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CAPÍTULO I – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

1.2. A Teoria da Relevância e a tradução

1.2.8. Uso interpretativo e uso descritivo

Dois conceitos de particular interesse dentro da estrutura teórica da TR são o uso descritivo e o uso interpretativo da linguagem. Segundo Sperber & Wilson (1995:228- 229), qualquer representação que contenha uma forma proposicional pode ser usada para representar coisas de dois modos distintos. Ela pode ser considerada como uso descritivo, ao representar um estado de coisas em que sua forma proposicional é uma verdade em relação a este estado de coisas. E uma representação pode ser considerada como uso interpretativo em virtude de sua semelhança entre duas formas proposicionais.

Um exemplo de uso interpretativo geralmente aceito por todos é o discurso indireto. Neste, o falante informa ao ouvinte sobre o que alguém disse, escreveu ou falou. O uso descritivo, por sua vez, atesta ao ouvinte a verdade acerca de um determinado estado de coisas ou circunstância. Sperber & Wilson (1995:224-225) apresentam o seguinte exemplo:

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Minha tradução de: “(...) elements of language can encode ‘processing instructions’ which provide guidance to the audience as to how an expression is intended to be relevant”.

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Minha tradução de: “(...) translators have to learn to manipulate conceptually and procedurally encoded information so that they can identify the inferential constraints inherent to a given statement”.

(a) Pedro é uma pessoa de muita leitura.

(b) O falante está dizendo que Pedro é uma pessoa de muita leitura.

No enunciado (a) fica claro que a relevância do enunciado está em informar ao ouvinte acerca do estado de Pedro, sendo, então, um exemplo de uso descritivo. Já no exemplo (b), a relevância está em informar ao ouvinte sobre o que o falante disse, caracterizando, assim, um uso interpretativo da linguagem.

A noção de uso interpretativo da linguagem envolve um outro conceito, o de semelhança interpretativa, pois, ao processar uma representação mental ou pensamento, nossa mente não o faz em virtude de considerá-la verdadeira, mas por apresentar uma semelhança com alguma outra representação. A semelhança interpretativa ocorre quando uma representação tem “uma forma proposicional – um pensamento, por exemplo – em virtude de uma semelhança entre duas formas proposicionais; neste caso diremos que a primeira representação é uma interpretação da segunda, ou que é usada interpretativamente”41 (SPERBER & WILSON, 1995:229, itálicos como no original).

Resta saber quais propriedades lógicas de um enunciado hão de ser compartilhadas a fim de se alcançar uma semelhança interpretativa. Wilson & Sperber (1988) defendem a tese de que a semelhança interpretativa ocorre quando duas formas proposicionais compartilham suas implicações analíticas e contextuais num dado contexto (cf. p. 138). Em outras palavras, vale dizer que a semelhança interpretativa se dá quando duas formas proposicionais compartilham tanto as explicaturas quanto as implicaturas.

Pode-se perguntar como o ouvinte será capaz de identificar as implicações contidas num enunciado. A resposta se encontra com base na consistência com o princípio da relevância. A primeira interpretação de um enunciado consistente com o princípio da relevância será a pretendida pelo comunicador. No entanto, importante salientar que a semelhança interpretativa é uma questão de grau, pois um enunciado não precisa compartilhar todas as propriedades de um outro enunciado para que a semelhança ocorra. Quando todas as implicações analíticas e contextuais estão compartilhadas, diz-se que existe uma interpretação literal; em outros casos, poder-se-ia dizer que existe, por exemplo, uma metáfora.

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Minha tradução de: “a propositional form – a thought, for instance – in virtue of a resemblance between the two propositional forms; in this case we will say that the first representation is an interpretation of the second one, or that it is used interpretively”.

Outra questão importante diz respeito ao contexto. Já que as explicaturas e as implicaturas são dependentes do contexto, a noção de semelhança interpretativa também o é. Dois enunciados podem conter a mesma forma proposicional, mas podem levar a diferentes interpretações quando expressos em contextos diferentes. A interpretação depende de considerações de relevância e a relevância é dependente do contexto, fazendo com que a interpretação seja também dependente de considerações contextuais. Assim, enunciados que se assemelham em um determinado grau, podem não mais se assemelhar neste grau quando processados em diferentes contextos.

Um exemplo para esse caso de enunciados que se assemelham, mas, quando produzidos em outros contextos, podem não mais se assemelhar, pode ser fornecido pelo campo da tradução, mais especificamente o da tradução das Escrituras Sagradas e dos textos talmúdicos, textos que constituem o objeto da presente tese. Gutt (2000a) fala, neste caso, dos “contextos artificiais”, os quais podem ser utilizados para a categoria de textos sagrados, em virtude da grande distância tanto espacial quanto cultural e temporal que separa os leitores do texto-fonte (doravante, TF) e do texto-alvo (TA, de agora em diante). Gutt faz as seguintes reflexões:

Supondo-se que tenhamos, normalmente, intuições ‘naturais’ com respeito à relevância, o que acontece em nossas mentes quando estamos lidando, não com nosso contexto existente ‘naturalmente’, mas com um ‘artificial’? Podemos de alguma maneira imergir nós mesmos naquele contexto e ainda assim proceder intuitivamente? Ou temos que trabalhar ‘refletidamente’ ou ‘analiticamente’ mais do que ‘intuitivamente’? Há uma diferença? E se houver, qual?42 (GUTT, 2000a:169)

Simms (1997:8) fala que, nestes casos, a “imersão cultural é muito mais difícil, e a ‘experiência’ da erudição deve tomar o lugar da experiência direta”43. A imersão na cultura, no contexto do outro encontra aqui a barreira da distância. Mais à frente, no capítulo a respeito de metarrepresentação, será abordada com mais detalhes a questão acerca de como o tradutor pode, mesmo assim, “imergir” nesse contexto distante.

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Minha traduçãode: “Assuming that we normally have 'natural' intuitions with regard to relevance, what happens in our minds when we are dealing, not with our 'naturally' existingcontext, but with an 'artificial' one? Can we somehow immerse ourselves in that context and then still proceed intuitively? Or do we perhaps work 'reflectively' or 'analytically' rather than intuitively. Is there a difference, and ifso, what is it?”

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Minha tradução de: “such cultural immersion is rather more difficult, and the ‘experience’ of scholarship must take the place of direct experience”.

Por fim, pode-se resumir esses comentários sobre semelhança interpretativa, usando a explicação de Gutt, quando faz as seguintes considerações:

Considerando ainda que o objetivo principal de enunciados é veicular a gama de suposições que o comunicador pretende veicular, parece razoável definir semelhança interpretativa entre enunciados nos termos de suposições compartilhadas entre as interpretações pretendidas destes enunciados. Uma vez que a gama de suposições que se pretende veicular com um enunciado, consiste de explicaturas e/ou implicaturas, podemos dizer que dois enunciados, ou até mesmo de forma mais geral, dois estímulos ostensivos se assemelham interpretativamente um ao outro na medida em que compartilham suas explicaturas e/ou implicaturas44 (GUTT, 2000b:46).

O uso interpretativo e o descritivo foram tratados até então dentro de uma mesma língua, de acordo com as distinções entre discurso direto e indireto. Gutt vai aplicar agora esta distinção à comunicação interlingual. A tradução seria um caso de uso interpretativo, pois o tradutor “atinge a relevância ao informar à audiência do TA o que o autor original disse ou escreveu no TF”45 (p. 210). Esta questão será abordada mais detalhadamente na subseção seguinte.

Finalizando esta introdução ao arcabouço teórico da TR, é importante fazer um resumo sucinto destas considerações, citando Alves (2001b):

Com base na TR, poder-se-ia dizer, portanto, que o tradutor busca um efeito contextual entre uma forma proposicional 1 na língua de partida e sua provável contrapartida na língua de chegada, qual seja, uma forma proposicional 2. Detona-se, assim, um processo de tomada de decisão. Em outras palavras, o que faz um tradutor decidir-se por uma determinada tradução em favor de outras possíveis alternativas pode ser explicado como o resultado de uma semelhança interpretativa de um grau subjetivamente mais elevado entre a unidade de tradução na língua de partida e uma alternativa favorável na língua de chegada. Para o tradutor, a decisão adotada é aquela que, subjetivamente, possui a semelhança interpretativa mais forte capaz de expressar tanto as explicaturas quanto as implicaturas presentes no texto de partida com a menor perda de significado quando comparada a outras possíveis alternativas (p.93).

Com base no exposto acima, a aplicação da TR à tradução de textos sensíveis, em sua categoria de textos sagrados, parece ser um instrumento capaz de lidar

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Minha tradução de: “Considering further that the main purpose of utterances is to convey the set of assumptions which the communicator intends to convey, it seems reasonable to define interpretive resemblance between utterances in terms of assumptions shared between the intended interpretations of these utterances. Since the set of assumptions an utterance is intended to convey consists of explicatures and/or implicatures, we can say that two utterances, or even more generally, two ostensive stimuli, interpretively resemble each other to the extent that they share their explicatures and/or implicatures”.

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Minha tradução de: “(…) achieves relevance by informing the target audience of what the original author said or wrote in the source text”.

adequadamente com questões até hoje intrigantes para estudiosos e tradutores. Gohn (2001:150) comenta que os tradutores têm que lidar com alto grau de criatividade e habilidade na tradução de textos sagrados para línguas diferentes daquelas em que eles foram primeiro escritos. Trabalham com uma língua, com uma cultura e com um contexto bem diferentes do seu e ainda se aventuram num campo que já custou a vida a muitos. E, pela TR, a preocupação principal do tradutor não está em como expressar o sentido original na língua-alvo (até mesmo porque como, hoje, precisar o sentido original?), mas em “decidir quais aspectos do original ele quer comunicar”46 (GUTT, 2000a:172).