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Capítulo 3 CLIVAGENS JURÍDICO-CONSTITUCIONAISDO DUPLO GRAU DE

2. Raio de aplicabilidade do duplo grau e estrutura jurisdicional: Incursões no embate

2.2. Caráter absoluto ou relativo do duplo grau de jurisdição: Princípio garantia?

2.2.3. Uma tentativa de solução da vexata quaestio

Oreste Laspro, em obra específica sobre o assunto, afirma que o princípio do duplo grau de jurisdição não é assegurado no direito constitucional brasileiro, estando somente regulado na legislação ordinária, pois a previsão de recursos constante da Constituição “não significa que todas as decisões possam ser impugnadas por meio deles”.353 Em idêntica posição, diversos outros autores sinalizam esse entendimento, que afasta, de alguma sorte, o caráter absoluto da garantia354.

351

ROSAS, Roberto. Direito Processual Constitucional: princípios constitucionais do processo civil. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 21.

352

MENDONÇA JUNIOR, Delosmar. Princípios da ampla defesa e da efetividade no processo civil

brasileiro. São Paulo: Malheiros 2001, p. 100.

353

LASPRO, Oreste Nestor de Souza. Garantia do duplo grau de jurisdição. In: TUCCI, José Rogério Cruz e. Garantias constitucionais do processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 159.

354

Entre eles, podem ser citados: COELHO, Carlos Souza. Princípios fundamentais dos recursos e efetividade do processo. In: OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de (Org.). Elementos para uma nova

Nelson Nery Júnior ressalta não haver garantia absoluta do duplo exame, mas tão somente a previsão da via recursal355, ratificando a opinião daqueles que admitem a possibilidade do legislador ordinário excetuar a previsão de cabimento de recursos356 357.

Contrariamente, posiciona-se o tirocínio salutar de Lúcia Valle Figueiredo, para quem o duplo grau aparenta ser “necessidade imperiosa dos próprios vetores constitucionais e do ordenamento jurídico”, a par de entender que leis que suprimam o duplo grau parecem-lhe inconstitucionais358, argumento que encontra ressonância em Paulo Roberto Passos, cuja opinião situa o princípio sob a cobertura implícita do “manto constitucional”359, e, ainda, Adhemar Ferreira Maciel, que considera que a Constituição Federal “garante um segundo julgamento, ainda que eventualmente pelo mesmo órgão que proferiu a decisão recorrida”.360

Na mesma linha, preleciona José de Albuquerque Rocha que o “direito ao recurso” está garantido duplamente pela Constituição, figurando como um dos direitos fundamentais das partes à tutela jurisdicional efetiva: (i) de modo expresso (arts. 5º, XXXV e LV; 104, I e III, entre outros); e (ii) de modo implícito, em decorrência da própria estrutura do Judiciário, isto é, da maneira como a competência funcional esta

355

NERY JUNIOR, Nelson. Os Princípios Fundamentais dos Recursos. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 169.

356

Cf. LASPRO, Oreste Nestor de Souza. O duplo grau de jurisdição no direito processual civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 155; MARQUES, José Frederico. Manual de Direito Processual

Civil. v. 1. Campinas: Millenium, 1998, p. 170; Além da já assinalada opinião de MARINONI, Luiz

Guilherme. Garantia da tempestividade da tutela jurisdicional e duplo grau de jurisdição. In: TUCCI, José Rogério Cruz e (Coord.). Garantias constitucionais do processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 215, que considera despicienda a previsão do duplo juízo sobre o mérito, em causas tidas como de “menor complexidade”, ou em outras, em que se impende justificar, racionalmente, uma única decisão, sem que haja inconstitucionalidade na dispensa da reapreciação.

357

Existem ocorrências legislativas que limitam a apreciação da questão posta em juízo a uma única instância, como, à guisa de exemplificação , o art. 2º da Lei nº 5.584, de 26.6.1970 (com a redação que lhe deu a Lei nº 7.402, de 5.11.1985), que prevê, no seu § 4º, que, excetuando-se os casos que versem sobre matéria constitucional, “nenhum recurso caberá das sentenças proferidas nos dissídios da alçada a que se refere o parágrafo anterior, considerado, para esse fim, o valor do salário mínimo à data do ajuizamento da ação”; No mesmo sentido, o art. 34 da Lei nº 6.830, de 22.09.1980 (Lei de Execução Fiscal), o art. 4º, da Lei n.º 6.825, de 22.09.1980, relativa à Justiça Federal e, ainda, o art. 41, da Lei nº 9.099, de 26.09.1995 (dos Juizados Especiais), limitam o exercício do direito de recorrer.

358 FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Princípios constitucionais do processo. Revista Trimestral de Direito

Público. São Paulo, n.1, 1993, p. 126.

359

PASSOS, Paulo Roberto. Algumas reflexões sobre o duplo grau de jurisdição. Revista de Processo. São Paulo, n. 69, jan-mar. 1993, p. 155.

360

MACIEL, Adhemar Ferreira. Do princípio constitucional ao recurso. Revista da Faculdade Mineira de

distribuída entre seus órgãos (juízes e tribunais), cabendo aos tribunais a competência funcional específica para julgar, preponderantemente, os recursos, o que permite deduzir a natureza constitucional dos recursos361 362.

“Isto quer dizer – continua o mesmo processualista, que o direito de acesso ao Judiciário implica o direito de acesso aos recursos constitucional e legalmente previstos, ou seja, o acesso aos recursos que as normas vigentes tenham estabelecido para o caso”, reconhecendo, entretanto, que o acesso aos recursos instituídos pode ser limitado em face de outros direitos constitucionais, respeitado o princípio da proporcionalidade363.

A questão da limitação do duplo grau é, enfim, fulcral para concluir-se pela relatividade da garantia. Como cediço, em diversas hipóteses, a legislação infraconstitucional já oportunizou restringir a via recursal, tal qual ocorre nos Juizados Especiais, cujas decisões, se vertidas a laudo arbitral, serão irrecorríveis.

Segundo afirma Alexandre Targino Falcão, é intuitivo que a sentença prolatada pelo “juiz da transação (lato sensu), desafia o recurso de apelação”, mas existem exceções, como, à guisa de exemplo, o caso “das sentenças proferidas nas chamadas ´causas de alçada´ (Leis ns. 6.825 e 6.8302, ambas de 1980), bem assim a sentença no processo de justificação (art 865 c/c o art. 866 do CPC). Destas sentenças não cabe recurso para a instância superior”.364

Dessa forma, compreende Alexandre Barbosa da Silva que, apesar de assegurado constitucionalmente, em decorrência da Norma Constitucional “informar da existência e atribuições dos Tribunais”, a legislação infraconstitucional poderá “regular o uso de tal direito, visando a atender a efetividade e se evitar o abuso do direito de recurso e defesa”.365

361

ROCHA, José de Albuquerque. Teoria Geral do Processo. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 292.

362

Com respeito, exclusivamente, sobre a existência de garantia do duplo grau de jurisdição em decorrência da estrutura e atribuições das Cortes que integram o Poder Judiciário, posicionam-se da mesma forma, entre outros: GRINOVER, Ada Pellegrini. Um enfoque constitucional da teoria geral dos recursos. Revista Jurídica. Porto Alegre, n. 198, 1994, p. 40; PAULA, Jônatas Luiz Moreira de. Teoria

geral do processo. 2. ed. Leme-SP: LED Editora de Direito, 2000, p. 215; SILVA, Alexandre Barbosa.

Aspectos na admissibilidade dos recursos. In: PAULA, Jônatas Luiz Moreira (org.) Estudos de direito

contemporâneo e cidadania. Leme -SP: Editora de Direito, 2000, p. 67.

363 ROCHA, José de Albuquerque. Op. cit, p. 292. 364

FALCÃO, Alexandre Targino Gomes. A recorribilidade da sentença homologatória de transação ou conciliação. Revista da ESMA-PB. João Pessoa, n . 2, set. 1997, p. 49-50.

365

SILVA, Alexandre Barbosa. Aspectos na admissibilidade dos recursos. In: PAULA, Jônatas Luiz Moreira (org.) Estudos de direito contemporâneo e cidadania. Leme -SP: Editora de Direito, 2000, p. 67.

Mauro Cappelletti, vestindo-se do primado da oralidade, considera que o exercício do duplo grau jurisdicional chega a ser inconstitucional, posto que a lentidão dos processos judiciais – recrudescida com a eventualidade de um novo exame do mérito – contraria o estipulado na Convenção Européia de Direitos Humanos, de 1950366.

Essa opinião é sustentada por Marinoni, posto que essa necessidade de um segundo julgamento anula a principal vantagem da oralidade; “É contraditório – afirma, falar em benefícios da oralidade e pensar em um juízo repetitivo sobre o mérito, proferido por juízes que não tiveram qualquer contato com as partes e com a prova”.367

Luigi Paolo Comoglio afirma que o duplo grau de jurisdição não se constitui em garantia absoluta no modelo constitucional brasileiro porque a Constituição de 1988, ao privilegiar a cláusula do due process of law do direito norte-americano, manteve o princípio como uma garantia implícita em nosso ordenamento368.

A jurisprudência do STF também reflete esse entendimento, adotando, ainda, o posicionamento de que é possível que o duplo grau inexista em alguns casos. O voto, que se permite transcrever a seguir, proferido pelo Min. Moreira Alves, proporciona a exata noção do que, a esse respeito, prevalece naquela Corte, in verbis:

Não tem razão o recorrente quando pretende que, em face do disposto no artigo 5º, LV e parágrafo 1º, da Constituição Federal, esta constitucionalizou o princípio do duplo grau de jurisdição, não mais admitindo decisões de única instância, razão por que não foi recebida pela nova ordem constitucional a Lei 5.584/70. Com efeito, a própria Constituição admite a existência de decisões em grau único de jurisdição não apenas nos casos que especifica, como os de ações originárias perante o Supremo Tribunal Federal, mas também genericamente, ao admitir, no artigo 102, III, recurso extraordinário nas causas decididas em única instância, quando ocorrer hipótese prevista numa das letra "a", "b" ou "c", do mesmo dispositivo".369

No que concerne ao argumento de que o Pacto de São José da Costa Rica, consentaneamente inserido no sistema normativo brasileiro, encerraria a obrigatoriedade

366

CAPPELLETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. Trad. Aroldo Plínio Gonçalves. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1984, p. 20.

367

MARINONI, Luiz Guilherme. Garantia da tempestividade da tutela jurisdicional e duplo grau de jurisdição. In: TUCCI, José Rogério Cruz e (Coord.). Garantias constitucionais do processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 212.

368

COMOGLIO, Luigi Paolo. Garanzie constituzionale e “Giusto Processo” (modeli a confronto). Revista

de Processo. São Paulo, n. 90, abr-jun. 1999, p. 147.

369

Recurso Extraordinário nº 201.297-DF, Rel. Min. Moreira Alves, 1ª Turma, unânime, publicado no Diário da Justiça da União de 05.09.1997.

constitucional de duplo exame do mérito judicial, o STF considerou que a Consituição enumera taxativamente os recursos cabíveis para o STJ e para o próprio órgão de cúpula, e que a Convenção possui natureza de lei ordinária, não estando a Constuição, portanto, obrigada a observar as disposições nela contidas, mantendo-se a convicção de que o duplo grau de jurisdição não é uma garantia constitucional370.

No julgamento aludido, o Min. Sepúlveda Pertence enfrentou a matéria de maneira visceral. Permite-se transcrever um trecho de seu pronunciamento:

(...) em relação ao ordenamento pátrio, para dar a eficácia pretendida à cláusula do Pacto de São José, de garantia do duplo grau de jurisdição, não bastaria sequer lhe conceder o poder de aditar a Constituição, acrescentando-lhe limitação oponível à lei: seria necessário emprestar à norma convencional força ab-rogatória de normas da Constituição mesma, quando não dinamitadoras do seu sistema.371

Em julgados posteriores, confirmou-se esse entendimento, que hoje é, sem dúvida, remansoso no STF372.

Acena-se, então, com a percepção conclusiva de que o duplo grau de jurisdição, mesmo significando um prolongamento do direito de ação, não se constitui em garantia absoluta, podendo ser, inclusive, restringido, seja em função da efetividade que se almeja do processo judicial, seja em função do princípio da oralidade.

370 Recurso em Habeas Corpus nº 79.785-RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 29.03.2000.

Publicado no Informativo STF, Brasília, n. 187, 1-5 mai. 2000.

371

Idem.

372

Recurso em Habeas Corpus nº 80.919 -SP, Rel. Min. Nelson Jobim, julgamento em 12.06.2001. Publicado no Informativo STF, Brasília, n. 232, 11-15 jun. 2001.