia, que apenas

Em Brode e Serling (2009, p.79) o nome da andróide é referido como sendo Alisha, entretanto em

29

Wolfe (1997, p.106), Zicree (1992, p.37), Presnell e McGee (2008, p.38) e Booker (2002b, p.57) e, mais importante, em The Twilight Zone: Complete Stories, de Rod Serling (1990, p.460/1219, ebook), ela é sempre referenciada como Alicia. O erro em Brode e Serling se repete mais de uma vez (p.79, mais duas vezes e também na p.80) e o livro foi revisado e tem a participação e uma introdução feita por Carol Serling, a viúva de Rod Serling, o que deixa difícil afirmar simplesmente que se trate de um erro.

Essa facilidade em “confundir uma pessoa falsa (faux person) pela coisa real” (BRODE e

30

SERLING, 2009, p.23) reaparecerá como tema recorrente na série, em diversos outros episódios. Ou “Uncanny Valley”, no original. É uma teoria sobre robótica que dita que réplicas humanas que

31

são pouco parecidas em sua aparência e atitudes não geram desconforto e seriam facilmente aceitas pelos interlocutores ou interagentes humanos, réplicas que são muito parecidas, mas ainda não completamente semelhantes, causariam uma reação de repulsa e, finalmente, réplicas fiéis, com atitudes e aparência completamente humanas seriam aceitas imperceptivelmente. O termo se refere ao formato do gráfico estatístico a respeito da resposta de interagentes ou observadores humanos - alta aceitação, baixa aceitação, alta aceitação - e a relação que Masahiro Mori, que postulou a hipótese em 1970, deriva de um artigo de Ernst Jentsch, de 1906, entitulado Zur Psychologie des Unheimlichen (ou a Psicologia do Estranho) (disponível, em original alemão em: http://edocs.ub.uni- frankfurt.de/volltexte/2008/10095/pdf/A011300973.pdf) que também foi derivado do artigo de 1919 “Das Unheimliche” (ou simplesmente The Uncanny ou o Estranho) de Sigmund Freud (disponível, em inglês, em: http://web.mit.edu/allanmc/www/freud1.pdf). Uma apreciação mais profunda dessa hipótese de suas ramificações na tecnologia de robótica pode ser encontrada em “The Truth about Robots and the Uncanny Valley: Analysis” (disponível em http://www.popularmechanics.com/

balança a cabeça. A rejeição é a mesma esboçada na hipótese de Masahiro Mori. Alicia, como diz em seu manual, para todos os fins e propósitos é uma mulher, mas “quando percebemos que é uma prótese”, um artifício, “temos uma sensação de estranhamento” (MORI, 1970). A rejeição se torna violenta quando ela tenta tocá-lo e ele, sabendo que se trata de um robô mas sentindo o toque idêntico ao de um ser humano de verdade, pega o braço da andróide com força e a empurra para longe. “Você é como essa lata-velha!”, ele diz, empurrando-a no chão e apontando para o carro antigo. Ele segue gritando e comparando-a ao carro, mas ela se vira, o rosto molhado e os olhos mareados de lágrimas. Sua expressão é de verdadeiro sofrimento: “Eu também consigo sentir solidão”. Ela desarma Corry. Ele se ajoelha, pede-lhe desculpas, ajuda-lhe para que se levante e a conduz até dentro de sua cabana. As mãos dos dois se encontram, e como um casal perfeitamente normal, eles entram na cabana.

!

Corry se torna tão próximo de Alicia que ele a vê como “uma extensão” dele mesmo. “Eu amo Alicia”, ele escreve em seu diário e ouvimos como uma narração enquanto eles jogam xadrez com as peças improvisadas que ele construiu a partir de porcas e roldanas que sobraram provavelmente da montagem do carro. Seu olhar é apaixonado e o comportamento de Alicia é, a despeito de quase infantil, igualmente enfatuado.

!

Mas o capitão Allenby e sua tripulação retornam e trazem a notícia de que os crimes de Corry foram perdoados e que eles estão ali para levá-lo de volta à Terra, de volta à Humanidade. Corry rejeita a proposta. A nave pode levar apenas uma quantidade limitada de peso e Alicia ultrapassa esse limite (ele pode levar apenas 15 libras ou pouco menos de 7 quilos de bagagem). Ele recusa-se a deixá-la. Tenta esconde-la, grita e urge que ela fuja da tripulação da nave. Ele deseja passar o resto dos seus dias ali mesmo no asteróide com ela. Allenby corre atrás dela e, pegando sua arma, atira no rosto de Alicia, que cai imóvel. O impacto do tiro revela os fios, plástico e metal que se escondem sobre a superfície. É “um lembrete chocante de sua alteridade” (BOOKER, 2002b, p.57), seguido de um frase de efeito (como muitas outras que veremos na série): “Tudo que você está deixando para trás é a solidão”, Allenby diz enquanto Corry parece ao mesmo tempo chocado e passando por uma

epifania. Alicia nunca passou de uma máquina, ele percebe, ela é um dispositivo, um instrumento, um conjunto de programações com o objetivo final de simular um relacionamento humano. A narração final de Serling aponta para o casebre e o carro e o cadáver de Alicia:

!

“Num pedaço microscópico de areia que flutua no espaço está o fragmento da vida de um homem. Deixado para enferrujar está o lugar no qual ele viveu e as máquinas que ele usou. Sem uso, elas se desintegrarão por causa do vento e da areia e dos anos que agem sobre elas; todas as máquinas do senhor Corry - incluindo aquela feita a sua imagem, mantida pelo amor, mas agora obsoleta… na Zona do Crepúsculo”

!

O robô ou andróide colonizou à Ficção Científica nas décadas anteriores. Esse Frankenstein mecânico, partes imóveis insufladas de um tipo de vida pela programação de seu cientista criador, de seu ethos criador, geralmente são uma máquina no seu sentido lato: uma fazedora de funções, um dispositivo de performance de ação - uma ferramenta criada com uma função específica como

Imagem 07!

companheira. Ela não está ali para ajudar Corry a arar campos, construir ferramentas, abrigo ou estruturas. Seu objetivo final, a fundamentação de sua programação e do aparato mecânico que a acompanha, é servir de amiga, amante, confidente, interlocutor. É possibilitar um diálogo. Ela é um novo duplo: a máquina que surge para agora substituir não o trabalho mecânico e nem mesmo o intelectual, mas a ligação emocional que só existe entre os homens.

!

“Todos os dias e meses e anos são os mesmos”, o homem “morrendo de solidão”, Corry coloca em seu diário. A rotinização (BOOKER, 2001, p.16 e BOOKER, 2002b, p.56;) reaparece na forma de solidão repetitiva, esvaziada de sentido e ela é rompida pela presença da andróide, o Outro que dinamiza a existência. Ela é a segunda metade de um sistema que necessita de duplicidade, ela é uma Eva futura, como aquela de Villiers de L’Isle-Adam (1888). Nas palavras do próprio capitão, ela pode ser uma salvação, mas, na última frase de Corry, “preciso me lembrar de manter isso [que ela era um robô] em mente”, ela é também a sombra do que poderia ter sido. Uma máquina passível de substituir o ser humano, passível de substituir o Outro-humano para o ser humano, indistinguível.

!

De forma alguma ela é “meramente um objeto” (BOOKER, 2002b, p.57). A alegoria contém uma camada mais profunda. Mais do que alienado do mundo humano, Corry confunde Alicia consigo mesmo e com uma mulher de carne e osso: Alicia conhece “fome e sede, calor, frio e dor” - ela mesma diz que sabe o que é solidão! “Ela também pode pensar e falar” e tem a “capacidade para lealdade, paciência e bondade” (WOLFE, 1997, p.106-107). Em suma, ela se apresenta como uma pergunta direcionada à condição humana, chamando para o campo crítico aquilo que seria sua essência própria. Se aquele mecanismo, ainda que feito de fios e programas de computador, emula cada detalhe do que se espera de um ser humano comum, como podemos definir a diferença entre um e outro? Entre o sujeito humano e o objeto máquina? Como restringir essa máquina que é “calorosa e gentil” a condição de “brinquedo ou instrumento”? A profundidade de “The Lonely” permanece com a audiência ao final do episódio quando devemos nos perguntar o que faz de um humano um humano e se “instrumentos devem ter apenas valor

instrumental” (WOLFE, 1997, p.107). Será que Alicia poderia ser apenas um instrumento, a ser usado enquanto útil e descartado quando “obsoleto”?

!

O que Corry precisa se lembrar é que a situação de deslocamento que ele viveu em dois atos, um primeiro, do desespero da solidão, e um segundo, da mentira ou simulação que viveu ao lado de Alicia, é ao mesmo tempo o que o levou a alienação e o que lhe permitiu um momento de cognição. Ele chama a andróide de “mulher”. Ele a “ama". “Ele está tão alienado que não consegue se relacionar com ninguém que seja legitimamente um sujeito separado, mas consegue se relacionar com um robô, que é meramente um objeto” (BOOKER, 2002b, p.57). Porém ele também foi capaz de confrontar-se com a radicalidade da situação e derivar dela conhecimento (ou no mínimo questionamento) sobre si mesmo e sobre a condição humana. O cenário desse aprendizado é tão importante quanto os atores que encenam essa peça cautelar: essa prisão silenciosa e quente é um não-lugar em todos os sentidos. Um asteróide, que não é nem planeta, nem estrela, nem lua, é apenas um pedaço de rocha descartável, onde a máquina é humanizada e o homem desumanizado. O homem sujeito ao mais terrível isolamento e a máquina objeto de amor e companheirismo. Este distanciamento, a vida num asteróide, o anti-herói vivendo uma alienação completa através de seu isolamento físico “certamente produz estranheza, mas também torna tudo claro e vislumbrável” (BLOCH, 2005, p. 179).

!

A identidade de Corry, a ontologia de Alicia e e a utopia são desenvolvidas mas ficam, para todas as finalidades, em suspenso. Não sabemos exatamente que homem Corry fora antes de ser sentenciado aquele asteróide, não sabemos se Alicia era verdadeiramente uma incrível simulação ou incrivelmente verdadeira em seus sentimentos e, finalmente, também não sabemos se o pesadelo da solidão será revivido por outro prisioneiro ou se essa experiência ensinou a humanidade existente um modo mais sensível e essencialmente bom de vida. Ficamos apenas com a pergunta que Corry faz a si mesmo - “será que ainda posso acreditar em mim mesmo?” - e o conto cautelar do qual ela poderia perfeitamente ser o título. Esse homem genérico é esmagado pela solidão e em tamanho desespero ele perde a compreensão de seus próprios atos, seus desejos e do sentido daquilo que ele

considera que seja a boa vida. Esse episódio é uma saga sobre a perda de si mesmo através da perda dos outros.

!

!