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3.3 O DESENVOLVIMENTO DO SETOR PÚBLICO ESTADUAL PARANAENSE

3.3.2 Transição Democrática e Crise Fiscal-Financeira entre 1980 e 1989

O começo da década de oitenta foi revelador para a gestão pública estadual. A divulgação dos dados censitários de 1980 e a conquista de espaços democráticos nos governos estaduais e municipais deram fim ao vôo cego que vinha sendo realizado em relação à questão social e aos fluxos migratórios ocasionados pela modernização acelerada e selvagem da agricultura. De modo complementar, a perda de dinamismo e a crise da economia brasileira geravam desemprego, agravado pela inexistência de mecanismos adequados e amplos de proteção social, realidade que, como não poderia ser diferente, se fazia sentir no Paraná. Esses fatos levaram a uma crítica profunda à

45A marca preponderante parece ser não abandonar a disciplina fiscal e o ordenamento

institucional num contexto de adaptação às regras do jogo federativo impostas pelo governo militar. Não é necessário evocar a existência de um ethos formador, mas o apego à prudência fiscal e administrativa parece ser um aspecto constitutivo relevante do setor público estadual até, pelo menos, 1994; em alguma medida, o predomínio desses princípios levam a se pensar na existência de um corpo técnico-burocrático dotado dessas qualidades e entrelaçado com os atores sociais estaduais e federais.

agenda pública executada na década de setenta e, concomitantemente, à tentativa de

construção de uma nova, comprometida com a democracia e a questão social.46 A partir

desses anos, os aparelhos públicos foram se abrindo à sociedade para atender às suas demandas ampliadas. Nesse movimento, a esfera estadual passou a desempenhar importante papel na coordenação do processo de descentralização de políticas sociais.

Na contramão de uma agenda mais pautada por questões sociais, desen- volvia-se a crise da economia e do padrão de financiamento público e privado. A perda de dinamismo da economia, aliada à inflação crônica e às taxas de juros reais elevadas, minava as bases fiscais, e, em razão da instabilidade e queda da taxa de investimentos, ocorria a redução do horizonte temporal das ações públicas, mais e mais defensivas e carentes de planejamento no plano mais geral. Verificam-se, também, a progressiva desarticulação do sistema estadual de planejamento e um deslocamento acentuado da gestão pública em direção à gestão financeira. Essa década, até 1988, combina elementos da crise do padrão centralizado de políticas públicas do regime autoritário com elementos gerados pelo processo de democratização e de descentralização de políticas públicas no governo estadual e nos governos municipais. No seu formato institucional básico – órgãos da administração direta e indireta, empresas públicas estaduais (submetidas a um sistema nacional debilitado) e setor financeiro –, a estrutura do setor público estadual manteve-se, até o final da década de oitenta, relativamente inalterada e com alguma capacidade de iniciativa. A crise geral do Estado

46É bastante comum ouvir depoimentos de técnicos do governo estadual que relatam a

existência de práticas de governos municipais, bastante difundidas, de expulsão de famílias inutilizadas pela modernização da agricultura em cidades localizadas no epicentro das transformações. Assim, a cidade de Cascavel orgulhava-se, nos anos setenta, de não possuir nos seus domínios população desocupada: a população excedente era “convidada” a entrar em ônibus com destinos variados, em geral para as áreas de expansão da fronteira agrícola. Por isso, não se deve exagerar na idéia de um vôo cego em relação à questão social.

brasileiro, e, mais especificamente, do seu padrão de financiamento, não afetou tão severamente sua capacidade de ação como em outras unidades federativas.

Em alguma medida, é possível afirmar que a agenda pública democrática nasceu das entranhas da crise política e econômica engendrada pelo regime autoritário. Tendo esgotado o caminho de promover o crescimento econômico e realizar consensos no bloco de poder, numa fuga para a frente, com recessão e inflação, desemprego em alta, o regime ainda realizaria o ajuste externo, defendido em 1979 pelo então ministro Delfim Neto com a frase “exportar é o que importa”, transformando o país numa gigantesca máquina produtora de saldos comerciais destinados a pagar a dívida externa contraída nos anos de liquidez internacional.

A elevação da taxa de juros pelo governo Reagan e a violenta recessão mundial foram os ingredientes que faltavam para explodir a bomba externa armada pelo regime militar. Em 1982, a partir da moratória mexicana os países da América Latina iniciaram a via crucis do ajuste externo. Chegava ao fim o padrão de financiamento da economia brasileira pelo qual se tinha alcançado a segunda revolução industrial, mas por uma via incapaz de massificar o consumo, de produzir inclusão social e democracia. Um ano depois, em 1983, no âmbito do calendário da abertura estabelecido pelo regime, os

governadores eleitos, a grande maioria pelo PMDB, iniciaram seus mandatos. Os

governos estaduais passaram a concentrar a responsabilidade pelo enfrentamento democrático da crise econômica e suas conseqüências, convivendo com um governo federal não legitimado pelas urnas e único protagonista da infrutífera luta pela estabilidade da economia. Tiveram que responder pelo estado de bem-estar que a instância superior não podia garantir e enfrentaram as pressões sociais advindas do voto direto – durante as greves de 1983, as grades do Palácio Bandeirantes foram derrubadas por manifestantes.

No Paraná, José Richa, do PMDB, assumiu o governo estadual (1983-1986)

desemprego batiam forte no estado. Muitos dos temas focados pelas políticas públicas do novo governo tinham sido debatidos por grupos de intelectuais e técnicos da oposição do setor público em reuniões na Fundação Pedroso Horta (numa cena

repetida em todos os estados em que o PMDB ganhou as eleições). Curiosamente, o

desenho conjunto das políticas fazia lembrar o que carecia na esfera federal: retomada do crescimento com ênfase na geração de empregos; democracia participativa (em 1983 foi criada a Secretaria Extraordinária de Assuntos Comunitários, com o objetivo de estabelecer mecanismos institucionais para captar as demandas da sociedade civil); preocupação com a dimensão regional do desenvolvimento do estado com foco em áreas de conflito rural e em vias de esvaziamento; políticas sociais e investimentos em infra-estrutura social básica.

Mais do que uma reforma dos aparelhos públicos estaduais, pelo menos até 1987-1988, o que estava em jogo era a capacidade de obter êxito na construção de um

elã democrático na gestão pública a partir de uma estrutura dotada de aparelhos e

funções já constituídos. Para realizar essa transição democrática, sem uma reforma profunda dos aparelhos e funções públicas, aponta-se para a existência de uma burocracia pública estadual relativamente estável e formada dentro de alguns princípios. Segundo Magalhães (1999, p.52):

Em primeiro lugar, deve-se enfatizar que, desde o início da década de sessenta, o Paraná havia mantido, apesar das alternâncias do poder, uma continuidade administrativa rara na história política e administrativa brasileira. E isso não somente quando mudavam os grupos no controle do Estado, mas mesmo quando, como em 1983, houve mudança mais profunda na composição política do governo, com a vitória das oposições.

Para o autor, uma das explicações para esses aspectos de permanência do setor público estadual é a existência de um ethos político burocrático estadual constituído em torno de uma matriz ideológica desenvolvimentista com elevado poder de adaptação às injunções nacionais e estaduais. Há uma complicação nesse tipo de análise, dado que a visão de uma ideologia desenvolvimentista que serve para a ação do Estado e se alimenta do apoio do capital industrial tende a ignorar condições

históricas específicas responsáveis pela existência de regimes democráticos e autoritários. Assim, a idéia de “desenvolvimentismo” parece sobreviver às injunções históricas assumindo um caráter a-histórico. Por isso, talvez não seja necessário forçar a análise a partir de um paradigma desenvolvimentista de origem cepalino e aplicá-lo às políticas de uma esfera de governo particular em um regime autoritário, já que atributos tais como disciplina fiscal, ordenamento administrativo e apego a idéias de desenvolvimento econômico independem da adesão a esse paradigma.

Depois de ter participado de aparelhos e funções públicas subordinados ao regime militar, a burocracia pública estadual apoiou as idéias de gestão participativa do governo Richa. Vejamos Magalhães (1999):

De um lado, esse modo de administrar teve certamente como origem as teorias e práticas políticas da democracia cristã latino-americana, principalmente do governo de Frei no Chile. Por outro, traduziu os desejos e expectativas dos diversos atores sociais que, como já referido, se haviam firmado na cena política ao longo da década anterior, e agiam principalmente dentro ou ao redor do PMDB. Foi como que uma forma de resgate da cidadania, estimulada a partir dos aparelhos de estado, que dessa forma se inseriam nos debates que os atores sociais organizados faziam antes apenas nos limites de suas próprias organizações. Seu resultado mais importante foi a desmistificação do caráter tecnocrático das políticas públicas, que se tornara dominante com o regime autoritário, recolocando o componente político, tanto para os atores sociais quanto para os quadros técnicos da administração estadual (p.167).

Há, porém, um elemento importante a justificar a permanência do ordena- mento pseudo-desenvolvimentista no setor público estadual e a sua relativa capacidade de resistência à crise fiscal e financeira do Estado brasileiro. Apesar de se ressentir pela crise econômica nacional, sofrer com a estagnação dos setores domésticos, com inflação, juros altos e ciranda financeira, a economia estadual foi beneficiada pelo seu caráter agroexportador com base na agroindústria da soja, inserida na política nacional voltada à geração de saldos comerciais para pagar o serviço da dívida externa. A internalização dos lucros de exportação responde por uma parte considerável da urbanização estadual dos anos oitenta, gerando investimentos imobiliários e a expansão do setor serviços. O dinamismo econômico do estado, baseado ainda na

produção de bens salários tradeables, em alguma medida, deu sobrevida à estrutura pública estadual e seu presumível ethos burocrático constitutivo.

A mudança da agenda pública estadual a partir de 1982 também foi influenciada pela inversão dos fluxos internacionais de capitais e crise da dívida externa. Nos anos oitenta, os recursos de empréstimos disponíveis no mercado financeiro internacional derivavam de operações junto a organismos internacionais oficiais de crédito: Banco Mundial (BM), Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (Bird) e Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Foram linhas de crédito condicionadas à realização de obras ou investimentos em políticas sociais tradicionais (educação, por exemplo) e em infra-estrutura social (com destaque para saneamento básico), guiadas pelo acompanhamento da capacidade de endividamento e pagamento do estado e dos municípios. Esse financiamento oficial disponível acabou reforçando um aspecto relevante do processo de descentralização: trata-se principalmente de uma mudança no âmbito dos gastos orçamentários sociais. Por sua vez, o financiamento internacional muitas vezes levou o governo estadual a comandar subprogramas visando desenvolver a capacidade técnica necessária para que os municípios conseguissem responder a relatórios fiscais e financeiros referentes à aplicação de recursos. Para as instituições internacionais, a municipalização dos programas garantia uma melhor eficácia dos empréstimos vis-à-vis os objetivos definidos. De resto, é bom lembrar que a profundidade da crise econômica afastou todos os níveis de governo da já anêmica formação bruta de capital fixo. Aos governos estaduais dos anos oitenta restou muito pouco a fazer em matéria de economia ou promoção industrial.

Dois programas com as características supracitadas e que vieram a indicar mudanças na agenda pública merecem ser citados. Trata-se do programa Pro-rural, financiado pelo BID, destinado ao apoio de pequenos produtores rurais e à realização de investimentos sociais em pequenos municípios numa região do estado de desen-

volvimento deprimido, e do Programa de Ação Municipal (PRAM), financiado pelo BIRD, destinado à realização de obras de melhoria urbana em municípios com até 50 mil habitantes (Magalhães, 1999). Em que pesem essas iniciativas, relativamente abrangentes e longas, a progressão da crise econômica depois do fim dos “anos virtuosos”, 1985 e 1986, foi acabando com a capacidade estadual de tomar iniciativas na esfera do desenvolvimento municipal e regional. São justamente os pequenos municípios os que vêm passando por um intenso processo de esvaziamento econômico e populacional desde os anos oitenta. Durante o ciclo do governador José Richa, até 1986, a agenda pública ainda ecoava o diagnóstico das mazelas da gestão econômica do regime autoritário e da recessão do início da década. A primeira fase do Plano Cruzado, em 1986, reforçou iniciativas públicas voltadas à desconcentração da renda ou, simplesmente, aos cuidados da população mais maltratada pela crise.

Durante esses anos, surgiram novas e importantes funções públicas e seus respectivos aparelhos, entre as quais se destacam aquelas ligadas à elaboração e execução de políticas na área ambiental e, também, no campo das chamadas (na época) novas tecnologias (informática, biotecnologia, novos materiais, etc.). Embora as funções públicas ligadas a essas grandes questões tenham permanecido ao longo dos anos, mudaram, e muito, os enfoques; em vários casos, áreas específicas foram abandonadas, além das mudanças nos próprios aparelhos públicos.

A partir de 1987, as coisas começaram a mudar. Sob o governo de Álvaro Dias (1987-1991) vivenciou-se o agravamento da crise econômica nacional e seus desdobramentos em direção ao campo das finanças públicas estaduais. Durante esse governo, ressurgiu o tema da reforma administrativa e, com a Lei 8.485 de 1987, tentou-se dar início ao processo norteado pelo enxugamento e contenção de despesas. Na prática, a estrutura funcional do setor público estadual foi pouco alterada, mas o avanço nessa linha poderia ter sido maior, a julgar por alguns documentos internos

pressionou no sentido de centralizar o papel da gestão financeira no âmbito das ações públicas, em detrimento do sistema estadual de planejamento. Por outro lado, houve o estrangulamento de alguns órgãos da administração descentralizada, cruciais para o planejamento, a exemplo do Ipardes.

O paradoxo é que, durante esse ciclo de governo, a chamada reforma administrativa, mais concentrada na administração descentralizada, conviveu com um ativo programa de educação, que transformou em universidades inúmeras instituições de ensino em áreas específicas espalhadas pelo estado. Ao introduzir novas pressões sobre o gasto público estadual – para alguns críticos aquela política de ensino era demasiado comprometida com interesses regionais –, teria havido uma pulverização de recursos que poderiam ter sido melhor utilizados no fortalecimento das duas universidades estaduais há mais tempo funcionando em Londrina e Maringá. De qualquer maneira isso pode indicar que, apesar das restrições financeiras, havia algum espaço para o redirecionamento dos gastos. Nesse período, também, o governo estadual implementou uma política bastante ativa de construção e pavimentação de estradas, e a empresa estadual de energia elétrica (Copel) levou adiante a construção de uma usina hidroelétrica em Salto Segredo.

No Brasil, ao fim da década, tomadas pela instabilidade, juros altíssimos e inflação crônica elevada, pelo menos duas dicotomias pareciam chegar ao seu limite politicamente suportável. A primeira, a existente entre o esforço exportador e a recessão e estagnação dos setores domésticos, exceto o sistema financeiro. As dificuldades da

política econômica manifestavam tal esgotamento.47 A segunda dicotomia dizia respeito

à federação fraturada entre uma esfera superior de governo, sem credibilidade política,

47Observe-se que o confisco da poupança financeira, independentemente do seu julgamento pela

sociedade, permitiu que o governo saísse do corner e, ao mesmo tempo, continuasse, até 1994, sustentando a dicotomia entre a recessão e o drive exportador.

ainda signatária do regime militar e em mais de dez anos atrasada no jogo democrático do revezamento no poder, e as esferas inferiores de governo que vinham enfrentando uma agenda diferente. Essas últimas respondiam pela descentralização do gasto, democratização e demandas dos eleitores. Nesses anos, as relações intergover- namentais mais relevantes, responsáveis por uma parcela razoável do pacto federativo, assentavam-se no endividamento e na capacidade do governo federal em absorver a crise fiscal e financeira dos governos estaduais. O processo constituinte de 1988 traduziu essa assimetria política das relações federativas, sendo claramente dominado pelos governos subnacionais, principalmente nas matérias referentes aos fundos públicos. Na outra ponta, só restou ao governo federal pressionar – depois de promulgada a Constituição cidadã – com a "operação desmonte" e enveredar pelo caminho das contribuições não partilhadas com outras esferas de governo. O ritmo político diferenciado da democratização nas esferas da Federação foi causador de inúmeras distorções que cumulativamente afetaram a capacidade fiscal do estado.

Entre os estados da Federação, o Paraná era o que se encontrava em situação menos desconfortável, onde o núcleo básico constituído pela administração direta e indireta (fundações e autarquias), empresas públicas estaduais e sistema público financeiro estadual, apresentava-se relativamente equilibrado, preservado em condições operacionais e, apesar do fracasso da reforma do governo Álvaro Dias, sem pressões nos gastos correntes decorrentes de alguma etapa “empreguista”. Mesmo com dificuldades, como já foi citado, houve durante o período alguma capacidade de realizar investimentos em áreas de serviços de infra-estrutura mediante as empresas públicas estaduais. Entretanto, a agenda pública estadual passou por uma mudança profunda: a gestão pública passava a focar os gastos com pessoal como vilão e variável de ajuste às condições de crise, e, completando o abandono de qualquer sonho desenvolvimentista, fechava-se o banco de fomento estadual (o Badep), dando início no

estado à marcha da regressão institucional e financeira difundida nos anos noventa por todos os níveis de governo.

3.3.3 O Setor Público Estadual em Ajuste entre 1990-1994: a Influência dos Novos