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Há algo que se configura, que ganha forma e sentido para quem vive essa “realidade” do ELN, e para quem, como eu, aproxima-se dela. Resulta de uma identidade diferenciada denominada por seus próprios militantes como o ser eleno, ou ser parte das três letras: E-L-N, ou ser “vermelho e preto” como as cores de sua bandeira; uma identidade que carregam com orgulho e que fala de algo íntimo, de sua história, de suas vivências, de seus ideais e de tudo o que envolve seu projeto de vida. Esses militantes se tornaram, por assim dizer, parte desse universo de significados e de relações, a ponto de, para a maioria deles, ser muito difícil pensar-se fora da organização. Esse foi, provavelmente, um dos aspectos que mais me impressionou no contato com esse universo social, porque era um sentimento forte que se expressava nos distintos âmbitos, em sujeitos de diferentes procedências e subjetividades. Era, em última instância, algo que os integrava, que os irmanava, apesar das diferenças e das distâncias; era o que os fazia sentir-se parte de, e, de fato, manter o grupo como tal. Poderia seguir tentando descrever esse sentimento, esse “algo” intangível e poderoso que os une, mas, justamente, nesse ponto, repousa a riqueza da etnografia, na possibilidade de poder trazer, através do contato com o outro, aquelas formas singulares de construção subjetiva. Por essa razão, permito-me extrair algumas citações de meu diário de campo onde recolhi várias dessas impressões que me levaram à presente reflexão:

Mane era una de las personas que más me llamaran la atención entre ese grupo de guerrilleros. Un mando medio, de origen costeño, con una simpatía sin igual, siempre dispuesto a ver la parte chistosa de las situaciones. No tendría más de 35 años e llevaba vinculado a la organización más de la mitad de su vida. Hablamos bastante, me contó buena parte de su historia, de su pueblo natal donde se crió y donde se vinculó con la guerrilla. Le pregunté sobre los motivos que lo llevaron a unirse con este grupo y él me dijo que: “de mi pueblo salimos muchos guerrilleros, allá se volvió una dinámica, una cultura, el ELN dominaba por los años 1980 esa región. Yo ingresé un poco por eso, sólo años más tarde vine a comprender la profundidad de mi decisión, la magnitud del compromiso que se adquiría. Mi madre, por ejemplo, me dijo: ahora si hijo, toca que asuma ese compromiso y lo cumpla. Esas palabras todavía me resuenan. También está el honor: uno piensa si los más cobardes han podido, porque que yo no voy a poder, como voy a regresar? Que van a decir? Que no fui capaz, que soy un cobarde, que fracasé. Entonces, dentro de la guerrilla el mundo cambia, uno se comienza a adaptar a esta vida, a compenetrarse, hasta que resulta ser su vida, su familia, sus afectos, por encima, incluso de la propia familia”. Después de dialogar bastante sobre su vida en la guerrilla le pregunté acerca de cómo se imaginaba su futuro, si se pensaba fuera de la organización y cómo sería, y él muy circunspecto, calló por un momento y contestó: “Yo cumplo con la consigna de este proyecto de vida hasta cuando muera. Hasta hoy nunca me

he sentido arrepentido, aunque por mi forma de ser he tenido oportunidades afectivas y monetarias de irme, y sin embargo, no he tentado. Con una de mis compañeras me pasó eso, que ella quería que nos fuéramos para la casa, yo le decía que voy a hacer con el problema de seguridad y que voy a hacer si nunca he pensado un hogar, en un hogar guerrillero sí, que aquí vivamos las pasiones y los momentos, si hay un segundo, o un minuto, o una hora, tratemos de vivirlo bien porque después que estemos lejos o nos toque salir para otro lado vamos a darnos cuenta de lo que nos hizo falta vivir. Sé que cada eleno tiene un ciclo por la edad, por enfermedades, pero en esta organización hay que buscar mecanismos para seguir contribuyendo, porque no sólo es eleno el que carga un fusil, hay muchos compas que nunca han cargado una arma y son muy convencidos, son más elenos que muchos otros que si las han cargado. Digo que mañana que cuando cumpla un ciclo de vida por enfermedad, o por quedar lisiado, o por vejez, buscaría otro espacio de lucha donde uno siga contribuyendo al proceso, porque yo digo: que va a hacer uno pa’ fuera? En esta organización hay mucho espacio, ser eleno no es sólo el del fusil, el que anda trochando, si en algún momento tomamos el poder por vía política tendremos mucho donde aportar” (Diário de campo)103.

A posição de Mane, semelhante à da maioria dos guerrilheiros que estão na zona rural, parecia-me uma postura lógica para quem vive no campo, na completa clandestinidade e cujo universo social se limita ao espaço da guerrilha. Nessas circunstâncias é compreensível que a organização tenda a se engrandecer, tornando-se seu todo, sua família, sua razão de vida, seu

103 Mane foi uma das pessoas que mais me chamou a atenção entre esse grupo de guerrilheiros. Um comandante

mediano, do litoral, com uma simpatia única, sempre disposto a ver a parte engraçada das situações. Não tinha mais que 35 anos e estava vinculado à organização mais da metade de sua vida. Falamos bastante, contou-me boa parte de sua história, de seu povoado natal onde se criou e se vinculou à guerrilha. Perguntei-lhe sobre os motivos que o levaram a unir-se com o grupo e ele me disse que: “de meu povoado saíram muitos guerrilheiros, lá se desenvolveu uma dinâmica, uma cultura, o ELN dominava pelos anos 1980 essa região. Eu ingressei um pouco por esse motivo, e apenas anos depois compreendi a profundidade de minha decisão, a magnitude do compromisso que adquiria. Minha mãe, por exemplo, me disse: agora sim, é preciso que assumas esse compromisso e o cumpra. Essas palavras ainda me soam na mente. Há também a honra: a gente pensa que se os mais covardes conseguiram, porque que eu não irei conseguir, como vou regressar? O que irão dizer? Que eu não fui capaz, que eu sou um covarde, que fracassei. Então, na guerrilha, o mundo muda, a gente começa a se adaptar a esta vida, a se envolver, até que se torna sua vida, sua família, seus afetos, acima, inclusive, da própria família”. Depois de dialogarmos bastante sobre sua vida na guerrilha, lhe perguntei acerca de como ele imaginava o futuro, se pensava sair da organização e como seria, e ele, circunspeto, calou por um momento e contestou: “Eu cumpro com a insígnia deste projeto de vida até a morte. Até hoje nunca me arrependi, e embora por minha forma de ser tenha tido oportunidades afetivas e monetárias de ir-me embora, nunca me interessei. Com uma de minhas companheiras ocorreu isso, pois ela queria que nós fôssemos para casa, e eu lhe dizia que vou fazer com o problema da segurança e se nunca pensei num lar, num lar guerrilheiro sim, pois aqui podemos viver as paixões e os momentos, mesmo que seja por um segundo, ou um minuto, ou uma hora, mas tratemos de vivê-lo bem porque depois que estejamos longe ou saíamos para outro lado, vamos nos dar conta do que nos faz falta viver. Sei que cada eleno tem um ciclo pela idade, pelas doenças, mas nesta organização é preciso buscar mecanismos para seguir contribuindo, porque não apenas é eleno aquele que carrega um fuzil, há muitos companheiros que nunca carregaram uma arma e são muito convencidos, são mais elenos que muitos outros que carregaram. Digo que amanhã quando cumpra um ciclo de vida por doença, ou por invalidez, ou por velhice, buscaria outro espaço de luta onde pudesse seguir contribuindo com o processo, porque eu digo: o que a gente vai fazer fora daqui? Nesta organização há muito espaço, ser eleno não é apenas carregar o fuzil, seguir em marcha, pois se em algum momento tomamos o poder pela via política teremos que contribuir bastante.

presente e seu futuro, a ponto de, por exemplo, o assunto do atual processo de negociação com o governo colombiano que pode terminar no desarme e, portanto, na desintegração da guerrilha como tal, ser um tema praticamente proibido nesse espaço, que não se abordava, que parecia ir numa dimensão distinta à de sua própria realidade, sobretudo, para aqueles militantes que têm permanecido ali uma boa parte de sua vida. Não obstante, o que o trabalho de campo permitiu observar é que esse forte sentido de pertença ao ELN também estava presente nos militantes urbanos, assim como se pode ver no seguinte testemunho de Renso, docente e sindicalista, que leva uma vida laboral e social relativamente “normal” e integrada ao conjunto da sociedade. Porém, para ele, a organização representa sua “verdadeira família”, seu espaço vital de socialização e de identidade:

Con un estilo pausado de quien ya ha recorrido bastante en la vida, Renso, un viejo militante “eleno”, me contaba su experiencia en la organización y las razones que lo mantenían “atado” a ella. Después de una larga pausa me dijo: “hay un elemento que juega ahí, por lo menos en mi persona, son los únicos amigos que he tenido, que han compartido conmigo los espacios de la vida, esos son mis amigos. En ellos confío plenamente, que están o no están, pero que permanecen, es como una marca, es una impronta del “eleno”. Lo que permanece, fundamentalmente, es el haber creados lazos, lazos profundos, afectivos. En este momento considero que mis amigos son los que han sido y siguen siendo elenos, uno los descubre sin querer, los encuentra, el sólo encontrarse ya es cercanía, porque he encontrado gente que ha estado en la organización, que no han estado conmigo, que han estado antes o después, pero, con los cuales uno desde el comienzo entra en una empatía especial, en una relación distinta. Creo que eso es lo que hace que uno permanezca en este proyecto… en últimas, me parece que es un elemento vital, de permanencia, de futuro” (Diário de campo)104.

Na realidade, existe certa dificuldade de ver essa dimensão que une os militantes urbanos, em razão das redes e das relações que se tecem entre eles serem mais encobertas, mais “ocultas”, como medida de proteção ante as condições de insegurança da cidade. Mas, logo depois de ganhar alguns níveis de confiança e proximidade, é possível ver que, apesar deles estarem imersos em distintos ambientes sociais, também vivem numa espécie de “ilha afetiva” com

104 Com um estilo pausado de quem já percorreu muito na vida, Renso, um antigo militante “eleno”, contava-me

sua experiência na organização e as razões que o mantinham “atado” a ela. Depois de uma longa pausa me disse: “há um elemento importante aí, pelo menos para mim, são os únicos amigos que tive, que compartilharam comigo os espaços da vida, esses são meus amigos. Neles confio plenamente, os que estão ou não, mas que permanecem, é como uma marca, é um carimbo do “eleno”. O que permanece, fundamentalmente, é ter criado laços, laços profundos, afetivos. Neste momento considero que meus amigos são os que foram e seguem sendo elenos, nós os descobrimos sem querer, os encontramos, e o fato de encontrar-se já é uma aproximação, porque encontrei pessoas que estiveram na organização, que não estiveram comigo, que estiveram antes ou depois, mas, com os quais a gente desde o começo entra numa sintonia especial, numa relação distinta. Acredito que isso é o que faz com que nós permaneçamos neste projeto… enfim, me parece que é um elemento vital, de permanência, de futuro.

respeito à organização e às relações sociais que se criam a partir dela. Essa é uma singularidade que se origina do fato de “ser eleno”, uma vez que a militância envolve todas as dimensões de sua vida, sua perspectiva de trabalho, seus planos, seus sonhos, suas atividades, seu tempo livre que, na realidade, está comprometido com os desígnios da organização. Desse modo, boa parte de sua vida social e afetiva se desenvolve em torno das redes que se formam entre eles, seus companheiros e seus filhos, chamados entre si de “tios” e “primos”, e em cujo contexto predomina o sentimento de solidariedade e familiaridade, tal como descreveu Renso. Isso significa que, de forma semelhante ao espaço rural, os militantes urbanos formam entre si importantes vínculos sociais através dos quais se configura (e atua) a organização.

Esse sentido de identidade é um distintivo fundamental dos sujeitos que têm uma militância ativa com a organização, seja no espaço rural ou no urbano. Inclusive, pude constatar ao longo desta pesquisa que essa construção identitária é tão forte e arraigada que a maioria dos indivíduos que se desvinculam, terminam ficando no ar, numa espécie de limbo social, uma vez que não se sentem de lá, mas tampouco conseguem integrar-se verdadeiramente a outros espaços sociais. Não se sentem de nenhum lugar, pois é bastante acentuado o sentimento de estranhamento que expressam pelo que fazem e pelos novos papéis que agora representam, e, igualmente, descartam (em sua grande maioria) a possibilidade de retornar. É uma posição bastante ambígua, evidenciada, por exemplo, na duplicidade de sua vida pública, na que devem fazer negação e/ou ocultar seu passado pelas implicações políticas que isso traz consigo, e de sua vida íntima, na qual continuam ligados com esse universo eleno de distintas formas. Isso, especialmente na dimensão afetiva, pois entre suas relações mais próximas prevalecem aquelas com quem tiveram maior proximidade ao ELN (sejam ex-militantes e, incluso, militantes). Mas também em sua memória, na forma como vêem a si mesmos em relação a essas vivências passadas tão marcantes em suas vidas e que recriam de distintas formas, seja nas referências iconográficas que mantêm (imagens, objetos simbólicos), na música que escutam, nos temas que falam, e que, no conjunto, seguem exercendo um papel importante em sua forma de ser e de pensar. Além das identificações ideológicas que muitos desses ex-militantes seguem professando pela organização e que, segundo os dados da pesquisa, parecem ser ainda mais fortes no caso dos ex-militantes de origem camponesa, há o exemplo de uma ex-guerrilheira que, diante de certos problemas de segurança, foi viver na cidade, onde conseguiu estabilidade de trabalho e permanece com a família, embora sinta um profundo nexo com esse projeto político e de vida, como se pode apreciar no seguinte depoimento:

Desde hace nueve años vive en la ciudad grande, huyendo de serios problemas de seguridad. No obstante, la nostalgia la embriaga permanentemente, ella dice que espera y sueña con el momento en que la organización la busque. Incluso, en las tardes, cuando regresa de su trabajo y mira para los cerros, se imagina estar caminando allá, con la guerrilla. “Yo todavía me siento en ese mundo, quiero mantenerme en una cuestión más colectiva aquí en casa, yo tengo mi disciplina. Para mí lo primero es lo colectivo y me gusta estar así. En la organización uno ve una alternativa, claro que ahora no hay una propuesta clara, no hay una propuesta para la misma gente, a mí, por ejemplo, me dejaron suelta. Mi amigo, también ex militante de la organización, me dice que no se debe esperar, él dice: “vos sabes que hay que hacer, que estás esperando? En este momento cada cual hace lo que puede hacer, después se mirará como articular esos trabajos”. Conmigo hay mucha gente suelta, cada cual está haciendo, porque es cierto que un eleno deja la huella donde quiera que está, así este solo, pero uno se va reproduciendo, y yo me ido encontrando con gente, y algunos me dicen que con la organización no quieren nada, pero dicen: “que hay que hacer”. Yo digo que me van a mandar llamar, ese es mi pensamiento, si me llaman yo tengo que ver que me van a proponer. Todo el tiempo pienso en eso (Diário de campo)105.

Claro que o nível de apego à organização está estritamente relacionado à subjetividade do indivíduo em questão. Assim, para os ex-militantes de origem camponesa, esse apego parece ser mais forte à medida que a organização representou boa parte, senão a totalidade, de sua vida social, o seu “mundo de referência”, onde a maioria deles cresceu, tornando-se, assim, um assunto vital, abrangedor. No caso dos citadinos, e especialmente o setor de intelectuais, a organização é vista de maneira muito mais crítica, ao questionarem o sentido de pertinência desta, de ser vista como “a proposta de luta revolucionária”: - “agora acho que, talvez, a saída não está nisso, que para ser revolucionário não é preciso pertencer a uma determinada organização, pois desde o lugar em que se está, pode-se ter uma atitude revolucionária e contribuir” –. Por outro lado, neles tampouco se apaga essa ambigüidade em suas vidas, esse sentido de estar “sem lugar”, de não se sentir identificados com os novos contextos onde se

105 Já faz nove anos que ela vive na cidade grande, fugindo de sérios problemas de segurança. No entanto, a

saudade invade-a permanentemente, ela disse que espera e sonha com o momento em que a organização a procurará. Inclusive, nas tardes, quando regressa de seu trabalho e olha para os morros, imagina estar caminhando lá, com a guerrilha. “Eu ainda me sinto nesse mundo, quero manter-me numa questão mais coletiva aqui em casa, eu tenho minha disciplina. Para mim, em primeiro lugar vem o coletivo e eu gosto de estar assim. Na organização, alguém vê uma alternativa, claro que agora não há uma proposta clara, não há uma proposta para todos, a mim, por exemplo, me deixaram fora. Meu amigo, também ex-militante da organização, disse-me que não se deve esperar, ele disse: “tu sabes que tem que fazer, o que estás esperando? Neste momento cada um faz o que pode fazer, depois se verá como articular esse trabalhos”. Comigo há muita gente fora, cada um está fazendo, porque é certo que um eleno deixa sua pegada onde quer que esteja, mesmo sozinho, mas a gente vai se reproduzindo, e eu me encontrei com essa gente, e alguns me dizem que com a organização não querem nada, mas dizem: “o que temos que fazer?”. Eu digo que me chamarão, esse é o meu pensamento, se me chamam eu tenho que ver o que vão me propor. Penso o tempo inteiro nisso.

integraram, de sentir-se alheios a esses espaços, conforme expressa uma militante: “eu sei que no trabalho eles me vêem como um bicho raro, eu tento passar desapercebida, ser mais uma do montão, mas não consigo, por momentos tudo me parece uma grande farsa... às vezes sinto minha vida partida, sem sentido”.

Certamente, como se pode ver nas vozes citadas, há “algo” forte que identifica os militantes dessa organização. O “ser elenos” se mostrava, assim, como uma categoria diferenciada e fundamental, colocada como eixo explicativo de suas narrações. Qual era o seu sentido? Como era construída? Sobre quais elementos se fundamentava?

Um primeiro elemento que parecia ser significativo nessa construção subjetiva era, tal como foi abordado no capítulo anterior, o papel desempenhado pelas tradições de resistência e luta no processo de surgimento e implementação do projeto eleno. Mas isso não era suficiente, não bastava apenas afirmar que eles provinham de longas tradições e que, em conseqüência, tinham uma sólida identidade. Esse elemento era, sem dúvida, um aspecto importante, mas só constituía o universo de referência, faltava o fundamental, isto é, compreender como se configurou essa identidade singular, como foi a dinâmica que esculpiu essa maneira de “ser” e