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O panorama breve traçado na secção anterior deixou implícito a emergência de um interesse renovado na integração curricular, que não se encontra apenas no contexto

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O trabalho de sistematização sobre os modos de realização pedagógica da integração curricular, elaborado por Henrique Guimarães, Olga Pombo e Teresa Levy, é bastante elucidativo da diversidade de possibilidades para a implementação de situações de ensino integrado que visem alguma articulação dos saberes disciplinares (Guimarães, Pombo & Levy, 1994). Nele se encontra também um esclarecimento conceptual de termos como multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e transdisciplinaridade, considerando-os justamente como distintos modos de intensidade da integração curricular em atividades não monodisciplinares (ou situações de ensino integrado).

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de práticas curriculares de cariz experimental e pontual que se desenvolvem em diversos âmbitos do sistema educativo (sobretudo no subsistema prático-pedagógico), mas também se encontra em práticas sistematizadas de reflexão e de produção de conhecimentos, que têm contribuído para fundamentar e legitimar a opção pela integração curricular e a defesa em prol de um currículo integrado. Seguindo o pensamento de autores que, de forma mais explícita, têm contribuído para a identificação das razões pelo interesse renovado na integração curricular (Santomé, 1998; Alonso, 1998; 2004; Hargreaves, Earl, Moore & Manning, 2001; Beane, 2002; Drake & Burns, 2004), é possível discernir três grandes grupos de razões que, do nosso ponto de vista, se encontram sob o efeito convergente da transformação dos modelos de referência em distintos domínios da atividade humana: no campo científico (razão epistemológica), no campo social (razão sociocultural) e no campo pedagógico (razão psicopedagógica).

Razão epistemológica: a crise do pensamento cartesiano

Nas últimas décadas, são várias as vozes que sugerem que a renovação dos currículos escolares deve permitir à escola superar a situação limite em que se encontra face à crescente especialização e fragmentação disciplinar dos saberes. O caráter necessário da renovação dos curricula, no sentido de se viabilizar cada vez mais a «integração dos saberes», parte frequentemente do pressuposto (não consensual) de que são graves as consequências de um ensino tendencialmente cada vez mais especializado, fragmentário, abstrato e vazio de sentido (Pombo, 1993a; Alonso, 2004; Araújo, 2008). Esta visão não decorre de uma arbitrariedade abstrata, mas situa-se num contexto histórico que anuncia a crise4 do chamado paradigma cartesiano5 ou o fim (desejado) da sua hegemonia e, simultaneamente, se reclama a necessidade urgente de se colocar em prática paradigmas mais solidários e mais compreensivos face à complexidade inerente aos fenómenos que nos rodeiam. O inventário crítico do carácter fragmentário e

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O sentido da palavra «crise» que mobilizamos no contexto deste trabalho segue de perto o entendimento que lhe é atribuído por Hannah Arendt, em A crise na educação (Arendt, 1961). Para esta filósofa qualquer «crise» ou «situação crítica» comporta duas facetas essenciais: 1) tem sempre como efeito fazer cair máscaras e destruir pressupostos; e 2) constitui uma oportunidade para explorar e investigar tudo aquilo que se encontra na essência de um determinado problema. Uma crise é, portanto, uma circunstância crítica que nos força a regressar às questões essenciais e exige de nós respostas, novas ou antigas. Assim, entendemos o conceito de «crise» como a manifestação de uma produtividade crítica que nos proporciona a oportunidade de questionar, refletir e procurar respostas que nos possibilitem mudar o rumo dos acontecimentos.

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São diversos os rótulos utilizados na literatura para designar aquilo que se convencionou chamar de «paradigma cartesiano», entre os quais se podem destacar expressões como paradigma/racionalidade/pensamento «clássico», «positivista», «atomatizante», «analítico», «mecanicista», «iluminista», «simplificador», «instrumental» e «newtoniano».

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hiperespecializado do conhecimento, associado à denúncia do esgotamento ou da incompletude do pensamento clássico para explicar o mundo, tem sido feito de forma consistente por vários autores, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, embora assuma diversas intensidades e distintos modos de expressão.

Um extenso rol de críticas ao paradigma cartesiano, encontra-se na obra do físico teórico romeno Basarab Nicolescu, presidente e fundador do International Center for

Transdisciplinary Research and Studies (CIRET), para quem o processo da especialização

exagerada coloca «em perigo a nossa própria existência, pois faz com que qualquer líder se torne, queira ao não, cada vez mais incompetente» (Nicolescu, 2000, p.10). No seu pensamento, vamos encontrar a ideia que os atores de uma determinada sociedade parecem impotentes para impedir o retrocesso inevitável da sua evolução social e intelectual. Tudo se passa, diz-nos Basarab Nicolescu, «como se os conhecimentos e os saberes que uma civilização não para de acumular não pudessem ser integrados no interior daqueles que compõem esta civilização» (ibidem, p.9). Deste ponto de vista, encontrar uma inteligibilidade alternativa à lógica da hiperespecialização, mais do que um desafio ou um apelo à «integração de saberes», é uma condição (ou algo que se impõe como um imperativo) para evitar o declínio das civilizações.

Podemos observar argumentos do mesmo género na obra do filósofo e sociólogo francês Edgar Morin, para quem a «pseudo-racionalidade» que se presumiu ser a única durante muito tempo, além de ter atrofiado a nossa compreensão e visão a longo prazo, é manifestamente insuficiente para tratar os problemas mais graves para a humanidade. A educação do futuro, segundo pensa, deveria preparar o espírito humano para afrontar os riscos permanentes da «cegueira do conhecimento», ensinar métodos que promovam um «conhecimento pertinente» e tornar como objetos de todo o ensino a «condição humana», a «identidade terrena», a «incerteza», a «compreensão» e a «ética». Subjacente a esta reflexão encontra-se, como em muito outros autores, a ideia de que é na conceção determinista e mecânica do mundo, postulada no Discurso do Método de René Descartes, que reside a principal causa da «atrofia da disposição mental natural para contextualizar e globalizar», gerando inúmeros problemas humanos nos vários sectores da vida social, nomeadamente nos campos científico e educacional. Edgar Morin, em Os sete saberes para a educação do futuro, descreve este fenómeno nos seguintes termos:

Até meados do século XX, a maioria das ciências obedecia ao princípio da redução que diminui o conhecimento de um todo ao conhecimento das

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suas partes, como se a organização de um todo não produzisse qualidades ou propriedades novas em relação às partes consideradas separadamente. O princípio da redução conduz, naturalmente, a reduzir o complexo ao simples. Aplica às complexidades vivas e mecânicas a lógica mecânica e determinista da máquina artificial. Também pode cegar e conduzir à eliminação de tudo aquilo que não seja quantificável nem mensurável, suprimindo assim o humano do humano, quer dizer, as paixões, emoções, dores e alegrias. Igualmente, quando obedece estritamente ao postulado determinista, o princípio da redução oculta o risco, a novidade, a invenção. Como a nossa educação nos ensinou a separar, compartimentar, isolar e não ligar os conhecimentos, o conjunto destes constitui um puzzle ininteligível. As interações, as retracções, os contextos, as complexidades que se encontram no no man`s land entre as disciplinas tornam-se invisíveis. Os grandes problemas humanos desaparecem para benefício dos problemas técnicos e particulares. A incapacidade conduz à atrofia da disposição mental natural para contextualizar e globalizar (Morin, 2002, pp.46-47).

O princípio da redução e disjunção, de que nos fala Edgar Morin, configura-se como uma das manifestações mais característica da condição fragmentada do saber, presente em todos os sectores da atividade humana, incluindo o domínio da produção de saberes nas instituições de ensino e qualquer domínio que implique processos de tomada de decisão sobre a vida humana: politico, económico, cientifico, médico, etc. (Fourez, Maingain & Dufour, 2008). Ao mesmo tempo, esta tendência generalizada para a fragmentação tende a ser vislumbrada como um dos fundamentos que justifica a necessidade de integrar os conhecimentos resultantes das diversas disciplinas6. No campo curricular, o reflexo da condição fragmentada do saber tem sido descrito por vários autores que, sob olhares diversos, têm analisado os limites e as possibilidades do modelo de organização curricular dominante7 – o modelo baseado em disciplinas -, dos

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Como nos lembra Maria do Céu Roldão, importa aqui distinguir dois conceitos que tendem a ser tratados de forma pouco precisa: o conceito de disciplina no sentido científico (disciplina do saber) e o conceito de disciplina relativo ao campo curricular (disciplina do currículo). Procurando clarificar as hesitações terminológicas neste âmbito, a autora concretiza assim a distinção: «a estrutura curricular disciplinar é uma construção organizacional, é uma construção que tem cerca de século e meio, e correspondeu ao modo como a escola se constituiu como organização e segundo lógicas de produção, influenciadas na altura por modelos tayloristas, que todavia persistem, e que orientaram a organização do trabalho para esta estruturação em quadrícula, em que cada espaço se designa por disciplina (sentido curricular). É certo que em muitos casos se põe lá dentro também um campo especializado de saber (disciplina científica), mas a principal lógica que conduz à organização curricular em disciplinas (espaços, segmentos da organização) não é uma lógica de organização de saber, é sim uma lógica de organização do funcionamento da instituição e de tudo o que lhe está correlativo, como seja a organização do tempo, do espaço, da formação, da contratação, etc .» (Roldão, 2002, p.5).

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O «sucesso» do modelo curricular baseado em disciplinas, consubstanciado na sua permanência inquestionável ao longo tempo, resulta, de acordo com a análise de António Ribeiro, do «pressuposto subjacente de que as disciplinas constituem um processo sistemático e eficiente de transmitir a «herança cultural» bem como de desenvolver processos e aptidões intelectuais, no modelo tradicional de formação de professores que suporta tal modelo e na conveniência ou facilidade de organização escolar que claramente o favorece» (Ribeiro, 1992). Apesar do sucesso alcançado, nos últimos anos o

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quais se destacam, entre muitos outros, os trabalhos de Ribeiro (1992), Beanne (2000), Roldão (2002), Goodson, Anstead & Mangan (2003), Alonso (2004), Rocha, Basso & Borges (2007), Araújo (2008), Fourez, Maingain & Dufour (2008), Veiga-Neto (2008), Hissa (2008) e Lopes (2008). Muitas das análises começam justamente por caracterizar a manifestação dos princípios da redução e disjunção, que enformam a racionalidade cartesiana, no contexto curricular, evidenciando como o processo de «territorialização ou atomização dos saberes» e a «parcelização das tarefas» tem vindo a sedimentar-se progressivamente na educação formal. Ulisses F. Araújo, por exemplo, no seu trabalho intitulado Temas transversais e a estratégia de projetos, descreve os reflexos «dessa maneira reducionista de pensar» em diversos planos da vida e do trabalho escolar, nomeadamente no que diz respeito à arquitetura curricular, à formalização dos objetos de estudo nos manuais escolares, à organização e desenvolvimento dos conteúdos curriculares em sala de aula e às formas sociais de organização do trabalho escolar (Araújo, 2008). Gérad Fourez, Alain Mingain e Barbara Dufour, na reflexão que fazem sobre o que está subjacente ao «sentido de um novo paradigma cultural e cognitivo para a escola», oferecem-nos uma visão mais sintética do modo como a nossa cultura escolar nos ensina a separar, compartimentar, isolar e a não ligar os conhecimentos, que se configuram, no dizer de Edgar Morin, como um puzzle ininteligível:

A organização tradicional do ensino secundário, na maior parte dos países ocidentais, assenta na repartição do tempo escolar em tempos disciplinares. A uma disciplina corresponde um determinado número de horas semanais, se bem que os saberes se apresentem, à primeira vista, aos alunos como segmentados. Esta repartição temporal e cognitiva decorre do reconhecimento, pela cultura escolar, de «grandes corpos de saberes» constituídos pelas comunidades científicas: Matemática, Ciências da Natureza, Geografia, Economia, Filosofia, Filologias… A diferenciação dos sabres preexiste, pois, à organização escolar e determina as compartimentações. Para lá da repartição do horário, esta especialização dá lugar a programas e a didáticas especificamente disciplinares (Fourez, Maingain & Dufour, 2008, p.17).

modelo de organização do currículo baseado em disciplinas tem vindo a ser questionado por vários

especialistas e investigadores de diversas áreas do campo da educação. Luisa Alonso sistematiza os principais argumentos que têm sido mobilizados em torno da sua crítica, organizando-os em oito tópicos: 1) «a falta de atenção aos interesses e motivações intrínsecos aos alunos»; 2) «a descontextualização da aprendizagem»; 3) «a prevalência de uma visão simplista, compartimentada e estática da realidade»; 4) «o desequilíbrio do currículo e da educação integral que este deveria proporcionar»; 5) «a insuficiência do diálogo da escola com o meio envolvente»; 6) «o impedimento de os alunos poderem estabelecer os nexos entre as disciplinas»; 7) «a inflexibilidade organizativa, própria da estrutura do currículo disciplinar»; e 8) «o facto de o trabalho disciplinar se basear prioritariamente na utilização dos manuais» (Alonso, 2004, p.64-65).

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Embora este retrato sumário nos possa levar a pensar que a fragmentação do conhecimento tem a sua face mais visível no ensino secundário, temos várias análises que sugerem que o «pensamento atomístico» e as «práticas fragmentadas», na forma de representar o saber e a experiência humana, atravessam e predominam as práticas de gestão e desenvolvimento curricular que se desenvolvem em contexto escolar, em todos os níveis de escolaridade, como sugere, a título ilustrativo, o diagnóstico da realidade escolar realizado recentemente por Luisa Alonso:

Se olharmos para a escola actual, ainda encontramos a predominância de uma estrutura curricular dominada por uma forma de pensamento atomístico e de práticas fragmentadas, na forma de representar o saber e a experiência humana. No 1.º ciclo do ensino básico, em que o(a) professor(a) tem nas suas mãos a possibilidade de uma gestão integrada do currículo, esta fragmentação persiste na forma desarticulada e descontextualizada de trabalhar as diferentes áreas, sem um sentido e finalidade comum, e na hierarquia do conhecimento que se estabelece no currículo, dando prioridade às chamadas áreas académicas em detrimento das áreas artísticas, tecnológicas e motoras, limitando a formação global dos alunos (Alonso, 2004, p.5).

Enfim, todos estes argumentos nos ajudam a compreender que é no quadro das análises e dos diagnósticos que ao longo do tempo têm vindo a sublinhar as características e os efeitos (nefastos) da hiperespecialização do conhecimento, enquanto fenómeno globalmente generalizado, que também tem vindo a ser reconhecida a crise que o currículo atravessa enquanto «máquina disciplinar moderna» (Veiga-Neto, 2008; Lopes, 2008). Trata-se, portanto, de uma crise sintonizada com problemas e questões que se enquadram num contexto bastante mais amplo e complexo, suscitando, por isso, diversos problemas de natureza epistemológica. É olhando, justamente, para a vertente problemática do conhecimento, da sua natureza e validade em contexto escolar, que Maria do Céu Roldão, no âmbito do III Simpósio do Grupo de Estudos para o Desenvolvimento de Educação de Infância, subordinado ao tema Práticas Educativas -

Transições e Transversalidades, que decorreu em Évora a 1 e 2 de março de 2002,

procurou desmistificar a aparente oposição entre «transversalidade» e «especificidade» do conhecimento escolar. A tese que a autora defendeu nesta reflexão «é que este jogo de transversalidade na especificidade não é um jogo de oposições, é antes um jogo de articulações» (Roldão, 2002, p.13)8. Sem deixar de assinalar os efeitos pouco produtivos

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Os argumentos que suportam esta tese partem pressuposto que o currículo e o percurso escolar representam a responsabilidade da escola para proporcionar o acesso ao conhecimento considerado necessário num dado tempo e contexto. Por conhecimento, no âmbito escolar, entende-se o «conhecimento utilizável» que expressa a intencionalidade do currículo escolar, isto é, o

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do raciocínio disjuntivo que conduzem, frequentemente, a «leituras muito perversas no que diz respeito ao fechamento em perspectivas supostamente opostas» (ibidem, p.3), e por acreditar que tanto o «conhecimento integrado» como o «conhecimento disciplinar» constituem a finalidade central do currículo escolar, a autora desenvolve os seus argumentos em torno das «falsas dicotomias» que se vão estabelecendo entre vários conceitos como, por exemplo, «saberes específicos/saberes integrados», «especialização/integração», «lógica analítica/lógica temática», «prática disciplinar/prática interdisciplinar», «conhecimento especializado/conhecimento holístico», etc. Enfatizando a relação dialética entre tais conceitos, para Maria do Céu Roldão o que está em causa não é uma aposta numa abordagem transversal, integradora ou temática (expressa na criação de áreas ditas áreas transversais ou no incentivo ao trabalho de projeto e interdisciplinar9), em detrimento ou em oposição à abordagem analítica (expressa na lógica das disciplinas). As abordagens de tipo disciplinar são, segundo pensa, inevitáveis e desejáveis para construção do conhecimento escolar, devendo ser utilizadas desde o início do percurso escolar. Todavia, como aconselha a autora, devem ser utilizadas «em articulação inteligente e não em guettos formais que são visíveis desde as próprias práticas do 1.º ciclo, separando aprendizagens que têm toda vantagem em se relacionar» (ibidem, p.11).

Esta reflexão encerra um aspeto que emerge recorrentemente nos trabalhos analisados e que, num certo sentido, está relacionado com o «complexo de especialização»10 do qual nos fala João Rocha, Nara Basso e Regina Borges em

Transdisciplinaridade. A natureza íntima da educação científica (Rocha, Basso & Borges,

«conhecimento traduzido em competências, já que não há competências que não estejam solidamente

sustentadas em conhecimento» (ibidem, pp.1-2).

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Segundo Maria do Ceu Roldão, a discussão curricular sobre a interdisciplinaridade raramente se faz, entre nós, no sentido da inter-relação dos saberes, tendendo a prevalecer o sentido referenciado a práticas de comunicação e colaboração no trabalho que as pessoas desenvolvem (Roldão, 2002, p.6).

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O «complexo de especialização» é entendido como o resultado de um condicionamento que atua sobre a psique, possuindo o potencial de alimentar continuamente a ideia da necessidade da disciplinaridade e da especialização, tornando-a como uma contingência da condição humana. Segundo pensam os autores, trata-se de um condicionamento imposto externamente desde a mais tenra idade e que se manifesta em diversos contextos de socialização: «Desde pequenas as crianças são levadas a crer que as pessoas têm dons naturais para uma das áreas de especialização existentes, e que elas devem descobrir essa área, estudá-la exclusivamente e trabalhar nela pelo resto da existência. (…) A sociedade contempla a especialização pelos olhos dos especialistas, que por sua vez apenas reconhecem a existência de outras especializações por uma questão de formalidade académica, e, claro, porque entendem que a falência de uma delas poderia significar o descrédito completo do sistema, justamente no momento em que recebem salários por seu trabalho ultra-específico. Seria uma espécie de suicídio profissional, que ninguém deseja. Então a disciplinaridade e a especialização continuam sendo aplicadas, premiadas e ensinadas para as novas gerações, num ciclo difícil de romper» (Rocha, Basso & Borges, 2007, pp.29-30).

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2007). Efetivamente, como mostram estes investigadores, embora a crise do paradigma cartesiano venha questionar os limites e as fronteiras das disciplinas, solicitando um olhar multifocal, holístico e integrador de vários saberes, as expetativas que se encontram no horizonte das mudanças paradigmáticas em curso não pretendem anular o contributo das disciplinas ou sequer o desenvolvimento do chamado conhecimento especializado ou analítico. Da mesma forma que se espera que as disciplinas científicas continuem a dispor de bases sólidas mas abertas ao diálogo e à articulação de saberes distintos - desde o saber formal académico e científico das teorias até ao saber informal presente no mundo da vida quotidiana -, também se espera que, no campo da educação, os processos de organização e desenvolvimento curricular prevejam o tratamento das «matérias disciplinares» e, portanto, o desenvolvimento do «conhecimento das parcelas».

Como já notámos na primeira secção, mesmo nos discursos e teorizações mais radicais em relação ao papel das disciplinas escolares - que não assumem as disciplinas como o «eixo vertebrador» do currículo -, é possível discernir que os chamados «conteúdos da cultura superior» continuam ter um lugar importante na forma como se pensa o trabalho escolar11. Entre os vários exemplos ilustrativos que poderíamos mobilizar para ilustrar este facto, destacamos dois: o momento em que Ulisses F. Araújo assume que, na sua conceção de transversalidade, «o ensino de conteúdos científicos e culturais não [é] desprezado» porque, «afinal, sem esses conteúdos também não haverá cidadania» (Araújo, 2008, p.62); e o trabalho de análise que James A. Beane desenvolve acerca do destino das disciplinas escolares no quadro das solicitações para a dissolução das demarcações territoriais, deixando bem declarada a sua intenção de «acabar com a observação prevalecente, mas incorrecta, de que o conhecimento proveniente das disciplinas desaparece na integração curricular» (Beane, 2002, p.11). Em síntese, os apelos à integração curricular, no quadro das transformações paradigmáticas atuais, não suportam a pretensão de se «abandonar o conhecimento das partes pelo conhecimento das totalidades, nem a análise pela síntese, há que conjugá-los» (Morin, 2002, p.50). O que se afigura da maior importância é, como afirma Luisa Alonso, «avançar na

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Para Philippe Perrenoud, o verdadeiro debate curricular «não opõe partidários das disciplinas e