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Uma análise consequencialista do artigo 20 do Código Civil

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE N O 4.815: MEMORIAL APRESENTADO PELO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO

2. Liberdade acadêmica e de pesquisa

2.4 Uma análise consequencialista do artigo 20 do Código Civil

São duas as consequências diretas da aplicação que vêm sendo dada ao art. 20 como desincentivo à pesquisa e à produção do conhecimento, contrariando o disposto no art. 218 da Constituição, que determina que o “Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científi co, a pesquisa” e concederá meios para o trabalho daqueles que se ocupem dessas atividades.

A primeira consequência atenta contra a existência das principais institui- ções culturais e científi cas responsáveis pela identifi cação, guarda, manutenção e difusão de nossos documentos históricos de todas as naturezas. Atenta contra o esforço dos arquivos nacionais, públicos e privados, já tão necessitados de es- tímulo e de apoio, e não de cerceamentos e desincentivos. Imaginemos o futuro de uma Fundação Casa de Rui Barbosa ou de um Instituto Joaquim Nabuco, Instituto Gilberto Freyre, se para conhecermos Rui Barbosa ou Gilberto Freyre o Brasil tivesse antes de pedir permissão a seus herdeiros? Quantos? Onde estão? E se alguns concordam, outros negam? O que seria hoje do CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil) da FGV, de reputação internacional, com seu famoso Dicionário Histórico-Biográfi co Brasileiro — DHBB com mais de 7.000 verbetes? Teria de pedir antes autori- zação a todos os herdeiros?

Essa é, pois, a primeira consequência da aplicação do art. 20 tal como vem sendo feita em setores do judiciário: um ataque frontal à existência de nossas instituições arquivológicas? Serão arquivos viciados pelos Guardiões da Noite.

A segunda consequência seria diretamente no exercício da profi ssão de pes- quisador, escritor, historiador, editor, e todas as que participam deste processo de conhecimento.

Escrever um trabalho histórico, relato jornalístico ou biografi a toma muito tempo e consome muitos recursos. Nenhum editor apoiará um projeto que, ao fi nal de anos de investimento, possui uma chance signifi cativa de ser retirado de circulação. Tampouco haverá pesquisadores dispostos a investir meses e anos de sua vida, especialmente sem editores que os apoiem, para escrever um livro cuja circulação dependerá dos humores de todas as pessoas retratadas na obra ou até

de seus familiares. Coloca-se em risco o exercício da atividade dos pesquisado- res, historiadores, jornalistas que correm o risco de serem punidos caso o seus trabalhos contrariem interesses individuais.

Por isso, ao se lançarem neste tipo de empreitada, o editor e o pesquisador procurarão evitar completamente os riscos da censura privada do artigo 20. Para tanto, precisam conseguir autorização prévia. Mas essa garantia é ilusória. Para eliminar o risco de censura privada quando o projeto já estiver avançado ou mesmo concluído, com todo o investimento de tempo e recursos já feito, o editor e/ou o pesquisador precisam da autorização de todas as pessoas retratadas em uma obra de não fi cção. No caso de uma biografi a, por exemplo, mesmo que a família do biografado colabore, a autorização é inócua. Sempre haverá outras pessoas envolvidas — mesmo se Robinson Crusoé tivesse existido, Sexta- -Feira poderia solicitar a censura prévia da obra caso se sentisse prejudicado pelo seu conteúdo. Aliás, esse problema vale inclusive para autobiografi as!

Além disso, de um modo geral, sabendo que possuem o recurso da censura privada, os biografados e seus familiares provavelmente não concederão a autori- zação no início do projeto. Por que autorizariam de imediato, e perder a chance do veto posterior? Decerto desejarão ver primeiro o seu conteúdo. Não podemos supor que agirão apenas no interesse da promoção da pesquisa sobre a história do país. O artigo 20 lhes dá um poderoso instrumento para defender seus inte- resses pessoais e familiares, e é ingênuo supor que, na grande maioria dos casos, deixariam esse instrumento de lado por meio da concessão da autorização prévia.

Este, enfi m, o cenário com que editores e pesquisadores se depararão: um risco permanente, mesmo para trabalhos sem fi ns lucrativos, de sofrer o veto de quaisquer pessoas ou seus familiares retratados na obra. Em meio ao risco, precisam decidir se investem ou não seu tempo e seus recursos materiais e inte- lectuais em um dado projeto de pesquisa.

Fazer um discurso em praça pública ou postar sua opinião em um blog é diferente de escrever um livro, que é uma atividade muito mais custosa e demo- rada. Devido a esses custos, há duas reações possíveis ao cenário descrito acima. Primeiro, uma diluição do conteúdo dos livros de não fi cção. Se é impossível obter a autorização de quem pode vir a se sentir prejudicado pelas revelações do livro, que se cortem quaisquer trechos mais pesados. Com isso, no Brasil recriado pelo artigo 20, teremos hagiografi as e odes em vez de trabalhos histó- ricos e jornalísticos sérios, imparciais e com algum tom crítico. Segundo, cada vez menos trabalhos de não fi cção, tanto acadêmicos quanto jornalísticos, serão publicados no país. Ou seja: se o artigo 20 permanecer como está, estaremos diante de um cenário em que não se proíbe diretamente a expressão intelectual

e a investigação científi ca, mas se criam incentivos poderosos para que ela não seja exercida. Esses são efeitos previsíveis do não reconhecimento da inconstitu- cionalidade do artigo 20 do Código Civil.

O que ocorreria se, para publicar a sua tese de livre docência na USP (“As Barbas do Imperador — D. Pedro II, um monarca nos trópicos”30) a autora Li-

lia Moritz Schwarcz tivesse que pedir autorização para os familiares das mais de 250 pessoas que são citadas na obra? Ou se fosse necessária a autorização prévia das famílias de todas as mais de 6500 personagens da vida política republicana nacional retratados nos verbetes do Dicionário Histórico-Biográfi co?31 E se Evan-

dro Lins e Silva tivesse que pedir autorização de mais de 900 pessoas menciona- das em seu depoimento autobiográfi co “O Salão dos Passos Perdidos”32?

E como fi caria o trabalho da Comissão da Verdade, que utiliza biografi as e documentos para reconstruir parte da história no período da ditadura, se seus escritos pudessem ser proibidos por qualquer um neles mencionado? E se, no processo de nomeação de Ministros para o Supremo Tribunal Federal, não tivéssemos acesso a escritos jornalísticos ou biográfi cos contendo informações sobre suas vidas e carreiras?

Por fi m, o IHGB entende que se houver uma publicação com fatos que não estejam corretos só há um remédio possível: mais pesquisa, mais transparência, mais publicações. Essa “correção” não poderá ser ofi cial (por meio do Estado- -juiz) e nem familiar. É o livre mercado do conhecimento que fará a regulação dessa realidade. É preciso haver liberdade para se repensar e se reescrever temas já pesquisados. E, se houver dano, a lei já determina que este seja indenizado, não sendo possível estabelecer-se um regime de censura prévia.

Como se vê, portanto, a manutenção do artigo 20 do Código Civil terá efeitos extremamente nocivos sobre todas as áreas da vida dos brasileiros em 30 Schwarcz, Lilia Moritz. “As Barbas do Imperador - D. Pedro II, um monarca nos trópicos”. Companhia

das Letras, 2006.

31 ABREU, Alzira Alves; BELOCH, Israel (Coord.). Dicionário Histórico-Biográfi co Brasileiro: 1930-1983, Centro de Pesquisa e Documentação de Historia Contemporânea do Brasil. Rio de Janeiro: Forense- -Universitaria: FINEP, 1984. O Dicionário Histórico-Biográfi co Brasileiro, abrange o período his- tórico iniciado com a Revolução de 1930 e foi concebido com a fi nalidade básica de oferecer aos in- teressados e estudiosos de nossa história contemporânea informações organizadas e sistematizadas que nenhum outro trabalho por si só reuniu. A preocupação básica do Dicionário está voltada para a história política. No plano biográfi co, foram incluídos todos os ocupantes dos mais relevantes cargos políticos e de repercussão política, omitindo-se apenas os interinos e os suplentes de curto exercício do mandato. A malha de personagens as sim detectados recobre o território decisivo da ação polí tica no país. Na primeira edição o Dicionário continha 3.741 verbetes de natureza biográfi ca e 752 relativos a instituições, eventos e conceitos. O Dicionário foi atualizado e na segunda edição houve um acréscimo de 2.150 novas entra- das, somando um total de 6.620 verbetes.

32 SILVA, Evandro Lins e. “O Salão dos Passos Perdidos: depoimento ao CPDOC”, Eds. Fundação Getu- lio Vargas e Nova Fronteira.

que se precise produzir informação e conhecimento sobre a nossa sociedade e seus personagens.

3. Conclusão

Um artigo que permite que interesses individuais prevaleçam sobre a liberdade de pesquisa e acadêmica empobrece nossa história. O historiador ou pesquisa- dor, ao se deparar com a possibilidade de ver seu trabalho e toda sua pesquisa descartados em razão da falta de autorização das pessoas retratadas ou de seus herdeiros, não hesitará em desistir de sua obra. O mesmo ocorrerá com jornalis- tas e biógrafos, cujo trabalho é, em larga medida, fonte de informações cruciais para a pesquisa acadêmica.

Essas restrições congelarão a pesquisa acadêmica e da publicação de não fi cção nacional sobre o Brasil. A edição de obras de não fi cção se tornará uma sistemática de negócios e de censura, impondo riscos e custos elevadíssimos a quem quer que seja, se atreva a investir seu tempo, seus recursos e seu intelecto a investigar nossa história. No mundo criado pela aplicação do artigo 20, o autor vê a publicação de seu texto subordinada ao interesse econômico e à boa von- tade dos retratados e de seus herdeiros, que a qualquer momento podem alegar violação de sua “honra”, “boa fama” ou “respeitabilidade”.

Essa situação viola duplamente a Constituição. Viola o direito individual dos pesquisadores, no curto prazo, e o valor constitucionalmente protegido da produção de conhecimento, no longo. Não há espaço em nosso ordenamento e em nossa realidade para o artigo 20 do Código Civil. Este dispositivo, ao pos- sibilitar o impedimento à publicação de diversas obras acadêmicas e jornalísti- cas, não só afeta o direito do autor de publicá-las, mas também as instituições acadêmicas de manterem seus arquivos de pesquisa, e o direito à informação dos brasileiros, que deve poder ter acesso a livros e textos que enriquecem seu conhecimento sobre a cultura e história do país.

4. Do Pedido

Diante de todo o exposto, o Instituto Histórico e Geográfi co Brasileiro espera que a presente contribuição, oferecida na forma de memorial, auxilie esse Su- premo Tribunal Federal a bem decidir a presente causa.

Espera que esse Supremo Tribunal Federal reconheça e declare a incons- titucionalidade, sem redução de texto, dos artigos 20 e 21 do Código Civil, no ponto em que permite interpretação da necessidade do consentimento da

pessoa biografada e das pessoas retratadas como coadjuvantes (ou de seus fami- liares, em caso de pessoas falecidas) para a publicação ou veiculação de obras biográfi cas.

Por fi m, reitera os pedidos de que seja admitida sua participação como Amicus Curiae nos autos da ADIn no 4.815 e que seja autorizada a realização de

sustentação oral na sessão de julgamento. Termos em que,

Pede Deferimento.

Do Rio de Janeiro para Brasília, 25 de janeiro de 2013.

Th iago Bottino Adv. 102.312 OAB/RJ

Diego Werneck Arguelhes Adv. 140.280 OAB/RJ Ivar Hartmann

Professor de Direito

Celina Beatriz Mendes de Almeida Adv. 155.796 OAB/RJ Fernando Angelo Ribeiro Leal

Professor de Direito

Julia De Lamare Acadêmica de Direito Paula Duarte

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