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Um enredo histórico da alimentação no Ceará

Mesmo já tendo comentado alguns aspectos dos costumes alimentares da Região Nordeste do Brasil, contemplar neste capítulo o sabor e a criatividade da mesa cearense confere um significado especial a este trabalho, por diversos motivos. Em primeiro lugar, esta pesquisa foi realizada em três escolas da cidade de Fortaleza, capital do Estado do Ceará. Em segundo lugar, a autora deste estudo é genuinamente cearense, “de pai e mãe”. E finalmente, um espaço para prestar uma homenagem à grande escritora cearense Rachel de Queiroz (2004), que em sua obra O não me deixes

– suas histórias e sua cozinha, descreve a casa, a comida, os costumes e as relações

bem características do povo sertanejo.

A fazenda “Não Me Deixes”, localizada no interior do Ceará, de propriedade da família de Rachel de Queiroz, representa aspectos típicos da vida sertaneja. Os animais, os utensílios domésticos, a arquitetura e as relações entre os caboclos e seus patrões são registros da identidade de um povo, que vão se evidenciando à proporção que essa escritora apresenta a cozinha e as curiosidades que aconteciam em seu entorno.

Compondo a casa de taipa, o fogão de tijolos, alimentado a lenha, conforme descrito pela própria Rachel, ainda hoje pode ser encontrado nas casas pobres do sertão cearense. Geralmente localizam-se fora de casa, sendo composto por uma longa fornalha, coberta por uma chapa de ferro fundido onde estão as bocas de forno.

pelas contribuições africanas. Conforme Rachel, porém, no Recife, na Paraíba, no Rio Grande do Norte e no Ceará, as receitas das senhoras-donas, “nossas avós”, eram seguidas com fidelidade, bem demarcadas pela pimenta-do-reino, que muitas vezes provocava os protestos das crianças devido ao seu forte sabor. Os doces de cajus, o arroz-doce, o queijo de coalho, os doces de leite, de coco, de mamão verde com coco, de goiaba, de banana são delícias típicas do povo sertanejo, além do doce de “espécie”, provavelmente de origem africana, que tem por base a rapadura e é acrescido de especiarias, feito com gergelim ou com castanha-de-caju, todos eles faziam, desta feita, a alegria das crianças da fazenda de Rachel.

O amplo uso da farinha é costume bem presente entre o povo cearense, sendo as casas de farinha um local de trabalho e de festa. E na própria fala de Rachel (2004, p.37)

E a farinha com feijão é o alimento básico do sertanejo. Com feijão e farinha ele enfrenta qualquer tempo e qualquer trabalho; se tiver um pedaço de toucinho pra temperar, muito bem, é luxo. O de todo dia é o feijão com farinha pura.

O feijão, base da alimentação do sertanejo, pode ser do tipo verde, maduro ou seco. O verde come-se ainda na vagem, cortado em pedaços. O maduro come-se como o seco, ou seja, cozido e temperado, sendo a nata do leite e o toucinho de porco, feito torresmo, alguns dos acompanhamentos mais utilizados. O baião-de-dois é um dos pratos tradicionais da cozinha nordestina, sendo muito mais do que a mistura do feijão com arroz. Várias receitas existem, no entanto o baião-de-dois cearense é um dos mais apreciados em todo Brasil.

Informa Couto Filho (2004) que o baião-de-dois surgiu em decorrência do uso das sobras do feijão e do arroz das mesas dos fazendeiros, levadas pelas mulheres dos vaqueiros para casa em única panela. Comenta ainda que o nome desta comida se originou de uma visita que Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga fizeram à casa de um fazendeiro em Barbalha (CE), o senhor Adão Apolinário. Conta que a comida estava atrasando e Adão começou a apressar sua mulher, que, cada vez que ia à cozinha, mexia nas panelas da mistura de arroz e feijão. A mulher reclama e pede ao convidado que chame o marido para fora, senão não vai ter comida, pois cada vez que levantava a tampa da panela, atrasava o cozimento. Ao servirem a mesa, o Cantor, em homenagem ao fazendeiro, faz alguns acordes de baião (música em moda na época), que em

parceria com o amigo Humberto Teixeira, compõe “baião-de-dois”:

Capitão que moda é essa, deixe a tripa e a cuié Home não vai na cozinha, que é lugá só de mulhé Vô junta feijão de corda, numa panela de arroz Capitão vai já pra sala, que hoje tem baião de dois Ai, ai, ai, ó baião que bom tu sois

Se o baião é bom sozinho, que dirá baião de dois Ai, ai, baião de dois, ai, ai, baião de dois (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira)

Conforme explica Rachel, no sertão, a cozinha é sóbria e magra. A carne é pouca e difícil, sendo deixada principalmente para os dias de festa. Segundo essa escritora, no sertão se diz que do carneiro se aproveita tudo, menos o berro, o que pode ser comprovado nos pratos como a panelada, a buchada, o sarrabulho ou simplesmente pelo carneiro assado, cozido ou guisado. A paçoca, feita de carne seca, farinha e temperos, é pisada no pilão, e pode acompanhar qualquer comida. É também muito apreciada mesmo pura, com café ou acompanhada com banana. Os preparados à base de milho também são muito comuns durante todo o ano, mas principalmente são bem explorados nas festas juninas. Pode-se mencionar a canjica, a pamonha, o mugunzá e o cuscuz e suas diversas variações, dentre outros.

O peru, grande animador das mesas nas grandes festas, é também muito presente nos costumes do sertanejo. Além dele, as galinhas, os patos e o capote (galinha- d’angola) estão sempre presentes nos quintais, compondo os hábitos alimentares no sertão cearense.

O peixe da água doce, dos poucos açudes que se pode apreciar, é igualmente um alimento presente, e, como relata Rachel, as casas sertanejas parecem ter um cheiro impregnado de peixe. Frito na brasa com farinha, ou feito cozido com pirão e arroz, são as maneiras mais comuns de apreciar a curimatã, o cará, a tilápia, dentre outros.

Dentre as bebidas mais apreciadas, estão o café, torrado em casa, como na fazenda Não-me-Deixes, o aluá, à base de rapadura, cravo, canela, erva-doce e gengibre e a cajuína, inventada pelo farmacêutico Rodolpho Teófilo, feita a partir do caju doce, conhecimento sobre o seu preparo, e muita paciência, conforme descreve Rachel.

obra a fome do povo sertanejo, infortúnio este que contrasta com as delícias que esta terra pode oferecer, quando a natureza lhe é pródiga. Conforme explicita essa autora,

Só comparo o Nordeste à Terra Santa. Homens magros, tostados, ascéticos. A carne de bode, o queijo duro, a fruta de lavra seca, o grão cozido em água e sal. Um poço, uma lagoa é como um sol líquido, em torno do qual gravitam as plantas, os homens e os bichos. Pequenas ilhas d’água cercadas de terra por todos os lados, e em redor dessas ilhas a vida se concentra.

O mais é a paz, o sol, o mormaço.

2.4 A fome

Em contraposição àquela abordagem das tentações provocadas pelo alimento, o que pressupõe sua existência (e até a fartura), a temática da fome apresenta o outro lado da moeda, ou seja, é também um grande problema o fato de não ter o que comer. Na Bíblia, podemos encontrar referências à fome desde o Gênesis23 até o Apocalipse24, e suas conseqüências mais evidentes são: febre e peste violenta25; tristeza e lamentações26; desgaste do corpo27 e finalmente a morte28. A fome é um tema presente nas sagradas escrituras, e parece, neste contexto, ser conseqüência tanto da pobreza material quanto espiritual.

A poesia também ressignifica a fome, nas palavras de Rubem Alves (2005, p.51):

Duas tristezas.

A primeira é não ter fome quando a comida está servida na mesa. A segunda é ter fome quando não há comida na mesa.

Entre essas duas tristezas a vida acontece.

O encontro entre fome e comida tem o nome de alegria.

A literatura brasileira encontra-se permeada das histórias de sofrimento do povo nordestino em virtude das agruras da seca e, consequentemente, da fome. Um trecho

23 “Seguir-se-ão sete anos de fome, e toda aquela abundância será esquecida na terra do Egito, e a fome consumirá a terra” (Gn 41:30)

24 “E olhei, e eis um cavalo amarelo e o seu cavaleiro, sendo este chamado Morte: e o Inferno o estava seguindo, e foi-lhes dada autoridade sobre a quarta parte da terra para matar à espada, pela fome, com a mortandade e por meio das feras da terra”. (Ap. 6:8)

25 “Consumidos serão pela fome, devorados pela febre e peste violenta [...]”(Dt. 32:24)

26 “Envergonhai-vos, lavradores, uivai, vinhateiros, sobre o trigo e sobre a cevada; porque pereceu a messe do campo”. (Jl 1:11)

27 “Porque lhes faltará o pão e a água, espantar-se-ão uns com os outros, e se consumirão nas suas iniqüidades”. (Ez. 4:17)

28 “Sim, assim diz o Senhor dos Exércitos: Eis que eu os punirei: os jovens morrerão à espada, os seus filhos e as suas filhas morrerão de fome”. (Jr. 11:22)

de Vidas Secas, de Graciliano Ramos (2005, p.14), traduz dramaticamente o drama vivido por Fabiano, um sertanejo andarilho fugindo da fome e da sede, juntamente com sua família, quando a cachorra Baleia, em meio à aridez da caatinga, chega com um preá para servir de alimento para todos:

Iam-se amodorrando e foram despertados por Baleia, que trazia nos dentes um preá. Levantaram-se todos gritando. O menino mais velho esfregou as pálpebras, afastando pedaços de sonho. Sinhá Vitória beijava o focinho de Baleia, e como o focinho estava ensangüentado, lambia o sangue e tirava proveito do beijo.

Na perspectiva de Josué de Castro29, a fome é mais conseqüência de uma má distribuição de recursos decorrente de abismos socioeconômicos ocasionados por questões políticas que favorecem interesses de poucos grupos dominantes, do que de saturação dos recursos naturais em virtude do aumento crescente do contingente demográfico. Caracterizada como um fenômeno geograficamente universal, a fome sempre esteve presente na história da humanidade. Conforme Castro (2003, p.14), seus efeitos deletérios atingem não só o corpo, mas também a alma de suas vítimas:

A fome age não apenas sobre os corpos das vítimas da seca, consumindo sua carne, corroendo seus órgãos e abrindo feridas em sua pele, mas também age sobre seu espírito, sobre sua estrutura mental, sobre sua conduta moral. Nenhuma calamidade pode desagregar a personalidade humana tão profundamente e num sentido tão nocivo quanto a fome, quando atinge os limites da verdadeira inanição. Excitados pela imperiosa necessidade de se alimentar, os instintos primários são despertados e o homem, como qualquer outro animal faminto, demonstra uma conduta mental que pode parecer das mais desconcertantes.

Segundo Valente (2002), a história das carências alimentares e nutricionais no Brasil tem início com a ocupação da nova colônia pelos portugueses em 1500. A recusa dos nativos escravizados a comer em cativeiro os levava inevitavelmente à morte. São mais de 500 anos de história de fome e carências nutricionais atribuídos às graves desigualdades sociais, dentre elas, a extrema concentração da terra, da riqueza e da renda. Freyre (1999, p.35) descreve esta situação de insuficiência alimentar, ao comentar aspectos da formação da sociedade brasileira e a ineficiência no trato destas

29 Médico brasileiro, nascido no Recife em 1908, foi Presidente do Conselho para Alimentação e Agricultura das Nações Unidas (FAO), entre 1952 e 1956, e da Associação Mundial de Luta Contra a Fome (ASCOFAM). Recebeu o “Prêmio Internacional da Paz”, em 1954. Foi membro de várias Associações e Academias no Brasil e no Exterior. Exilado na França, faleceu em Paris em 1973. In: www.josuedecastro.com.br.

questões:

Do que pouco ou nenhum caso tem feito essa sociologia, mais alarmada com as manchas da mestiçagem do que com as da sífilis, mais preocupada com os efeitos do clima do que com os de causas sociais suscetíveis de controle ou retificação, e da influência que sobre as populações mestiças, principalmente as livres, terão exercido não só a escassez de alimentação, devida à monocultura e ao regime do trabalho escravo, como a pobreza química dos alimentos tradicionais que elas, ou antes, que todos os brasileiros, com uma ou outra exceção regional, há mais de três séculos consomem, é da irregularidade no suprimento e da má higiene na conservação e na distribuição de grande parte desses gêneros alimentícios. São populações ainda hoje, ou melhor, hoje mais do que nos tempos coloniais, pessimamente nutridas.

Esta situação descrita por esse autor, referente ao vivido no século XV, apresenta características ainda tão presentes em pleno século XXI, razão pela qual a preocupação acerca da segurança alimentar30 dos brasileiros é assunto discutido desde os protestos de Josué de Castro até os dias de hoje.

Em versão atualizada e adaptada por Valente (2002, p.137), a partir de um estudo de caso elaborado para a Conferência Internacional sobre Segurança Alimentar e Nutricional como Direito Humano, realizada em Randburg, Gauteng, África do Sul, em março de 1999, entende-se que “o acesso à alimentação é um direito humano em si mesmo, na medida em que a alimentação constitui-se no próprio direito à vida. Negar esse direito é, antes de mais nada, negar a primeira condição para a cidadania, que é a própria vida”.

Desta forma, ter “o pão de cada dia” simboliza ter direito à vida, em qualidade e em quantidade satisfatória, o que denota o comer bem, conforme será comentado a seguir.