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uma história afrodescendente no nordeste do brasil – bA

Maria Cecília de Paula Silva Miguel Angel Garcia Bordas

dAS COReS: aproximações iniciais - Me conta, Papa Dembo, de que cor é a África? - A África, pequeno Chaka,

é negra como a minha pele, vermelha como a terra,

é azul como a sombra do entardecer, é amarela como o grande rio amarelo, é verde como a folha da palmeira.

A África, pequeno Chaka, são todas as cores da vida.

“Papa Dembo é grande como o Baobá e é mais sábio que Mara- but”. Papa Dembo é o avô do pequeno Chaka, personagem da história infantil sobre a cultura africana, que narra através dos questionamentos do neto para seu avô a forma de viver, pensar, relacionar com os outros e a natureza; enfim, a cultura desse povo que, com outros, constitui a ‘pequena’ história de nosso Brasil. Porém, as histórias e memórias vin- das da África ainda permanecem distantes do conhecimento sistemati- zado e, por isso, ainda permanecem como história silenciada que precisa ser contada. Histórias da África, que, segundo o pequeno Chaka, Papa Dembo conta melhor que ninguém a história e a cultura afro descen- dentes, escritas e retraçadas no Brasil. Assim como essa cultura traz em

seu interior a história de resistência de seu povo, o ‘estado da arte’ da cultura corporal, lazer e arte traz em seu interior a expressão hegemônica da cultura corporal prescrita oficialmente (cultura hegemônica) para o espaço escolar e sistematizado (transformadas em conteúdos) nas for- mas de ginástica, esporte, dança, luta, jogo, mímica, entre outros. Estas já possuem certo tratamento acadêmico, conforme observado em Kunz (1994), Daólio(1995), Bracht (1999), Bracht e Crisório (2003) entre outros, em nível nacional, além de uma linha de investigação histórica se consolidando no Brasil, principalmente no que se refere ao espaço institucionalizado da escola, conforme observado nos trabalhos de Soa- res (1992;1996), Silva, M.C (2002), Vago (2003), para citar alguns.

Porém, nestas sistematizações, percebemos a falta de uma inves- tigação científica sobre a cultura afrodescendente no Brasil. Detecta- mos também um descompasso no que diz respeito à pouca investigação histórica científico-acadêmica das práticas corporais; especificamente as que se desenvolveram de forma marginal no Brasil e hoje ocupam o cenário nacional e internacional como expressões de brasilidade, como a capoeira, o samba-de-roda, o samba de rua, o jogo da peteca, o baião, o axé, para citar alguns, especialmente no Nordeste do Brasil: Bahia.

Aliado a essa falta, presencia-se o crescente interesse de professores pesquisadores por investigações sobre a pesquisa histórica das práticas escolares, a cultura popular, a tradição, o processo histórico de formação cultural. Outra perspectiva investigativa pouco explorada ainda se refere à formação da identidade nacional e às políticas públicas de Educação Física, Esporte e Lazer, o que vem reforçar a necessidade, a atualidade e a relevância deste estudo. Assim, evidenciada a carência de estudos simila- res, de caráter local em contraste com os estudos nacionais, objetivamos aprofundar a investigação a respeito da cultura corporal, lazer e arte do povo baiano – Salvador –, com especial atenção às manifestações da cul- tura afrodescendente, dando sequência à investigação do ano anterior1.

1 História da cultura corporal, esportiva e de lazer: um estudo a partir do nordeste do Brasil – Bahia.

Relatório final do projeto de pesquisa desenvolvido na UFBA durante o ano de 2005, com apoio do CNPq, com a participação de três bolsistas PIBIC.

O presente artigo se propõe a discutir algumas concepções teóricas que deem base para a investigação das expressões da cultura corporal, Lazer e arte na Bahia, como manifestação da identidade do povo bra- sileiro, baiano. A identificação desse acervo cultural obriga-nos a com- preender algumas rupturas e/ ou continuidades do processo histórico de constituição e consolidação do campo da cultura corporal e do lazer em Salvador, especificamente na educação popular, traçando contraste com a arte. Também compreender as relações estabelecidas entre as práticas dessas manifestações corporais e o processo histórico de apreensão da cultura popular e apropriação pelo saber erudito. Para isso, travamos uma discussão teórica visando dar suporte a nossa investigação de campo.

Verifica-se essa teorização como necessária para dimensionar a constituição histórica, campo de produção de conhecimento e a detecção e organização de elementos que contenham como princípio a África, já que esta origem cultural é até o momento colocado em segundo plano. Justifica-se pela importância de compreendermos melhor ruptura e/ ou continuidade do processo histórico de constituição e de consolidação do campo da cultura corporal, lazer e arte na Bahia, em comparação com outros estados do Brasil, além do comprometimento da pesquisa científica com a identidade afro-brasileira, especialmente a partir da Lei nº 10.629/03 e da lei nº 11.645/08, que a complementa, postulando novos desafios.

Cabe registrar que a Bahia foi berço da identidade nacional, ponto de chegada de grandes levas de imigrantes europeus, de escravos africa- nos e de missões americanas. Foi também, desde o ano de 1500 até 1808, o centro de decisões econômicas, políticas, administrativas do Brasil funcionando num único ponto – Salvador – além de centro cultural e educacional aos moldes do modelo europeu. Devido a isso, o Estado da Bahia possui forte riqueza cultural, com peculiaridades marcantes de países como Portugal e África; da cultura ocidental, da cultura negra e da cultura indígena, indícios e histórias de obediência e de revolta, docu- mentos, registros e indícios preciosos de serem buscados, recuperados, apreciados, pesquisados, desvelados e sistematizados.

OS SAbOReS: o caminhar de nossa investigação - Me conta, Papa Dembo, me conta do início,

quando você era pequeno, menor do que eu.

- O início, pequeno Chaka, foi há muito tempo atrás. Muito antes que eu, existiu Kadidja, e depois, Samba. Ela, pobre e linda como um céu de primavera depois da chu- va.

Ele, filho de rei, com o coração batendo um tamtam louco de amor.

E eu, o primeiro filho deles.

Nas costas da mãe Kadidja, eu descobri o mundo.

O processo de investigação não ocorre de maneira linear e nem isento de equívocos; o que emerge na metodologia não é um corpo de doutrina, mas um complexo de categorias cada vez mais abrangente – e sempre incompleto – para conhecer e direcionar, em alguma medida, a dinâmica social, que não está constituída, mas é constituinte, pois é um processo. E, tendo ciência de que uma das dificuldades encontradas para a pesquisa de campo é a seleção de um corpo teórico que sirva de base para as investigações de campo, assim, consideramos importante tecer- mos um corpo teórico a fim de ampliar as possibilidades investigativas diante do objeto de análise.

O caminhar da presente investigação baseou-se em critérios temáti- cos e cronológicos de organização. Do ponto de vista cronológico, pode- ríamos destacar provisoriamente o período relacionado à compreensão do objeto histórico com o qual estamos nos debruçando, que diz respeito a essa história que está sendo construída e registrada, a escrita do tempo presente; tendo em vista que cada momento vivido se transforma numa narrativa em que se devem levar em conta todos os acontecimentos, pois nenhum deles é desconsiderado pela história, na compreensão de Benjamin (1994). Relacionado ao segundo, foram considerados alguns conceitos disponíveis que auxiliassem a compreensão da cultura corpo- ral e de lazer, bem como na explicitação das atividades de lazer cotidiano da população que tenham o traço da cultura afrodescendente.

Benjamin, diferente de Hegel, considera o conceito apenas um mediador entre o fenômeno singular e a ideia universal. O conceito representa a ideia, tornando-a viva e salvando os fenômenos da disper- são, evitando que eles se percam no mundo empírico, pois somente as ideias são universais; os fenômenos precisam delas para poderem se agrupar significativamente, para não se dissolverem sem deixar traço. Assim, Benjamin considera que o conceito não pode ser tão universal como supunha Hegel, porque precisa permanecer ligado à singulari- dade dos fenômenos, à realidade empírica.

No que diz respeito ao critério temático, importa identificar fon- tes que auxiliem na compreensão dos processos sociais e políticos que aconteciam pari pasu ao objeto da pesquisa, sua inserção e valorização nos espaços sociais e institucionais. Neste sentido, a preocupação recai na construção situada do objeto de pesquisa, atentando para os deter- minantes históricos e a construção política das práticas culturais, espe- cialmente das práticas das culturas corporais, esportivas e de lazer nos respectivos períodos históricos.

O ponto de vista de classe (Marx) foi utilizado por considerar que ele possibilita romper com limitações e contingências dos interesses de conservação da ordem social, ultrapassa a aparência ‘coisificada’ dos fenômenos sociais para desvendar a estrutura real da sociedade bur- guesa; o que pode revelar os seus instrumentos de exploração, opressão e reprodução. Assim, pode-se perspectivar e apontar alguns elemen- tos de transformação. Consideramos que o pensamento desenvolvido por Marx parece proporcionar instrumentos fecundos para a crítica do presente, para a desmistificação implacável das construções ideológicas geradoras de confusão e conformismo.

Também utilizamos os estudos relacionados às culturas e identida- des culturais que estão se ampliando, e trazem à tona a discussão rela- tiva às práticas que determinados e específicos grupos encontraram para contar, preservar e difundir sua história. Uma história de resistência, de conformismos e de confrontos.

Ao tentar ampliar os estudos históricos das culturas corporais, de lazer e arte, encontramos sérias dificuldades no que se refere às fontes

históricas, bem como a compreensão e absorção local, das expressões corporais como linguagem, e outras peculiaridades.

dO LugAR: uma história a partir do nordeste do brasil/bA - Me conta, Papa Dembo, me conta da sua vila.

- Minha, vila, argila e palha. Vinte cabanas, não mais... Em volta da árvore da palavra: o grande Baobá. Embaixo dele, discutíamos as coisas importantes.

A nossa cabana era grande e fresca quando soprava o vento quente.

E eu andava quase nu, como os meninos da minha idade, usando as plantas como sapatos nos pés.. Nu e livre. O dia todo.

O nordeste do Brasil é a região mais pobre do país, com extensão territorial de 1.808.077 km quadrados (18,7% do território brasileiro), e 27% da população brasileira (42.470.255 ha.). Esta região, reconhecida como polígono das secas, possui 60% de seu território em área conside- rada vulnerável a esse fenômeno, porém apresenta diversidade climática (SILVA, B.-C., 2004), possuindo áreas úmidas, chuvosas e exterioriza- das pela vegetação natural, que desde a época colonial deu lugar a três tipos de zonas agrícolas: a Zona da Mata, o Sertão e a zona intermediária – Agreste. Diante de tal diversidade, surgem desde o período colonial, sistemas complementares de exploração agrária, mas que se contrapõem econômica e politicamente:

O nordeste apresenta consideráveis desníveis sociais, com os pio-com os pio- res indicadores socioeconômicos, principalmente nas áreas rurais, que sofrem nos longos períodos de seca. Ironicamente, durante o Brasil Colônia, quando a produção de açucar era mais elevada, continha a região mais próspera do Brasil – a Capitania de Pernambuco (junta- mente com a Capitania de São Vicente, foram as únicas capitanias de sucesso logo no início da exploração). A região entrou em decadência desde o fim da rentabilidade da exploração do açúcar na Zona da Mata (faixa outrora de mata atlântica, paralela ao litoral nordestino), iniciando

um processo de recuperação a partir de 1950, apesar de ainda ser a região mais pobre e desigual do país2.

O Brasil está na 69ª colocação no ranking do Índice de Desenvol- vimento Humano (IDH)3 de 2006 (em 177 países no total), com um índice de 0,792 (médio desenvolvimento humano). Desde 1999, já subiu 14 posições. Apesar de ter melhorado nos critérios educação e longevidade, o Brasil caiu no critério renda4.

Dentre os países desenvolvidos, a maior concentração de renda está nos EUA, com 15,57, seguido pela França, com 9,1 (pelo critério P90/ P10). No Brasil, a concentração de renda é tão intensa que o índice P90/ P10 está em 68 (2001). Ou seja, para cada dólar que os 10% mais pobres recebem, os 10% mais ricos recebem 68, ganhando apenas da Guate- mala, Suazalândia, República Centro-Africana, Serra Leoa, Botsuana, Lesote e Namíbia. O Brasil apresenta historicamente uma desigualdade extrema, brutal e rara no resto do mundo.

Apesar desse problema ser conhecido há muito tempo, as classes dirigentes não são sensíveis às questões de distribuição de renda, des- considerando os graves prejuízos que a excessiva desigualdade na distri- buição da renda nacional causa ao próprio desenvolvimento econômico do país, a longo prazo. Florestan Fernandes (1981) já alertava que no Brasil continua-se privilegiando os privilegiados, não alterando efetiva- mente a distribuição da renda; assunto que deveria preocupar todos os intelectuais e economistas brasileiros. Ao aprofundar esta questão este autor considera que para alterar o “destino histórico” do Brasil, é preciso que o processo deve ser “desencadeado a partir de dentro: através da modificação das estruturas sociais, econômicas e políticas da sociedade brasileira.”(FERNANDES, 1981, p. 173) Nesse sentido, argumenta que

2 Maiores informações em www. pt.wikipedia.org/wiki/Região_Nordeste_do_Brasil.

3 O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) é uma medida comparativa de pobreza, alfabeti-

zação, educação, esperança de vida, natalidade, e outros fatores para os diversos países do mundo. É uma maneira padronizada de avaliação e medida do bem-estar de uma população, especial- mente infantil. http://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%8Dndice_de_Desenvolvimento_Humano acessado: 20/12/2006.

4 Um dos métodos usados para se medir a concentração de renda é medir quanto o grupo

formado pelos 10% mais ricos da população recebe em comparação ao grupo dos 10% mais pobres, conhecido como P90/P10 ou 10% mais ricos a 10% mais pobres.

qualquer alteração deve necessariamente passar pela democratização da renda, do prestígio social e do poder. “É que ela – e somente ela – pode dar origem e lastro a um ‘querer coletivo’ fundado em um consenso democrático”. (FERNANDES, 1981, p. 175)

Assim, e conforme Benjamin (2000, p. 225), “[...] a luta de clas- ses, que um historiador educado por Marx jamais perde de vista, é uma luta pelas coisas brutas e materiais, sem as quais não existem as refina- das e espirituais. A tradição nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é na verdade a regra geral”. Ao constatar que existem seres humanos explorados e oprimidos, Benjamin nos anuncia a esperança de que um mundo bem melhor pode ser criado, já que ela nos é dada por consideração aos que já não tem mais esperança, conforme anuncia no encerramento de seu ensaio sobre as afinidades eletivas (Goethe).

Ao lado dessa desigualdade, temos uma grande disparidade no que- sito da história de nosso povo brasileiro; a história oficial por longa data desconsiderou a nossa diversidade étnica e a nossa pluralidade cultural.

Ao propor a reflecão acerca da nossa história e da cultura brasileira, a partir do Nordeste do Brasil, temos ciência que esta discussão precisa ser feita pela academia; uma discussão que diz respeito à história, à cul- tura e à identidade afrodescendente de nosso povo; discussão já realizada por diversos pesquisadores, de forma mais ampla ou tangencial. Édou- ard Glissant (2005), por exemplo, em seus escritos sobre as crioulizações no Caribe e nas Américas, defende a diversidade das culturas em face do processo de estandardização globalizadora, questionando os parâme- tros impostos pela cultura ocidental dos países hegemônicos. Nestes, o autor afirma a necessidade dessas culturas singulares construírem e registrarem, na contemporaneidade, sua história/memória; sua “moder- nidade”, à força, propalado do seu imaginário utópico de coletividades, porque senão, correm o risco de ser calada até chegar ao esquecimento e morte da mesma. Para que isso não aconteça, necessita-se de traba- lhos que registrem essas culturas, que explicitem suas identidades e seus projetos coletivos. Para isso, as pesquisas que se ancoram na singulari- dade histórica e na densidade antropológica do lugar são fundamentais, considerando igualmente o lugar de onde o pesquisador emite sua voz.