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CAPÍTULO I – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

1.3. TR, tradução e metarrepresentação

Vimos na subseção anterior que Gutt considera a tradução como um uso interpretativo interlingual. Antes de se introduzir um outro conceito, o de metarrepresentação, é necessário ilustrar como um ato de comunicação ocorre segundo a abordagem da TR. Tomemos, para tanto, uma imagem de Gutt:

Figura 1 – Ato de comunicação inferencial72 (GUTT, 2004:79)

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Minha tradução de: “is not that it achieves complete interpretive resemblance but rather that it purports

to achieve it, that is, it creates a presumption of complete interpretive resemblance”. 70

Sobre notas de rodapé, Gutt também diz que uma tradução não deveria conter um excesso delas. O tradutor, guiado sempre pela consistência com o princípio da relevância, deve avaliar o que, no momento, seja mais adequadamente relevante para a audiência: a correção ou não (cf. GUTT, 2000b:196). Sobre isto também comenta Gohn (2001): “essas notas seriam de pouca utilidade (...) para a maior parte dos usuários dos textos sagrados, que os recebem muito mais pelo meio auditivo do que pelo meio escrito- visual” (p. 152).

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Minha tradução de: “the focus of relevance-theory based translation is on the comparison of interpretations, not on the reproduction of words, linguistic constructions, or textual features”.

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Minha tradução dos seguintes termos constantes na figura: “informative intention, mutual cognitive environment, thoughts understood, context, communicator, stimulus, inference”.

Os participantes do processo de comunicação encontram-se à esquerda (o comunicador) e à direita (a audiência). Para compartilhar sua intenção comunicativa com a audiência, o comunicador produz um estímulo (verbal ou não verbal). “Observando este estímulo, identificando e utilizando-se de informações contextuais retiradas do ambiente cognitivo mutuamente compartilhado (...), a audiência faz inferências (aqui indicadas pelo uso da chave) acerca dos pensamentos que o comunicador pretende comunicar”73 (id., itálico como no original).

No entanto, esse processo pode não ser tão simples quanto se supõe. Para identificar a informação pretendida pelo comunicador, o público-alvo não pode simplesmente seguir seu próprio ambiente cognitivo; ela tem que se guiar pela informação que o comunicador pensa ter em comum com ela, ou seja, pelo ambiente cognitivo mutuamente compartilhado. E os seres humanos podem ou não compartilhar um mesmo ambiente cognitivo. Quando não o fazem, podemos afirmar que se encontram diante de uma “situação de comunicação secundária” (GUTT, 2000b:76), como é o caso do trabalho ora desenvolvido.

Em situações de comunicação primária, comunicador e público-alvo usam as mesmas informações contextuais para derivar a correta interpretação do enunciado. No entanto, quando comunicador e público-alvo dispõem de diferentes informações contextuais, o processo interpretativo pode levar a conclusões divergentes daquelas imaginadas pelo comunicador original. Neste caso, será necessária aquela “sofisticação adicional”, da qual fala Gutt (2004:80), chamada de “metarrepresentação”: é a capacidade que os seres humanos têm de representar como outros seres humanos representam um determinado estado de coisas. As pessoas são capazes não apenas de pensar ou representar um estado de coisas em sua mente; elas também possuem a capacidade de pensar como outras pessoas representam aquele estado de coisas em sua mente. Este fenômeno é chamado de metarrepresentação.

Na tradução interlingual, em nosso caso, na tradução do texto em hebraico mishnaico para o português em sua variante brasileira, este processo metarrepresentacional torna-se um pouco mais complexo, visto que nele se insere a figura de uma terceira pessoa: a do tradutor, em nosso caso, a figura dos sujeitos participantes da pesquisa de tradução. Estes se veem perante uma dupla tarefa, qual

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Minha tradução de: “Observing this stimulus, identifying and using contextual information from within the mutual cognitive environment (…) the audience infers (indicated here by the curly bracket) the thoughts which the communicator intended to get across”.

seja: a de metarrepresentarem tanto o ambiente cognitivo do público-alvo do comunicador original quanto o do público-alvo para a qual estão traduzindo. Retomando Gutt, podemos ilustrar este processo a partir da seguinte figura:

Figura 2 – Metarrepresentação em tradução74

(GUTT, 2004:81)

Este processo se dá, via de regra, da seguinte maneira: primeiramente, o tradutor há de metarrepresentar o ambiente cognitivo mutuamente compartilhado entre o comunicador original e seu público-alvo. Em nosso caso, valeria dizer que há de primeiro metarrepresentar o ambiente cognitivo mutuamente compartilhado entre o(s) compilador(es) do tratado de Bava Metsia e seu público-alvo à época desta compilação. Depois, depara-se com a tarefa de metarrepresentar o ambiente cognitivo de seu público-alvo, ou seja, o de seu público hodierno.

Outra questão importante é que essa situação de uma “dupla metarrepresentação” mostrada acima pode ter graus diferentes de dificuldade para o tradutor, dependendo da relação de seu ambiente cognitivo com o do comunicador e do público-alvo. Gutt esboça graficamente as diferentes configurações entre os ambientes cognitivos, onde Co é o comunicador original, Ar a audiência receptora e T o tradutor. As sombras de pigmentação mais escura indicam o ambiente cognitivo mutuamente compartilhado. A parte preenchida com pontos são as suposições mutuamente

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Minha tradução dos seguintes termos constantes na figura: “author’s informative intention, mutual cognitive environment envisaged by the original communicator, receptor audience, original audience, translator”.

compartilhadas. Segundo Gutt, todo ser humano compartilha um determinado número de suposições contextuais, mesmo que sejam mínimas.

Figura 3 – Configurações de ambientes cognitivos mútuos em tradução (GUTT, 2004:81)

A seguir, uma breve explanação a respeito dos casos configurados na figura 3 e algumas conclusões a respeito:

Caso 1: O tradutor e a audiência compartilham um ambiente cognitivo mútuo, que é diferente daquele do comunicador original. Este é o caso quando o tradutor e sua audiência são membros de uma mesma comunidade linguística, possuindo as mesmas informações contextuais que, por sua vez, não são aquelas antecipadas para o comunicador original.

Caso 2: O comunicador original e o tradutor compartilham um mútuo ambiente cognitivo, diferente daquele da audiência receptora. Este é o caso, p.ex., quando um membro bilíngue da comunidade do TF traduz para um membro de uma cultura diferente.

Caso 3: O comunicador original e a audiência receptora compartilham um mútuo ambiente cognitivo, diferente daquele do tradutor. Caso típico de uma conferência,

p.ex., onde o tradutor (não versado no assunto) traduz para uma comunidade de peritos em um determinado assunto técnico.

Caso 4: Nenhum ambiente cognitivo é compartilhado. Este seria o pior caso em termos de tradução: os ambientes cognitivos são totalmente distintos entre Co, Ar e T. Exemplo seria o caso da tradução bíblica para línguas minoritárias, onde o tradutor da Bíblia leva a cabo sua tradução de uma língua (o grego) para a língua do povo em questão (p.ex., a língua dos índios pirahã na Amazônia), a qual, por sua vez, não é a sua (o inglês, tratando-se, p.ex., de um missionário britânico do SIL). A tarefa de metarrepresentação tanto do ambiente do comunicador original quanto do ambiente cognitivo da audiência receptora é de suma importância para o sucesso da comunicação.

Caso 5: Comunicador original, audiência receptora e tradutor compartilham o mesmo ambiente cognitivo. Este caso seria o ideal em termos de tradução. Exemplo seria a hipótese de um grupo de expertos em um determinado ramo científico, onde um deles, dominando mais de uma língua, executa a tarefa tradutória para aqueles que não entendem a língua da discussão. Não se faz necessária aqui nenhuma ginástica metarrepresentacional.

Dentre os casos configurados nessa figura 3, podemos falar que os casos 1, 2 e 4 se inserem dentro do que se denomina aqui de “contextos desconhecidos”, visto que o tradutor se depara com a dificuldade de metarrepresentar o contexto-fonte (caso 1), o contexto-alvo (caso 2) e tanto o contexto-fonte quanto o contexto-alvo (caso 4). No caso 3, embora o contexto seja desconhecido para o tradutor, ele não o é nem para o comunicador original nem para a audiência receptora, os quais têm um ambiente cognitivo mútuo. No caso 5, todos compartilham o mesmo ambiente cognitivo, não sendo o contexto desconhecido para nenhum dos participantes do processo comunicativo.

E dentre os casos onde se caracteriza contexto desconhecido, podemos tomar o caso de número 1 como foco da presente pesquisa, pois nesse caso tradutor e público- alvo encontram-se imersos dentro de uma mesma comunidade linguística e compartilham um ambiente cognitivo mútuo, o qual é diferente daquele imaginado para o comunicador original. O comunicador original (Co) pode ser visto como o(s) redator(es) do Tratado de Bava Metsia. T é o tradutor e Ar é o público-alvo brasileiro. Os tradutores e o público-alvo brasileiro compartilham um mesmo ambiente cognitivo, haja vista que estão inseridos em um mesmo contexto espacial (o Brasil), temporal (em inícios do século XXI) e cultural (compartilham os conhecimentos da cultura judaica,

seja através de estudo, seja através da pertença a uma comunidade judaica no Brasil). Já o comunicador original situa-se a uma grande distância de T e Ar, distância esta que remonta a aproximadamente dois mil anos na Palestina de então.

Vale também ressaltar que exemplos de contextos desconhecidos (como os do caso 1) não se restringem a textos sagrados; podem também ser retirados de obras clássicas de séculos anteriores traduzidas para os dias de hoje. Mas também textos atuais de conteúdo informativo (cultural, político, religioso etc.), desconhecido pelos receptores, podem configurar casos de contextos desconhecidos.

Esta distância em termos de espaço, tempo e cultura não deixa de representar um desafio a mais para o tradutor, fazendo com que Gutt (2000a:169) viesse a instigar reflexões a respeito de tais contextos desconhecidos. E aqui, especialmente, a tarefa metarrepresentacional por parte do tradutor é de primordial importância na tradução interlingual. Pode-se até mesmo afirmar que, se o tradutor que não for capaz de metarrepresentar o ambiente cognitivo mutuamente compartilhado naquela época da compilação do tratado talmúdico em questão, não estará apto, via de regra, a interpretar adequadamente o texto hebraico e, consequentemente, a interpretação que será veiculada através de seu texto refletirá erroneamente as intenções do comunicador original.

Assim, em nosso caso em particular, a tradução de textos de conteúdo religioso demanda do tradutor um esforço processual no sentido de expandir seu ambiente cognitivo, a fim de cuidar de um grau elevado de semelhança interpretativa entre o TF e o TA. Retomando Gutt (2000a) e algumas reflexões já desenvolvidas acima, pode-se dizer que o tradutor se vê diante de algumas tarefas adicionais nesse caso, quais sejam ele deverá: a) “reconstruir o ambiente cognitivo mutuamente compartilhado entre o comunicador original e sua audiência”75 e b) “determinar quais partes daquele ambiente cognitivo mutuamente compartilhado serviram de contexto para o comunicador original”76 (p. 168). Diferentes graus de semelhança interpretativa com um texto, cujo contexto de produção não mais corresponde ao do público-alvo do TA, podem gerar reações de seus leitores/ouvintes que não sejam congruentes com aquelas imaginadas para o público-alvo do TA.

75

Minha tradução de: “[the translator needs] to reconstruct the cognitive environment mutually shared by the original communicator and his/her audience”.

76

Minha tradução de: “[the translator needs] to determine which parts of that mutually shared cognitive environment served as context for the original communicator”.

E, por fim, retomando a questão do esforço e efeito, Alves (2005b:14) chama a atenção para o fato de que o equilíbrio almejado entre esforço e efeito “é uma questão de grau e depende da meta-representação que o tradutor tenha dos textos de partida e de chegada, incluindo nesta meta-representação expectativas sobre a recepção da tradução por um possível público leitor”. A partir daí, o tradutor poderá alcançar um determinado grau de semelhança interpretativa entre o TF e seu TA.

É essencial, destarte, perscrutar fenômenos recorrentes em tradução e empregados pelo tradutor com o intuito (aparente) de criar um grau superior de semelhança interpretativa entre os dois textos produzidos em contextos diferentes e distantes. Um caso importante abordado por esta tese de doutorado é o da explicitação em tradução, como exposto infra.

E quando se fala em semelhança interpretativa, não se pode descurar de uma diferenciação a ser feita entre explicaturas e implicaturas. Revisitando esses conceitos, Carston propõe um redimensionamento das explicaturas, estendendo a linha limítrofe entre semântica e pragmática, como exposto a seguir.