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Trabalho como Estratégia Cotidiana do Feirante

4 DIAGNÓSTICO

4.2 ANÁLISE DAS ENTREVISTAS

4.2.3 Trabalho como Estratégia Cotidiana do Feirante

Esse terceiro campo temático das narrativas apresentadas pelos sujeitos se identifica como uma relação de poder presente no cotidiano. Como já observava Certeau (1994), o cotidiano pressiona e oprime o sujeito. O que Certeau (1994) observa é o cotidiano do homem ordinário, aquele que é importante no contexto da micro história e tem sido marginalizado. Certeau (1994) não acredita na total passividade do sujeito nessas condições do cotidiano, mas na existência de um espaço de transgressão (CABANA; ICHIKAWA, 2015).

As autoras citadas concordam ao relatar que o cotidiano é dado pela arte de fazer, situado nas práticas que o sujeito comum realiza, essas práticas nos limites da conveniência e das possibilidades do sujeito lhe permitem driblar a ordem estabelecida.

Assim, Fernandes et al (2007), apud Coimbra et al (2014), diz: a realidade cotidiana é fortemente influenciada por padrões que pertencem a um sistema institucional no qual os indivíduos são movidos por valores, sejam eles de aporte cognitivo ou mesmo influenciados pelo contexto social.

No contexto de trabalho como estratégia cotidiana, encontramos revelações da arte de exposição na feira como uma estratégia para o próprio cotidiano desses sujeitos, que revelam:

O dia da feira é uma manhã maravilhosa, a gente conversa muita coisa, conhece pessoas. Às vezes tem pedido extra e, se a pessoa tem um local que cabe determinada caixinha, determinado tamanho, aí me proponho a fazer. Se tiver no meu alcance eu faço. E fora a conversa com os colegas, de um lado e do outro, a gente toma café e joga conversa fora (Fe1).

Esse relato do feirante 1 remete ao sentido do trabalho como uma estratégia para o próprio cotidiano, a medida que a conversa e as relações sociais constroem elementos importantes para o trabalho como expositor. Vedana (2013) confirma essa revelação do feirante com o cotidiano de ser feirante: o cotidiano está relacionado diretamente com os laços sociais e econômicos em que ele se atribui em suas práticas cotidianas, durante a semana se preparando até o dia da realização da feira para agregar seu conhecimento como feirante estimulando a prosseguirem nesse trabalho.

O ato de se preparar durante a semana até o grande ato da feira (grifos meus) também é confirmado como uma estratégia cotidiana:

Durante a semana e vou produzir as minhas peças, eu faço o pano de prato, vou lá e pinto, tenho de fazer o crochê, pinto tudo a mão, é puxa saco, depende da peça, então durante a semana tenho que estar em função disso, na produção das peças, pra aí vir depois no domingo (Fe2).

Essa dinâmica do ato de expor na feira como uma estratégia para o próprio cotidiano parece similar entre os expositores feirantes mais velhos ou que já possuem uma renda alternativa à proporcionada na feira:

Trabalho quando eu quero, porque para mim é um lazer, não é um ganha dinheiro, viver, exclusivamente da feira (Fe1).

Foi uma filha minha que me incentivou e daí ela falou: Mãe será que você não vai conseguir ir na feira do produtor? Porque é tão bonito lá, é tão gostoso, e eu tô aqui até hoje, eu gostei e tô aqui (risos) (Fe5).

Ah, eu gosto porque é uma terapia para mim (risos) e, outra coisa, é também um pouco a necessidade, mas é mais a terapia, é única fonte de renda (Fe5).

Bom, eu gosto, porque tem um círculo de amizade muito bom e também para ganhar dinheiro, um dinheirinho extra, porque a gente precisa para a despesa do dia a dia (Fe7).

A exposição na feira é uma terapia para alguns dos expositores. O frequente cotidiano encontrado entre idosos (incluindo o aposentado) é um cotidiano de muitas representações no sentido do trabalho. Esses já estão quase num contexto automático de exclusão do trabalho, como menciona Souza e Silva (2009): o feirante, hoje, não é apenas oriundo do campo, são, também, profissionais

qualificados que vislumbram na feira uma oportunidade de sobrevivência, uma vez que estão excluídos do mercado de trabalho formal.

Além disso, é possível observar algumas narrativas dos idosos no trabalho de artesanatos e campo.

O cotidiano de alguns idosos em uma instituição de longa permanência para idosos são descritos como acamados, solitários e deprimidos (LOUCATELLI; OLIVEIRA; CAVEDON, 2012). O trabalho desses autores revela que nessa idade a depressão está frequentemente, relacionada às perdas afetivas, de papéis familiares, laborais e sociais. Portanto, quando recuperamos o dizer de Sra. Miriam: “Ah, eu gosto, porque é uma terapia para mim”, é possível identificar o cotidiano no sentido de Certeau (1994), como aquele que oprime e pressiona o sujeito.

Dessa maneira, a exposição da feira é uma estratégia que busca transgressão a esse cotidiano, uma vez que o trabalho já é retirado, num sentido automático da produtividade do capital, que procura extrair maiores produtividades por meio da juventude dos sujeitos.

Estar na feira é uma estratégia para fugir do seu cotidiano, essa prática cada um utiliza com criatividade ou, ainda, deriva de suas emoções, conforme afirmam Locatelli e Cavedon (2012) que o discurso emotivo seria uma forma de ação social que cria efeitos no mundo, efeitos que são interpretados de um modo culturalmente informado pelo público desse “saber emotivo”.

É nesse sentido que afirmam serem as emoções construtos socioculturais agenciadores de formas constituintes de sentidos e forças do lugar de seu desempenho, como relatam os entrevistados da pesquisa.

Eu acho maravilhoso estar aqui, tem meus amigos para conversar. Eu fiz muitos amigos aqui, mexe com nossas emoções. Então para mim é isso aqui, estar aqui todos os domingos de manhã é um prazer. É uma satisfação muito grande (Fe1).

Vale a pena pela amizade que a gente faz e o carinho, as emoções que a gente tem com as pessoas (Fe4).

Gosto muito de trabalhar aqui, pois aqui não temos tempo de pensar nos pensamentos de tristezas (Fe7).

Assim, o trabalho como estratégia cotidiana do feirante traz as emoções a flor da pele, onde muitos, como citam acima, não tem tempo de tristezas, de pensar em sentimentos que possam lhes abater.

Nesta contextualidade, Locatelli e Cavedon (2012) dizem que as emoções se distinguem pelo foco sobre o estabelecimento da emoção, seu domínio por meio da constituição de práticas de discursos situados, bem como sua influência na vida social. O entendimento desta dinâmica perpassa as narrativas que envolvem questões de sociabilidade e de poder como, por exemplo, o ambiente de trabalho, os discursos que fazem um ao outro possuem como retórica o controle das questões relacionadas a qualquer assunto, pois implica nas discussões das emoções e reflete nas relações de poder na sociedade.

Todos os entrevistados sintonizam uma emoção, um sentimento diferente do outro, mas não deixam de ser sentimentos fortes que expõem no cotidiano do trabalho de diversas formas.

Percebo também que são nessas emoções que o trabalho na feira traz mais emoções, quando os feirantes falam que daqui três anos querem estar ainda na feira, trabalhando com seus produtos, notando na voz dos locutores:

Ah, daqui três anos com certeza eu vou estar fazendo artesanato aqui, mesma coisa que agora, não vai ter mudado muita coisa não em três anos, se eu tiver saúde, né, e se Deus abençoar e ter saúde (Fe7).

Daqui a três anos quero ter meu ateliê, mas quero continuar vindo na feira aos domingos. Pode ser que sim, porque é tão divertido vir na feira. É legal, é gostoso, a gente coloca os sentimentos para fora e também vê os amigos e é bem legal (Fe2).

Os motivos são muitos para a produção das emoções, também produzem a sociedade, pois são formas de mobilização subjetiva dos indivíduos. Nesse sentido, as emoções não mantêm apenas uma relação de referência às suas externalidades, elas podem produzir relações sociais e atuam como mecanismo de expressão, reforço ou transformações destas multiplicidades relacionais, onde as análises de sua dinâmica possibilitam desvelar os mecanismos instáveis que formam um saber sobre a sociedade (LOCATELLI; CAVEDON, 2012).

As emoções do cotidiano do trabalho na feira não deixam de ser uma estratégia para estar todo domingo lá, isto é percebível pela voz ativa que cada um solta: “quero estar aqui mesmo daqui três anos”. Sinto a força da emoção, a força desse sentimento que não trai seus pensamentos.

Nessa concepção, para Locatelli e Cavedon (2012), são as emoções que produzem as socioculturas, onde seus efeitos, materiais e simbólicos, desvelam relações de poder, mecanismos de resistências, performances e práticas de

contextos sociais situados sócio-historicamente. O requerimento das emoções na sociedade também pode se estabelecer por meio de práticas de formação de categorias sociais.

Assim, é possível analisar como o cotidiano da vida social é afetado pelas emoções, considerando-as a partir de suas particularidades, cada discurso trás à tona a vivência da emoção de estar ali presente, compartilhando com a sociedade, sendo útil para a comunidade.

O trabalho como estratégia cotidiana do feirante também gera a arte, qual é a representação do sentimento, situando-se na história da Arte de Graça Proença (2000), que comenta a história da Arte desde os primórdios até a idade contemporânea brasileira. Esse acervo proporcionou-me uma viagem às diferentes realidades da nossa história, trouxe alguns questionamentos para a minha própria vida.

Fazer arte é identificar uma relação de autoconfiança com a produção artística pessoal e conhecimento estético, respeitando a própria produção e dos colegas, no percurso de criação que abriga uma multiplicidade de procedimentos e soluções. Tanto para produzir trabalhos pessoais e em grupos, quanto para que possa, progressivamente, apreciar, desfrutar, valorizar e julgar os bens artísticos de distintos povos e culturas produzidas ao longo da história e na contemporaneidade (PROENÇA, 2000).

Para Read (1976), a arte é saber expressar e saber comunicar-se, mantendo uma atitude de busca pessoal e/ou coletiva, articulando a percepção, a imaginação, a emoção, a sensibilidade e a reflexão ao realizar e fluir produções artísticas.

Nessa concepção é que vejo a vivência integral desse grupo de artistas, colaboradores desta pesquisa, como dizem sobre suas rotinas para construir as artes para vender na feira:

Geralmente, de acordo com a necessidade, eu vou fabricando, fazendo as peças, vendendo, e vou produzindo durante a semana, não tem muitas novidades. Trabalho quando eu quero, porque para mim é um lazer (Fe1). Então, eu assim faço muitas, muitas peças mesmo e depois, a medida que vai acabando, eu vou pintando, desenhando, colorindo, essas coisas assim (Fe3).

A rotina é ver o que tem que repor para trazer, produtos que você tem a disposição, que você tem que colher, que você tem que preparar mais artes, para estar pronto no domingo de manhã para vir pra feira (Fe3).

Para Proença (2000), a arte entra em consonância com os modos de aprendizagem, qual significa, então, não se isolar da informação, do mundo que os rodeia e, ao mesmo tempo, garantir a liberdade de imaginar e edificar propostas artísticas pessoais ou grupais com base em intenções próprias e expor suas emoções e sentimentos, integrando-se ao lado prazeroso da vida.

Já para Read (1976), a arte faz aprender com sentido no prazer de estar associado à compreensão mais clara daquilo que é realizado. Para tanto, a arte não pode ser banalizada, mas deve ser exposta por meio de situações e/ou propostas que alcancem os modos de vivências do indivíduo, qual garante a participação de cada um no meio em que vive.

Neste momento, a arte estruturada é vista como trabalhos próprios, com marcas individuais, inaugurando proposições poéticas autônomas que assimilam influência e transformam o trabalho que desenvolvem dentro do seu percurso de criação nas diversas formas da arte para o sentimento.

O trabalho como estratégia cotidiana do feirante sobre a venda fica em segundo plano. Coutinho (2009), apud Neves (2017), afirma que o trabalho humano é uma atividade complexa, multifacetada, polissêmica, que não apenas permite, mas exige diferentes olhares para sua compreensão, mas que muitos indivíduos preferem tê-lo como hobby, como dizem os entrevistados:

Minha barraca vende artesanato em madeira, trabalho na feira não por necessidade, mas sim por hobby (Fe1).

Já são 10 anos, esse ano já é o décimo primeiro ano que estou aqui trabalhando e me divertindo, trabalho aqui para me divertir, mas tem gente que trabalha nessa feira mais de trinta anos (Fe4).

Sou o feirante mais antigo da feira, vendo as frutas da época, minha barraca é conhecida porque reúne amigos e tocam e cantam violão durante a feira. Venho aqui trabalhar, mas para ficar com os amigos (Fe5).

É visível que todos deixam suas vendas em segundo plano como estratégia, o que querem mesmo é distrair, rir, contar e ouvir histórias com os amigos que fizeram nestes longos anos de trabalho na feira.

Nesta simplicidade de analisar cada vivência dos feirantes, Neves (2017) reforça dizendo que o caráter central do trabalho para a humanidade, ao longo de toda a história da evo¬lução humana, foi algo determinante para a manutenção da vida do homem, tanto individual como coletiva, mas as pessoas se estruturam, quase em sua totalidade, em função do conceito de traba¬lho, querem mais é viver

de forma harmoniosa, sem separar o trabalho da existência das pessoas, mas com mais cautela, dando mais importância ao impacto que o trabalho nelas provoca.

Nesse sentido, para Marx (1983), apud Neves (2017), o trabalho no modo de produção capitalista deixa de harmonizar e passa a alienar, pois o produto e o próprio processo de produção se tornam estranhos ao trabalhador. O capitalismo modifica a visão de liberdade do homem à medida que precisa vender sua força de trabalho para sua sobrevivência, dissociando o trabalho do homem que o realiza. O trabalhador subordinado ao capital não tem mais controle do produto nem do processo de seu trabalho, pois estes estão centralizados nas mãos do capitalista.

Portanto, na nova dinâmica na sociedade capitalista, o trabalho passa a ser visto como meio pelo qual uma parte da sociedade sobrevive e a outra parte acumula bens. Essa nova dinâmica se mantém por meio da ideologia, que assume papel de mediadora na sustentação e promoção do atual sistema econômico, mas o mais importante é que cada um esteja bem naquilo que procura e que quer.

As possibilidades do cotidiano como estratégia do feirante são muitas. Para esses feirantes, são as possibilidades de ter voz para expor suas opiniões, sugestões na organização da feira, sendo dessa forma que ficam mais tempo na feira podendo participar de todas as organizações.

Nosso cotidiano é agitado e já tive muitas vezes em momento de reuniões, sendo solicitado o meu ponto de vista sobre alguns assuntos da feira e sempre foi ouvido, pelos tantos anos que eu tenho trabalhado aqui (Fe4). Nosso cotidiano é de muitas opiniões, eu que não dou muita opinião, mas eu tenho sim, se for juntar todo mundo para falar, o povo normalmente escuta e um ou outro acaba te dando alguma opinião boa (Fe6).

Nessas vozes, vejo que o cotidiano de cada um tem sentido duplo, onde trabalham, mas também participam ativamente, dando suas opiniões de como agir, fazer, construir algo na feira. São perspectivas certeuniana, em que se descrevem as pequenas práticas que se articulam nos instantes de tempo que constroem o dia a dia. Estas práticas, assinaladas por Certeau (2012) como táticas e estratégias vistas como movimentos de resistência diante do poder dominante, se encontram em constante mudança segundo as conveniências de seus articuladores.

Ressalta Certeau (2012) que há outros dois conceitos relevantes ligados à presença e à ausência do próprio, lembrando que o próprio está associado a domínio e poder. Trata-se da noção de lugar e espaço. Para o autor, o lugar é a

ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem elementos nas relações de coexistência. Já o espaço existe sempre que se tomam em conta vetores de direção, quantidades de velocidade e a variável tempo.

Assim, nestas análises, vem a reflexão sobre a vida cotidiana, percebo que ela é a raiz de nossa existência e nela o homem se envolve com todas as características de sua personalidade, ou seja, na vida cotidiana manifestamos nossa identidade e nela a renovamos. Assim, o cotidiano é um território muito amplo onde nos modelamos e remodelamos, onde existimos, criamos e recriamos nossa identidade. Por isso os feirantes, além de quererem estar ali trabalhando, ainda opinam no espaço que pertence à “Feirinha da JK”, pois cada um quer dar sua opinião e serem ouvidos para que o comércio aconteça de forma globalizada.

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