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2.1 O processo de alfabetização: algumas reflexões

2.1.2 Uma breve abordagem sobre os métodos de alfabetização

Conforme já anunciamos no subtópico anterior, no decorrer da história da educação, o cenário escolar, especificamente as concepções em torno do ensino da leitura e da escrita foram alvos de inúmeras mudanças, sendo caracterizadas como inovações pedagógicas (CHARTIER, 2000). De acordo com Chartier (2000), tais inovações, também consideradas invenções técnicas, foram criadas com o objetivo de promover o ensino da língua escrita e, ao longo do tempo, foram julgadas pelos efeitos que produziam.

No contexto da alfabetização, as inovações, sobretudo a criação dos métodos pedagógicos, surgiram em diferentes momentos históricos com a finalidade de promover o ensino eficaz da leitura e da escrita para às crianças e, até os dias atuais, ainda respaldam as práticas pedagógicas de muitos docentes.

O nascimento dos métodos de ensino e até mesmo a substituição de um método por outro, marcado por um processo de ―inovação‖, promoveu intensos debates na história da alfabetização. Isso porque a escola, até os dias atuais, não tem conseguido cumprir efetivamente seu papel social de promover um ensino de qualidade para os aprendizes. Inclusive, o grupo social que mais tem sofrido com a ineficácia da escola e com o fracasso na alfabetização são os menos favorecidos economicamente, ou seja, as crianças, os jovens e adultos pobres (CARRAHER, 1986, MORAIS, 2012).

Na tentativa de promover práticas de ensino eficazes que rompessem com o fracasso na alfabetização, surgiram no Brasil, em meados do século XIX, impulsionados pelo processo de institucionalização da escola, os métodos de ensino de leitura e escrita (MORTATTI, 2000, MORAIS, 2005).

Nesse período a discussão sobre o uso de métodos no processo de alfabetização foi definida como ―querela dos métodos‖ ou ―guerra entre os métodos‖ (MORTATTI, 2000, CHARTIER, 2011). Desde o surgimento desses métodos, intensificou-se na sociedade brasileira um enorme debate em torno de qual método seria mais eficaz para a aprendizagem do sistema de escrita alfabética.

De acordo com Mortatti (2000) e Morais (2012) esses métodos estão ancorados numa perspectiva tradicional de ensino, pois consideram a aprendizagem da leitura e da escrita a partir da repetição de procedimentos, com base na crença em processos lineares em que primeiro se ensina "o código" para depois promover o ensino de leitura através de atividades mecânicas sem considerar as práticas sociais. Ao adotar esses métodos,

cabe ao professor realizar fielmente as atividades presentes nas cartilhas que são, nessa concepção de ensino, consideradas excelentes recursos didáticos para a alfabetização.

Com base nesses autores, reafirmamos que esses métodos de ensino são pautados em propostas que não consideram a complexidade das propriedades que envolvem o sistema alfabético, os diversos gêneros textuais e, além disso, pontuamos que as cartilhas limitam as possiblidades de reflexão sobre o sistema de escrita alfabética, conforme podemos visualizar nas figuras 01 e 02:

Figuras 01 e 02 - Imagem extraída do livro ―Os sentidos da alfabetização‖ de Maria do Rosário Mortatti. Na esquerda, foto da cartilha Caminho Suave, de Branca Alves de Lima (8.ed.1954).

Na direita, capa da cartilha Pipoca, de Paulo Nunes de Almeida (23.ed.1989).

Ainda em consonância com Morais (2012), afirmamos que, ao longo da história, o uso dos métodos tradicionais contribuiu para promoção do fracasso na alfabetização, uma vez que o pressuposto básico que norteia um método é ancorado na visão empirista/associacionista de aprendizagem. Segundo esse autor, essa visão considera o aprendiz como uma tábula rasa, como se o sujeito não construísse hipóteses sobre o funcionamento do sistema de escrita. Além disso, valoriza a repetição e a cópia de letras e padrões silábicos, com base no princípio da memorização das relações letra/som, conforme podemos visualizar nas figuras 01 e 02.

Por trás desses métodos tradicionais há uma concepção de ensino que considera a escrita como um código. Sobre essa concepção, Silva (2014, p. 100) complementa dizendo que:

A língua escrita era concebida como um código de transcrição gráfica das unidades sonoras, que seria aprendido por meio da repetição e da memorização; os aprendizes eram vistos como seres que nada sabiam sobre a escrita e que só seriam autorizados a ter contato com textos ―de verdade‖, na escola, quando estivessem alfabetizados; e,

finalmente, o professor era tratado como um mero executor de passos a serem rigidamente seguidos.

Os métodos tradicionais são divididos em dois grandes grupos, a saber: sintéticos e analíticos. Tais métodos ditavam o caminho a ser seguido pelo professor que desejasse promover a alfabetização dos alunos. Através das lições presentes nas cartilhas, recurso didático predominante na época, os aprendizes eram levados a copiar e cobrir, de modo exaustivo, letras e padrões silábicos, considerando frases descontextualizadas e ausência de textos reais.

De acordo com Morais (2012, p. 38), os docentes que seguiam os métodos ―acreditavam que uma boa cartilha, com um plano de ensino bem controlado, seria uma garantia de alunos alfabetizados ao final do ano, desde que estivessem aptos, no início do ano letivo, a usufruir dos ensinamentos daquele material‖.

No caso dos métodos sintéticos, as propostas de ensino da leitura e da escrita acontecem através das unidades menores para as maiores, ou seja, primeiro são trabalhadas as letras, os fonemas e as sílabas até chegar às frases. Tudo depende de qual método sintético está especificamente em foco, uma vez que podem ser divididos em três tipos: alfabéticos, fônicos e silábicos. Mesmo apresentando algumas especificidades, os métodos que compõem esse grupo apresentam pressupostos comuns, como o princípio da memorização e da repetição, variando apenas as unidades dependendo do tipo do método, ou seja, o processo de alfabetização pode iniciar pelo trabalho com as letras, pelo treino fonêmico ou por meio dos padrões silábicos. Segundo Morais, Albuquerque e Leal (2005, p. 18), ―propostas de ensino baseadas nesses métodos partem do pressuposto de que a aprendizagem é mais fácil quando se parte de unidades mais elementares e simples (em geral sem sentido), para, em seguida, apresentar unidades inteiras e significativas‖.

Conforme foi dito acima, especificamente as concepções de ensino baseadas no método fônico e silábico, mais presentes no contexto brasileiro, consideram que a aprendizagem deve acontecer de forma gradativa, das unidades menores (letras e fonemas) para as maiores (sílabas). No método fônico, os aprendizes são levados a dividir e segmentar os fonemas que compõem as palavras isoladamente como se isso fosse requisito para a alfabetização. Na proposta silábica, acredita-se que a repetição exaustiva e memorização dos padrões silábicos possibilitam o domínio da leitura e

escrita. Percebe-se, dessa forma, que essas propostas de ensino não consideram, de forma efetiva, o trabalho com o uso da leitura e escrita articulando as práticas sociais.

Nessa perspectiva, o professor concebe o processo de ensino com a visão de adulto já alfabetizado (visão adultocêntrica) e não pensa nas inúmeras propriedades e convenções que precisam ser ensinadas, tendo em vista que o sistema de escrita, diferentemente do código, não dispõem de elementos e relações pré-determinados (FERREIRO, 1985).

Contrariando o que é defendido pelos adeptos do método fônico, Morais (2005, 2012) e Silva (2014) apontam que as habilidades de segmentação dos fonemas não são requisitos para a aprendizagem do sistema de escrita. Desse modo, apontam que o tratamento de tais habilidades não auxiliam os alunos no processo de alfabetização, pelo contrário, expõem os aprendizes a rituais difíceis de treino fonêmico que, muitas vezes, são impossíveis de serem realizados por adultos alfabetizados.

Conforme foi mencionado, há também os métodos analíticos, divididos em três tipos, a saber: a palavração, a sentenciação e o global ou dos contos. Nesses métodos a forma de ensinar a escrita é feita pelo caminho inverso dos métodos sintéticos, pois começam por unidades maiores (palavras, frases, pequenos textos) até chegar às unidades menores (sílabas, letras e fonemas). No método de palavração, o aprendiz memoriza determinado número de palavras para estabelecer relações entre elas e descobrir o funcionamento do código. No método da sentenciação o procedimento de ensino é o mesmo, mas o que entra em evidência são as lições que envolvem a memorização de sentenças completas para depois analisar as unidades menores (palavras, sílabas e letras). O método global mantém a mesma lógica dos que foram citados, mas acrescenta os textos artificiais e descontextualizados como importantes instrumentos para aprendizagem da escrita. Essa forma de conceber o ensino interpreta o sistema de escrita alfabética como um código, agindo de modo a não considerar a complexidade que envolve esse objeto de conhecimento. Nessa concepção, o professor não promove situações didáticas em que os alunos possam refletir sobre as propriedades e convenções que envolvem o sistema alfabético e nem possibilitam o contato com as práticas sociais.

Subjacente à concepção dos métodos tradicionais está a necessidade dos aprendizes alcançarem um ―estado de prontidão‖, ou seja, momento em que o sujeito está ―pronto‖ para começar a aprender a escrita, através das intervenções do professor (CARRAHER, 1986, FERREIRO, 1985, MORAIS, 2012). Para saber se as crianças

atingiam esse estado eram realizados testes que privilegiavam as habilidades de percepção motora, discriminação visual e auditiva, por meio de atividades de ―cobrir‖ e ―ligar pontinhos‖. Nesse sentido, durante muito tempo, as escolas aplicaram testes de prontidão aos alunos no final da educação infantil para saber se os mesmos estavam aptos para iniciar o processo de alfabetização. Segundo Morais (2005):

[...] tudo era concebido como se não houvesse um cérebro mediando o que a mão traçava e o que a boca pronunciava. Mais que isso, não se considerava que a escrita alfabética consistia num sistema com propriedades que o aluno precisaria compreender. Assim, acreditava- se que tal ―prontidão‖ seria o requisito para o aluno usufruir do ensino que lhe era oferecido, o qual, por sua vez, dependeria do emprego de um ―bom método‖ (p. 39-40).

Desse modo, é possível concluir que durante muito tempo o ensino da língua escrita esteve relacionado, exclusivamente, ao uso desses métodos como fórmula para o sucesso na alfabetização e, ainda nos dias atuais, as concepções de ensino que são subsídios a esses métodos estão presentes nas escolas brasileiras. Ou seja, ainda presenciamos situações didáticas em que a aprendizagem do sistema de escrita alfabética acontece por meio da memorização e dos treinos repetitivos das relações grafemas/fonemas.

De acordo com Chartier (2011, p.96-97), os métodos eram concebidos como ―um conjunto de princípios e escolhas teóricas para guiar a ação, [...] na escola, um método é um guia pedagógico, regido para o professor‖ e, buscavam, dessa forma, prescrever a ―fórmula do sucesso‖ para o ensino da leitura e da escrita. Segundo esta autora, os métodos representaram na época que foram promovidos uma ―transformação pedagógica‖. Muitos dos métodos tradicionais desenvolviam-se através de exercícios que consideravam o ensino de forma gradativa, primeiramente o contato com as sílabas, depois com as palavras até que chegassem às frases.

Com o tempo os métodos enquadrados como tradicionais não conseguiram atingir o grau de ―eficácia‖ desejado, pelo contrário, formavam indivíduos que eram incapazes de compreender textos simples presentes na esfera social, ou seja, apenas ―decodificavam‖, mas não conseguiam compreender uma mensagem escrita. Isso aconteceu porque a exigência social passou a ser outra: a leitura associada à compreensão do que estava sendo lido. É nesse contexto que os recursos didáticos subjacentes a essas propostas de ensino, nesse caso os manuais de leitura, são

fortemente criticados. Tem-se nesse momento, a constatação do fracasso no ensino da leitura e a partir daí surgem os questionamentos pontuando que as ―inovações pedagógicas‖ poderiam não estar contribuindo para o avanço dos aprendizes (CHARTIER, 2000).

A indagação que ganha espaço nas discussões é a seguinte: ―de quem é a culpa dos alunos não aprenderem a ler?‖. É nesse contexto que, considerando a dimensão pedagógica, as escolas, os métodos e os professores passam a ser responsabilizados por tal fracasso.

Sobre esse aspecto, Chartier (2000) salienta que ao invés de culpar a escola, os métodos e os professores sobre o fracasso no processo de alfabetização é preciso analisar melhor a realidade escolar, buscando compreendê-la. A autora ainda aponta que tais ―inovações‖ não aparecem de imediato no cotidiano da sala de aula, pois a adesão das novas propostas de ensino dependerá da eficácia que o docente vê sobre elas. Ou seja, os professores fazem suas escolhas pedagógicas em busca de concretizar suas intenções educativas na medida em que veem funcionalidade nos métodos de ensino propostos pelos ―inovadores‖.

Em busca de contribuir para erradicar tal fracasso alguns países na Europa uma nova abordagem surgiu com o objetivo de garantir aos aprendizes a compreensão de textos. Foi nesse contexto que nasceu uma nova proposta de ensino baseada no ―reconhecimento visual das palavras, sem análise, que se apoia teoricamente na psicologia da percepção ―global‖ das formas‖ (CHARTIER, 2000, p. 10). Desse modo, emergiu uma abordagem contrária à sintética, sendo definida como global, uma vez que pressupõe o ensino da leitura a partir das unidades maiores (a palavra inteira). Com o tempo, tal proposta de ensino também foi questionada, o que possibilitou a difusão do método fônico em alguns países, como nos Estados Unidos.

Diante disso, percebe-se que a história do ensino da leitura e da escrita, tanto no Brasil como em outros países, foi marcada pela adesão de métodos que propagavam o sucesso na alfabetização. Entretanto, é válido destacar que a concepção sobre o que é estar alfabetizado modificou ao longo dos anos, sobretudo com a difusão das pesquisas na área que levantavam diversos questionamentos. De acordo com Chartier (2000), esses questionamentos contribuíram para caracterizar esses métodos numa tendência tradicional de conceber o ensino.

De acordo com o que anunciamos no subtópico anterior, no Brasil, na década de 80, as pesquisas de Ferreiro e Teberosky (1985) sobre a psicogênese da escrita

provocam uma mudança de paradigma na forma de conceber a alfabetização. Muda-se o foco da discussão de como se deve ensinar para a tentativa de compreender como as crianças aprendem/pensam a escrita. Com base nos pressupostos difundidos por tais pesquisas, dando respaldo as contribuições da teoria psicogenética, que o próximo subtópico está organizado.