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CAPÍTULO 1: CONTEXTUALIZANDO A PESQUISA

1.4 TRAJETÓRIA DA PESQUISADORA COM A TEMÁTICA

Falar das trajetórias desse tempo marcado pelas lembranças de uma infância vivida no campo remete-me ao interior de Minas Gerais. As marcas deixadas ao longo da trajetória são de uma educação que falava da cidade, cheirava à cidade, e que nos ensinava que na cidade tinha de tudo; as melhores opções, as melhores oportunidades. Nos livros, víamos imagens das capitais, Rio de Janeiro e São Paulo. Estudávamos sobre os meios de transporte, aviões, navios, que para nós era difícil sequer poder imaginar naquele momento, pois nossa realidade estava mais próxima ao contato com as árvores, os pés de frutas, os cheiros de semente, o chão da terra molhada. Esse estranhamento me acompanhou por muito tempo, ainda que não o entendesse, mas o incômodo de estar num lugar tão longe, irreal, não palpável, se intensificava na complexidade de imaginar situações tão distantes do contexto vivido. Essas lembranças me permitem hoje analisar, junto com Fernandes (2002, p. 68), que:

quando pensamos o mundo a partir de um lugar onde não vivemos, idealizamos um mundo, vivemos um não-lugar. Isso acontece com a população do campo quando pensa o mundo e, evidentemente, o seu próprio lugar a partir da cidade. Esse modo de pensar idealizado leva ao estranhamento de si mesmo, o que dificulta muito a construção da

identidade, condição fundamental da formação cultural (FERNANDES, 2002, p. 68).

Na continuidade dessa análise, continuo a rememorar o contato com a escola, que se inicia na conhecida 1ª série, porque não tive oportunidade de acesso à EI. No interior em que morávamos não havia instituição de EI, e ficávamos em casa sob os cuidados de nossas famílias. E assim fui crescendo, andando por muitos quilômetros para chegar à escola e dividindo uma sala de aula com quatro turmas com idades diferentes e, se não bastasse, dividia também a professora. Assim foi meu contato com a escola, no campo, no interior de Minas Gerais.

Lembro-me dos bancos enormes e umas mesinhas colocadas em frente a eles. Ali ficávamos por algumas horas, quatro turmas, crianças com idades diferentes, ao mesmo tempo, estudando e dividindo a atenção de uma professora, que por vezes se ausentava da sala para preparar a merenda, cuidar de algum aluno com “doença”, ou outros problemas que nós, crianças, não dávamos conta de resolver. Nosso recreio era num chão batido com muita poeira, onde brincávamos alegremente, correndo para todos os lados, sob os cuidados da nossa querida professora. Nossos brinquedos eram galhos de árvores, que era nossa bandeira, quando resolvíamos brincar de pique-bandeira. Nossa bola, construída com uma meia cheia de terra ou pedaços de retalhos. Nossas bonecas, feitas de pano, por vezes eram a espiga de milho com vestidos feitos por nós. Brincávamos, e muito! E assim o tempo foi passando; quando terminei a 4ª série fui para um distrito onde havia a possibilidade de estudar até a 8ª série. Novamente andava por mais de dois quilômetros todos os dias para chegar à escola, sob chuva ou sol forte, pois sabíamos que, para permanecer estudando, tínhamos que caminhar, e muito.

Como só havia a possibilidade de estudar apenas até a 8ª série no município no qual morava, tive que mudar para Vitória, aos 15 anos, deixando a família, os amigos, o cheiro de terra molhada, as pessoas com as quais cresci e convivi ao longo dos anos no interior de Minas Gerais, na busca por melhores oportunidades, aquelas que, no campo, não me foram ofertadas quando criança. Foram tempos difíceis, o encontro com a cidade, com o desemprego e com a dificuldade financeira, a continuidade de andar por longos quilômetros para chegar à escola. Na cidade, havia o transporte público, mas me faltava recursos para ter acesso a ele. Nesse momento, rememorava as lembranças da roça, da família, dos amigos, do espaço

livre para brincar, a conversa no terreiro, o que na cidade era quase impossível imaginar na minha idade, aos 15 anos.

Em Vitória, cursei o magistério e aos poucos fui me entrosando na Comunidade Eclesial de Base (CEB), junto aos grupos de jovens da periferia, e atuando na arquidiocese de Vitória – vivências com a religião oriundas da cultura em Minas Gerais, onde atuei no grupo de jovens. Na CEB vivi a interação com outras pessoas, estudando, participando de algumas atividades de formação. Foi nessa arena que conheci o MST. Esse encontro me possibilitou entrar em contato com o campo, viver o campo, conhecer pessoas do campo e que passavam por problemas semelhantes ao que vivenciei em Minas com minha família, seja no que se refere à dificuldade para estudar ou às condições básicas para sobrevivência. Através disso pude me sentir novamente em casa.

Numa relação muito próxima ao movimento, aos 17 anos fui atuar na Secretaria Estadual do MST5 aqui em Vitória, e a partir daí o movimento tornou-se parte da minha família, tão quanto o era a família deixada em Minas. Nessa atuação, as participações nas atividades do movimento se tornaram rotineiras, não só a responsabilidade política pela Secretaria Estadual, mas a responsabilidade e o pertencimento a essa organização.

A consolidação desse processo foi se tornando parte da minha trajetória. Entre as marchas, as ocupações, as atividades, as viagens, os encontros... nesse lugar fui encontrando muitas características daquele rural deixado em Minas,como as diferenças daquilo que via nos livros didáticos quando cursava a primeira série. Nas vivências com o contexto rural do ES, através do MST, percebi que também eram reais os desafios presentes nos interiores do Espírito Santo – eram desiguais as escolas, o acesso às comunidades, a dificuldade em torno das condições básicas de infraestrutura, de saúde, de igualdade de oportunidades, o não-acesso à educação ou as precárias condições de algumas escolas do campo –, tudo isso me remetia sempre à minha realidade na infância.

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A Secretaria Estadual do MST é um espaço de articulação/ referência para a base do Movimento (acampamentos, assentamentos, setores, centros de formação, regionais, direção estadual) e para a sociedade. Neste espaço circulam as informações acerca das lutas que se dão no dia-a-dia não só do MST, mas das demais organizações.

Nesse percurso, tornei-me mãe, o que não me impediu de continuar participando das atividades do Movimento. Sempre quando viajava para participar dessas atividades, ali estava meu filho, participando da ciranda infantil junto aos demais Sem Terrinha. Impressionava-me o fato de as mães não deixarem de participar das atividades da organização por causa dos filhos, muito pelo contrário, a participação das mulheres era em tom de igualdade junto aos homens.

Nesse percurso, sendo mãe, militante e atenta às questões do campo, e atuando na Secretaria Estadual do MST no contato direto com todos os setores do Movimento, também fui me atentando à questão das crianças. Impressionava-me a participação dos Sem Terrinha nas atividades. Ali estavam eles, marcavam presença com seus gritos de ordem, reivindicando melhores escolas, espaços para brincar (e no campo!) tão bons e tão bonitos quanto os que os Sem Terrinha viam na cidade6, ainda que as escolas da cidade também careçam de melhores condições. Estava sempre atenta à participação das crianças em atividades nacionais, como no V Congresso em Brasília, no ano de 2007, em que mil crianças, oriundas de diversos estados do país, estiveram presentes e reivindicaram ao MEC escolas de qualidade no campo, para que não precisassem ir para a cidade. Para além dessas atividades, a presença das crianças também se dava em ocupações e nos demais espaços de formação do movimento. Ou seja, a participação efetiva na defesa das pautas apresentadas nos Encontros Estaduais dos Sem Terrinha eram eventos muito fortes e marcantes em minha atuação no movimento.

Nesse percurso, prestei o vestibular para o curso de pedagogia, por meio do qual tive a oportunidade de adentrar a Universidade Federal do Espírito Santo. Fiz o curso normal – no período estava em discussão a consolidação da 3ª Turma do Curso de Pedagogia da Terra7,que agrega as disciplinas concernentes ao curso normal, mas também referente à realidade agrária, com ênfase no campo, mas infelizmente esta turma não se efetivou. Terminada a graduação, prestei concurso na rede municipal de Vitória e, diante da necessidade de sobreviver na cidade, tornei-me educadora, fato que me possibilitou outros olhares em torno da educação

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Observação feita em um Encontro Estadual dos Sem Terrinha, quando, aos marcharmos até a SEDU, as crianças passaram por algumas escolas e viram as diferenças entre as realidades vividas no campo. Essa realidade foi constatada por um Sem Terrinha, quando apresentava a pauta à sub- secretária de Educação do Estado do Espírito Santo.

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Nome dado ao Curso Superior em Pedagogia realizado com as universidades em parcerias com o MST. Aqui na UFES foram duas turmas concluídas.

para as crianças da periferia, na qual atuo. São questões que não diferem muito das condições do campo, e por vezes me via comparando-as. O acesso, a qualidade, a permanência, as dificuldades em torno de uma educação muitas vezes assistencialista, em que os educandos são vistos como “coitadinhos” e que o muito que fizermos é o suficiente... essas questões me acompanham... e não são tão diferentes quanto as questões ligadas às crianças do campo.

Nas ruas junto com as crianças, seja debaixo de sol ou chuva forte, lá estávamos nós, ocupando os espaços públicos onde são pensadas e articuladas as políticas públicas, mobilizados e mostrando para a sociedade que as crianças do campo existem e possuem direitos que a elas nem sempre são garantidos. Essas crianças falam de um lugar! Esse lugar chamado campo é o lugar onde nasceram, vivem com suas famílias e com seus sonhos. Por entre gritos de ordem, as vozes dos pequenos ecoavam pelos cantos da cidade (era o campo ocupando seu espaço), pedindo para serem vistos, ouvidos, atendidos. Essas crianças lutam e desejam melhores condições de vida, de espaço, de escola, de infra-estrutura, de professores que os entendam nas suas especificidades, que compreendam os espaços e os modos de viver e habitar o campo. A educação sempre foi pautada em todas as atividades, portanto não tinha como não estar atenta a esses fatos.

E foi assim... nas idas e vindas das mobilizações com as crianças, seja nas marchas, nas mobilizações, nas ocupações e nas diversas audiências e tentativas de pautar a EIC, reivindicando aquilo que cotidianamente é negado às crianças do campo, que me mobilizei em busca do mestrado, emergindo na possibilidade desta pesquisa. Por habitar este lugar em que o campo é destacado pelas condições desiguais que me encontro, motivada pela materialidade das lutas e na possibilidade de visibilizar estas questões.

E assim, ano a ano, nossas pautas já amareladas traziam o cotidiano, a falta de políticas que para além de ver as crianças do campo pudessem interferir nessa realidade, possibilitando condições adequadas para a efetivação de uma educação emancipadora, compreendida, conforme nos ensina Paulo Freire (2003):

A partir das relações do homem com a realidade, resultantes de estar com ela e de estar nela, pelos atos de criação, recriação e decisão, vai ele dinamizando o seu mundo. Vai dominando a realidade. Vai humanizando-a. Vai acrescentando a ela algo que ele mesmo é o fazedor. Vai temporalizando os espaços geográficos. Faz cultura. E é ainda o jogo

destas relações do homem com o mundo e do homem com os homens, desafiado e respondendo ao desafio, alterando, criando, que não permite a imobilidade, a não ser em termos de relativa preponderância , nem das sociedades nem das culturas. E, na medida em que cria, recria e decide [...] (FREIRE, 2003, p. 51).

E atualmente, sendo educadora na cidade, mas com as raízes no campo, meu pertencimento ao Movimento e minha atuação se dão em torno do núcleo urbano que construímos na capital, somos militantes que, estando na cidade, pautamos e contribuímos com o Movimento em suas diversas frentes de luta e de atuação, uma vez que não há como passar, por qualquer arena, sem marcar essa voz, que ressoa uma trajetória de vida tão polifônica. Falar dessa trajetória, portanto,

é um exercício que nos possibilita olhar para nosso passado, não com mágoa, ressentimentos ou desinteresse, mas implicados em nosso autoconhecimento, procurando nossos fios condutores de sabedoria de viver que nos acompanham ao longo de nossa jornada. Estes expressam o nosso ser-no-mundo (MENDONÇA, 2010, p. 21).

Ao chegar novamente à universidade, por meio do mestrado sou acolhida no Grupo de Pesquisa Formação e Atuação de Educadores8 (GRUFAE), no qual tem se discutido questões pertinentes à EI, à formação de educadores e às pesquisas que pautam a educação do/no campo. Como pesquisa coletiva, temos a Pesquisa Mapeamento da EI no Espírito Santo (PESQMAP, 2013), que contou com a participação dos 78 municípios capixabas, o que possibilitou ampliar as discussões apreendidas no contexto local quanto da EI e da EIC. Nesse espaço de efetiva discussão e compromisso com a EIC é que me encontro, aprendendo junto ao grupo e discutindo as questões da EIC em Assentamento de Reforma Agrária. As dialogias em torno dessa temática vão ganhando corpo no âmbito do grupo de pesquisa e, juntos, vamos visibilizando novas pesquisas em que o campo, as crianças, os educadores sejam nossos interlocutores. Nessa trajetória em movimento, apresentamos a seguir a problemática de investigação que nos instiga a ocupar o campo.