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anos eu já tinha esse encontro com o mundo do teatro Porque o meu tio, no interior do estado do Rio, ele tinha um grupo que era de

No documento S: F AZER ES TE ATR AIS EM BR AS ÍLIA (páginas 101-107)

Com Geraldo Martuchell

Com 5 anos eu já tinha esse encontro com o mundo do teatro Porque o meu tio, no interior do estado do Rio, ele tinha um grupo que era de

Folia de Reis, então as pessoas colocavam máscaras e se fantasiavam. Tinha dias que, às vezes, ele colocava uma máscara e saia. E eu fui vendo esse trabalho, eu fui vendo como participar, como ser um artista. Por sua vez, a minha mãe tinha o dom do artesanato - mas não era uma artista plástica, era uma artesã caseira; A minha outra tia já era de bordar, fazia aqueles bordados bonitos pra vestido de noiva, pra enxoval, enfim, pra aquelas coisas todas e vendia também e a outra já fazia comida. Então era um centro de arte (quer queira, quer não) dentro da minha casa. E com isso eu fui aprendendo com eles, como apreciar essas coisas, como ver, como analisar.

Aí quando eu tinha 7 anos de idade, pintou na minha cidade um circo e fomos pro ele. (...) Esse circo me deu o primeiro ponta-pé. Eu com meus primos armávamos uma tenda, lençol, fazíamos uma cadeira, uma arquibancada... E cada qual ia fazendo envergadura, outros iam andando no arame, outros no trapézio que era uma goiabeira que tinha lá, a gente fazia o trapézio e outros faziam o palhaço. E eu, como era o mais frágil, porque aos oito anos eu peguei uma bronquite que eu tô aqui com ela até hoje - bronquite crônica mesmo, então o que eu fazia? (...) Eu cantava. Cantava músicas italianas, cantava um pouco de músicas espanholas, cantava músicas nossas tradicionais. Porque eu também fui criado junto a Francisco Alves, aquele cantor, daquela época, que a maioria de hoje não conhece mais e nem sabe quem é... Estimulado pelo universo do canto, o jovem que desde cedo adquiriu a bronquite crônica que ainda carrega, encontrou o teatro. Com efeito, uma ironia da saúde, se pensarmos que tanto no canto quanto na fala de um texto em cena, o pulmão é uma das partes mais esforçadas em qualquer artista – aliás, no áudio da entrevista, é evidente o som da sua respiração enquanto fala. Sabendo dessa condição do próprio corpo, Gê Martú procurou desenvolver a respiração pelo diafragma para não deixar de exercer suas atividades cênicas. A partir da explicação sobre sua superação de obstáculos para continuar o envolvimento com a vida artística, continuou a narração de sua trajetória rumo ao seu encontro com o teatro:

e cantava nos parques, tudo pra eu poder assistir o circo de graça. Era o show que eu tinha, eu subia lá pra cantar, era assim que eu pagava o ingresso. (...) Foi aí que então comecei a fazer teatro.

Estava com 10 anos quando participei (por 5 anos) de uma peça chamado “O Mártir do Calvário”. E alí eu tinha a oportunidade de fazer muitos papéis. Eu fazia o bom, eu fazia o mau, eu fazia o povo, enfim, foi muito bom aquilo. E foi o primeiro contato, viajava pelas paróquias perto e sem ganhar dinheiro. Porque no teatro realmente só os grandes nomes ganham dinheiro, ou os que têm alguma companhia, quem não tem, como eu, não ganha nada. A gente ganha o mínimo, aliás, nem o mínimo, ganha é um agrado. Algo para se tomar um cafezinho, tomar um choppinho e aquelas coisas todas.

Aí fui trabalhando com grupos no Rio, trabalhei com nomes de peso no Rio de Janeiro, um deles é Paulo Afonso Grisolli, isso já foi em 60 e já estava com meus 23 anos, mais ou menos. Trabalhei com Orlando Miranda, que tinha (ou ainda tem um teatro) o Teatro Princesa Isabel. Com ele comecei na rádio MEC, onde eu fazia novela de rádio e foi quando conheci o professor de teatro, que hoje tá na ativa, Orlando Macedo. Foi através dele que eu me tornei um profissional, isso com uma peça chamada “O Conselheiro”, baseada no Euclides da Cunha e com a direção dele. (...) Depois, fiz durante um ano Teatro Nô, com Luiz Fernando Sá Leal, e foi algo muito interessante e importante para meu processo de disciplina.

E já fiz figuração nos filmes da Atlântida. E ator de teatro no Rio de Janeiro, naquela época, dos anos 60, que fazia figuração era um absurdo. Não precisava ser nem figuração, bastava trabalhar em filme, se não fosse no papel de galã, era um absurdo... E ainda mais em quê?! Em chanchada!!! Quer dizer, era um absurdo mesmo!!! Mas eu fazia. Fazia porque eu gostava.

Essa colocação de Gê estimula questões: o que é um nome de peso? O que é um grande nome? Quais categorias de status, estão por detrás dessas frases? Não seria as mesmas que levavam, nessa época, à estipular que chanchada é um tipo de filme inferior àquele em que o lugar de galã é o de destaque respeitado? Ao registrar essas perguntas, não busco respostas singulares, mas desejo simplesmente evidenciar pontos que, por vezes, em nosso cotidiano, usamos sem nos

a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para história”. (1994, p.223). Assim, Benjamin nos convida a observar atores e atrizes anônimos sociais, em que suas práticas vivenciadas remetem aos comuns fazeres do cotidiano, sem adquirirem, dessa forma, algum destaque de visibilidade, mas que nem por isso, suas experiências detenham menos riquezas que precisam ser notadas pela história.

No entanto, independente dessas questões, esse relato de Gê expõe parte do porquê de sua desenvoltura frente à câmara de filmagem, durante nosso encontro. Porque nesse mesmo tempo em que ele se experienciava no teatro, envolveu-se também com a linguagem videográfica. Tendo no currículo vários registros de atuação em curtas e longas-metragens, propagandas, novelas e programação de TV – estando, entre outros, nesses dias, gravando algumas cenas do filme “Brasília 18%”, do cineasta Nelson Pereira dos Santos. Gê também aproveita para comentar que nem sempre exerceu suas atividades artísticas recebendo alguma remuneração financeira. E para apontar a conjugação de sua experiência em vídeo com outras atividades, não necessariamente acompanhadas de retorno financeiro, selecionei o trecho a seguir:

No Rio de Janeiro eu fiz 75 programas do Mobral, que era feito pela TV Tupi e pela Rede Globo, foi o meu primeiro contato com a televisão, com o meio mesmo. Também fiz alguns vídeos para a TV italiana, TV alemã, TV francesa. Isso era assim: eles me davam o texto e nele havia como se pronunciava a palavra, sem necessariamente ser com sotaque. Gravando assim, quando o filme chegasse lá e alguém fosse me dublar (...) já usava os movimentos dos meus lábios para ficar igual. Por exemplo, eu ficava falando: “eu gosto, eu amo você!”, e lá no país é “Je t’aime vouz!”, então eu já falava logo: “Je tame vu!” só na pronúncia, entendeu?!

Eu ia levando a vida assim... não tive desse privilégio de ganhar dinheiro com o teatro, com a minha arte. Muito pelo contrário. Eu tô sempre é gastando, sempre colocando dinheiro nela, tanto pra produzir, como pra dirigir, ou pra atuar. Porque às vezes você atua,mas dinheiro não vem nada. Por exemplo, me chamam pra fazer um trabalho e dizem “Ah! Mas a gente não tem dinheiro pra pagar”. Eu digo: “Tudo bem! Tudo por amor à Arte!”

Isso é comum em nós, artistas. Artistas que eu digo não são os de Artes Plásticas, nem os da Música, porque eles são muito mais honestos com a profissão deles. Porque eles não fazem nada de graça, podem até

de teatro, fazemos nosso trabalho de graça no dia-a-dia.

Nessa parte, Gê indica sua crença em relação a falta de combinados claros entre os/as artistas da área teatral. Ele acredita que, de uma maneira geral, as outras áreas artísticas são mais organizadas que as pessoas envolvidas com cênicas, entretanto, não explica exatamente o motivo pelo qual defende isso. Mas é interessante considerar que, essas questões em relação ao fato de que grupos teatrais não serem tão unidos quanto outras áreas artísticas e de que pessoas de teatro não conseguirem, em geral, se manterem por meio do próprio trabalho, também são abordadas, ainda que de maneira diferente, no próprio meio das artes cênicas, como explica o ator Humberto Pedrancini:

O nosso povo de teatro não se junta pra fazer reivindicações precisas. Porque a maioria dessas pessoas é até profissional de direito, mas não o é de fato. Elas não se organizam. Até militam nos seus sindicatos de funcionários públicos, de professores e de etc., mas acabam sendo artistas diferentes. Isso porque elas acabam que só podem ser artistas depois que batem o ponto no ministério e não existe nada mais estranho que artista funcionário público. É meio esquisito. Porque artista é libertário e funcionário público é por excelência conservador. Tanto é que nosso teatro reflete isso. Nós temos feito um teatro mantenedor do status quo, sem ousadia, sem linguagem. Conservador. Profundamente conservador. (Humberto Pedrancini, em 16/jun/2005).

Essa fala de Pedrancini homogeneíza e generaliza todo/a e qualquer servidor/a e/ou funcionário/a público sendo por excelência conservador, fazendo-nos pensar: será que por trabalhar na área pública alguma pessoa deixa de ser ousada e criativa? Será que sendo artista uma pessoa não é jamais conservadora? Uma mesma pessoa é sempre libertária ou ao seu contrário, será que independente de sua área de atuação não se pode ter posturas ambíguas comumente? Enfim, levar essa discussão adiante exigiria um momento para questionar as categorias “artistas”, “trabalho em grupo”, “organização no meio teatral”, “funcionários públicos”, “libertário” e “conservador”, todas apontadas nos trechos acima, dentre várias não apontadas como “contexto econômico do país”, “necessidade de sobrevivência com algum grau de segurança”, “política pública destinada à área” e outras mais. Afinal, os possíveis sentidos das representações perpassados nessas palavras indicam que o contexto merece atenção cuidadosa para não se limitar a análises de senso-comum.

Todavia, não desejo adensar essa discussão, a coloquei em evidência para que o/a leitor/a possa também se questionar e descristalizar determinadas perspectivas que por vezes são repetidas e propagadas, sem contudo, serem discutidas e arejadas em seus sentidos de significados. Gê

divergências conseguiram (e ainda conseguem) ao longo desses anos, em Brasília, realizar suas experiências cênicas e suas interferências sociais.

Essas tensões em forma de modos plurais de encarar o cotidiano teatral, apontadas por esses dois atores-diretores, Gê e Pedrancini, nas falas acima, enriquecem essa temática em torno de hábitos, regras e éticas que permeiam os grupos artísticos, sejam esses de músicos, pintores e/ou de grupos cênicos em geral. Pela divergência, noto que alargamos horizontes e possibilitamos canais de diálogos constantes para se pensar nos possíveis desdobramentos desse ser mais “honesto” consigo mesmo, como sugere Gê, ou desse saber fazer “reivindicações precisas” para que o grupo teatral se articule com mais agilidade, como afirma Pedrancini.

Aliás, ressalto que essas duas falas têm raízes nas trajetórias de vida de seus autores. Gê relacionou-se com o meio teatral, sendo servidor público até aposentar-se. Pedrancini desenvolveu seu fazer cênico sem nunca ter sido funcionário do quadro público. O processo de experiência de vida de cada um deles faz com que acreditem num melhor modo de se relacionarem com a área teatral e ao evidenciar isso não trato de atribuir algum juízo de valor sobre um ou o outro, devido aos caminhos que escolheram, ou de tentar diminuir a tensão que existe entre esses dois modos, mas de registrar e questionar duas situações presentes nos fazeres de artistas teatrais em Brasília. Notar suas existências, discutir elementos que as produzem e as mantêm é abrir possibilidades de uma interpretação de como elas proporcionam (ou não) algum impacto no fazer da área.

Assim, assumindo a experiência que lhe compete e com seu modo particular de pensar, Gê não gosta de se classificar como pertencente a algum lugar específico, explica que:

por exemplo, eu também não sou brasileiro, eu sou do mundo, eu sou universal! Porque nós somos é humano! (...) A gente é do mundo, a gente não é só do local. (...) Eu vim do Rio pra Brasília. E aí, eu sou brasiliense? Eu sou brasiliense! Sou, enfim, do Brasil todo.

Mesmo se sentindo pertencente a vários lugares do mundo, foi só em Brasília que ele recebeu prêmios por seu trabalho. No jornal “Quadra a quadra”, que era distribuído gratuitamente em todas as bancas do DF, em 1992, há o registro de seu prêmio na atuação de “Bella Ciao”. Diz o artigo:

“A peça ‘Bella Ciao’, que tem Gê Martú e Lucinaide Pinheiro nos papéis principais e mais 12 atores, volta a cartaz no dia 3 de abril. (...) ‘Bella Ciao’ foi uma das peças mais destacadas da temporada de teatro de 1991, em Brasília. No período em que ficou em cartaz, ela foi vista

e, além de Gê Martú, ganhou ainda os prêmios APAC de melhor espetáculo, melhor direção, melhor fotografia e a Oficina Perdiz, onde foi apresentada, foi premiada como o melhor espaço alternativo... (...) O Prêmio APAC não é o primeiro de sua vida. Em 78, foi premiado como ‘Personalidade do Ano’, pela atuação nas peças ‘Monstro Besta Fera como saiu nos jornais’, ‘A Invasão’, ‘A Guerra mais ou menos santa’e ‘Eles não usam black tie’. As interpretações valeram-lhe, ainda, o prêmio da crítica”. (QUADRA A QUADRA, 1992, p.8-9).

Tive acesso a essa reportagem por meio do acervo pessoal do próprio Gê, que faz questão de guardar tudo o que é publicado a seu respeito, dando assim respaldo ao seu currículo.

Esse homem, que foi aluno ouvinte de Dulcina de Moraes, no Rio de Janeiro, e que mostrou veementemente, durante nossa conversa, seu lado cosmopolita, deu exemplos de seus gostos que nos ajudam a perceber melhores detalhes do universo de sua particularidade. Por suas preferências musicais perpassam Dinah Washington - a ‘rainha do Blues’-, as músicas orquestradas tocadas atualmente na rádio Super-Brasília FM, Francisco Alves, de Orlando Silva, Caubi Peixoto, Ângela Maria, Emilinha e Marlene, Nora Nei, Leila Pinheiro, Elis Regina e outros nomes mais. Na gastronomia, Gê enfatiza que é uma pessoa simples, cultivando hábitos do tradicional prato brasileiro, constituído por feijão com arroz e salada, mas trocando a carne vermelha pela soja. Na literatura, aprecia livros de aventura e de ficção, assim como tem nos últimos tempos se detido a compreender melhor as obras de Guimarães Rosa, apaixonando-se cada vez mais por elas nesse exercício.

Nessa direção plural também caminha sua opinião sobre o papel do ator e seu espaço de atuação, porque para ele ator não é só de teatro. Ele é de cinema, de televisão, é da praça, é de qualquer lugar. É arte! O ator é aquele artista. Ele tem aquele personagem, encara a vida com aquele personagem que você quer ser naquele momento. Sendo necessário cultivar, para desenvolver esse papel, a garra, a paciência, a persistência e, acima de tudo, a disciplina em seu cotidiano. Gê enfatiza essas dicas, em especial para quem está e/ou deseja começar a carreira e/ou deseja permanecer nesse mundo teatral. Afinal, foi seguindo esses mesmos conselhos que ele pôde afirmar com segurança ao ator Sérgio Britto, em uma entrevista ao jornal Correio Braziliense: tenho orgulho de ser artista. Mesmo porque há muitas formas de sucesso, nessa profissão. (CALDAS, 2003, p.6).

No documento S: F AZER ES TE ATR AIS EM BR AS ÍLIA (páginas 101-107)