• Nenhum resultado encontrado

4.2 A Mathesis Universalis numa Perspectiva Histórica

4.2.4 Três Aspectos Históricos da Mathesis Universalis

A mathesis universalis seria a ciência capaz de garantir “a harmonia ao invés da controvérsia, a certeza ao invés da incerteza, a evidência ao invés da obscuridade”. Segundo Knobloch (2004), existem cinco aspectos importantes na história que caracterizaram a criação de um conhecimento universal. Descreverei somente os três que considero mais importantes para este trabalho.

O primeiro diz respeito ao papel da dialética. “A dialética é a pedra angular das disciplinas matemáticas, (...) especialmente da aritmética e da geometria”81. Knobloch (2004) afirma que Platão, na Republica (534e) – onde o filósofo diz que a dialética ocupa o lugar supremo nos estudos – mostra que a dialética ocupa o lugar de uma ciência comum a todas as demais ciências, inclusive entre as matemáticas. O filósofo neoplatônico Proclus, do mesmo modo que Platão, querendo buscar os fundamentos para as ciências, escreveu um comentário ao quinto livro dos Elementos de Euclides. Tal comentário exerceu grande influência nas discussões sobre a mathesis universalis nos séculos XVI e XVII.

“Proclus mostrou que existe uma ciência unitária que é prioritária em relação

ϳϵ

4. AS MATEMÁTICAS PURAS

às demais ciências matemáticas. A função dessa ciência geral (...) é o pensamento dianoético, isto é, o pensamento imaginativo e discursivo... De acordo com ele, a proporção não é um vinculo unificador das ciências matemáticas, embora ela seja uma das características comuns de todas as matemáticas. Ela é, de fato, somente uma das muitas características que são permeantes e intrínsecas à natureza comum da matemática”82 (KNOBLOCH,

2004, p. 78, tradução nossa).

Para Proclus deve haver uma ciência que possua princípios comuns que sejam capazes de englobar cada uma das ciências matemáticas particulares. Esta ciência matemática universal é maior do que a dialética, A dialética aperfeiçoa a mathesis

universalis e a envia para o intelecto (nous) por meio de seus princípios peculiares

mostrando-se verdadeira e irrefutável. Alguns dos princípios comuns de uma matemática universal enunciados por Proclus são: o limitado e o ilimitado, a semelhança e a dessemelhança, a igualdade e a desigualdade, a harmonia e a desarmonia. Tais princípios são dependentes entre si. Proclus também descreve a importante contribuição da matemática para a filosofia, e alguns ramos particulares da ciência, como a teologia, as ciências físicas, a política e a filosofia moral (KNOBLOCH, 2004, p. 78).

O segundo aspecto se refere ao conceito de arte geral que se originou com Raimundo Lúllio. “Em 1296, Lúllio escreveu sua Arbor Scientiae, obra na qual dezesseis ramos representam dezesseis ciências selecionadas de acordo com critérios psicológicos, teológicos, físicos e lógicos”83 (KNOBLOCH, 2004, p. 80, tradução nossa).

“A lógica pode servir como um instrumento daquela ciência universal por meio da qual todas as proposições verdadeiras podem ser produzidas em um caminho mecânico. A concepção de lógica combinatória exerceu grande influencia nos séculos seguintes até o tempo de Leibniz”84 (KNOBLOCH, 2004, p. 79, tradução

nossa).

A classificação não foi o aspecto principal da enciclopédia de Lúllio, mas sim a ideia de unidade de todas as ciências, ilustrada pela metáfora de uma árvore. Nicolau de Cusa (1401-1464) e Althanasio Kircher (1601-1680) foram importantes disseminadores das ideias de Lúllio no século XVII, eles afirmavam que toda demonstração qualitativa é reduzível a uma demonstração quantitativa, uma proporção mensurável.

82 “Proclus showed that there is a unitary Science which is prior to the several mathematical sciences. The function of this

general mathematics (...) is dianoetic thinking, that is imaginative and discursive thinking (...). According to him, proportion is not the unifying bond of the mathematica sciences though it is one of the features common to all mathematics. Is it, indeed, only one of many characteristics that are all-pervading and intrinsic to the commom ature of mathematics”.

83 “In 1296 Lull wrote his Tree of science whose sixteen branches represented sixteen sciences selected according to

psychological, theological, physical, and logical criteria”.

84 “Logic should serve as na instrument of that universal Science by means of which all true propositions could be

produced in a mechanical way. The concepción of logical combinatorics exerted great influence in the following centuries up to the time of Leibniz”.

ϴϬ ACLASSIFICAÇÃO DAS DISCIPLINAS MATEMÁTICAS E A MATHESIS UNIVERSALIS NOS SÉCULOS XVI E XVII

“De fato, a combinatória como peculiaridade da escola lullística não pode ser separada da ideia de uma matematização universal do ser. Em sua Universal Musical Art ou Great Art of Consonance and Dissonance, Kircher identificou composições musicais com combinações de notas e aplicou isso a filologia, matemática, física, mecânica, medicina, política, metafisica, teologia”85

(KNOBLOCH, 2004, p. 80, tradução nossa).

Kircher mostrou as noções fundamentais de seu alfabeto da arte que deveriam conter o núcleo do conhecimento humano. Descartes rejeitou estas ideias e, segundo Knobloch, pelo menos três ideias cartesianas devem ser lembradas, pois ocorrerão novamente em Leibniz: (i) O modelo de uma ciência universal como analógica e combinatória; (ii) A grande arte humana ou a ciência universal como uma imitação da arte divina; (iii) A linguagem universal como um instrumento adequado da ciência universal (KNOBLOCH, 2004, p. 81).

O terceiro aspecto se refere à razão humana. Descartes discutiu a noção de mathesis

universalis na sua quarta regra e admitiu que ele estava usando uma expressão usada

tradicionalmente. Knobloch fala brevemente da possibilidade de Descartes ter se baseado em van Roomen, mostrando que van Roomen pode ter sido “o primeiro a formular e a descrever um conceito racional de método no moderno sentido para a palavra racional”86 criando uma nova disciplina filosófica. A ciência universal descrita por van Roomen (e que detalharemos mais abaixo) buscava as propriedades comuns a todas as quantidades, se fundamentando na teoria das proporções de Euclides. Knobloch mostra que no século XVI, duas ideias de ciência universal conviveram juntas:

“1. A concepção ordenada hierarquicamente de acordo com Proclus, Roomen, Dasypodius na qual a matemática universal está acima de todas as outras disciplinas matemáticas, ou “protheoria mathematica”.

2. A concepção enciclopédica de acordo com Alsted, Voss, Luneschlos na qual a matemática universal está lado a lado com as matemáticas especiais, isto é, com as diferentes disciplinas e subdisciplinas matemáticas”87 (KNOBLOCH, 2004,

p. 82, tradução nossa).

Knobloch entende que Descartes buscava nas Regras para a Direção do Espírito uma “matemática universal”, mas em seu Discurso sobre o Método uma “ciência universal”. A matemática universal descrita inicialmente serviria como instrumento para a ciência universal, pois a matemática universal era uma espécie de arte da invenção

85 “And indeed, combinatorics as peculiarity of Lull-school cannot be separated from the idea of a universal

mathematization of being. In his Universal musical art, or great art of consonance and dissonance (1650) Kircher identified musical composition with combination of notes and applied it to philology, mathematics, physics, mechanics, medicine, politics, metaphysics, theology”.

86 “...the first to formulate and describe a rational concept of method in the modern sense of the word rational...”

87 “1. The hierarchically ordered conception according to Proclus, Roomen, Dasypodius where universal mathematics

ranks above all other mathemtical disciplines, as ‘protheoria mathematica’,

2. the encyclopedic conception according to Alsted, Voss, Luneschlos where universal mathematics ranks side by side with special mathematics that is with the different mathematical disciplines and subdisciplines”.

ϴϭ

4. AS MATEMÁTICAS PURAS

combinando a intuição e a dedução, a análise e a síntese, o antigo método analítico da geometria com as coisas gerais, o método de solução operacional da álgebra, etc. (KNOBLOCH, 2004, p. 83).

Os outros dois aspectos dizem respeito à concepção leibiniziana de mathesis universalis que já recebeu outros nomes e configurações diferentes daqueles abordados por van Roomen e Descartes. Em um trecho de Leibniz, ele escreve que:

“A ciência geral não é outra coisa senão a ciência do todo. Ela não só compreende a lógica, até então predominante, mas também a arte da invenção, o método de colocar em ordem, a síntese e a análise, a ciência do ensino, a chamada teoria da cognição, a teoria da razão, a mnemônica, a teoria dos signos (ars caractheristica), a arte combinatória, a arte da inteligência, a gramática filosófica, a arte Lullistica, a cabala dos magos, a magia natural, talvez também a ontologia”88 (LEIBINIZ, 1999, p. 527 apud KNOBLOCH,

2004, p. 83).

***

Sasaki nos mostra que há uma distinção, embora não seja unânime, entre a interpretação da obra aristotélica durante a Idade Média e nos séculos XVI e XVII. Vê-se que predomina durante o medievo, a ideia de que só poderia ser considerada uma ciência universal a metafísica ou a teologia. O mais provável é que a influencia religiosa sobre a ciência tenha ajudado a predominar esta concepção. Já nos séculos XVI e XVII, a matemática passa a ter esse papel de universalidade, inclusive no pensamento de van Roomen, conforme descreverei mais abaixo.

Contudo, em minha opinião, a discussão trazida por Sasaki pode tirar a originalidade do pensamento de van Roomen e de outros autores dos séculos XVI e XVII. A pensamento de tais autores, mesmo tendo base na filosofia aristotélica, não está intimamente ligada à ela, mas sim buscam mostrar a existência de uma matemática universal ou um conhecimento universal que tem por base a dita certeza produzida pela aritmética e pela geometria. Van Roomen, Descartes e outros autores mostram que não existem ciências que produzem conhecimento mais certo e correto do que estas duas, porém elas podem servir de base para a criação dessa tala mathesis universalis que daria conta das demonstrações das demais ciências matemáticas.

88 “General Science is nothing else but the science of all that can be thought of on the whole such. It does not only

comprehend the hitherto prevailing logic, but also the art of invention, the method of putting in order, synthesis and analysis, the science of teaching, the so-called theory of cognition, the theory of reason, mnemonics, sign theory (ars characteristica), combinatorial art, the art of intelligence, philosophical gramar, Lullistic art, the cabbala of wise men, natural magic, perhaps also ontology”.

ϴϮ ACLASSIFICAÇÃO DAS DISCIPLINAS MATEMÁTICAS E A MATHESIS UNIVERSALIS NOS SÉCULOS XVI E XVII

Antes de finalizar esta seção, é importante dizer que, durante os séculos XVI e XVII, havia uma distinção entre os termos mathesis universalis e universa mathesis. O primeiro, mathesis universalis, era utilizado para denotar uma disciplina comum a todas as matemáticas, ou seja, uma ciência que serviria de base para todas as ciências, como van Roomen busca mostrar ao tratar da prima mathesis. Já o segundo, universa mathesis, era utilizado para expressar o conjunto das disciplinas matemáticas como um todo, e talvez seja este o motivo do título das obras de 1602 e de 1605 de van Roomen, Universae

Mathesis Idea e Mathesis Polemica, respectivamente (SASAKI, 2004).