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4. Democracia Constitucional Como União de Princípios Divergentes

4.1. União Paradoxal de Princípios Divergentes em Habermas

Habermas (2001) indaga sobre se o que teria prioridade seriam as liberdades individuais dos membros da sociedade de mercado moderna ou os direitos dos cidadãos democráticos na política de participação. Ele nota que, de um lado,se insiste em que os

direitos básicos e a autonomia privada dos cidadãos assumam uma forma inflexível em seus conteúdos essenciais a fim de garantir a regulação anônima do direito. Por outro lado, a autonomia política dos cidadãos está implicada na auto-organização de uma comunidade que faz suas próprias leis.Este aparente impasse ocorre em todos os casos em que não se faz a harmonização entre o princípio dos direitos humanos e da soberania popular ocorrendo, assim, por não se fazer a harmonização entre autonomia privada (direitos individuais) e autonomia pública (direitos sociais).

Conforme a descrição de Cavalcante (2016) os primeiros corresponderiam aos direitos humanos de primeira geração e os segundos, aos de segunda geração. Segundo Habermas (2001), a co-originariedade deveria estar pressuposta na realização destas dimensões, isto é, os direitos da autonomia privada (direito à vida, à propriedade, liberdade de crença, igualdade formal, manifestação de pensamento etc.) são interdependentes por implicação material em relação aos da autonomia pública (saúde, educação, moradia, segurança pública, etc.). Ele não supõe que haja uma evolução natural das garantias fundamentais de primeira geração para as de segunda geração, mas, que a complementariedade entre estas deve ser feita de modo democrático manifestadamente pela constituição nacional.

Habermas afirma que “a transição do Estado de direito liberal para o Estado de bem-estar social é regulamentada de modo normativo pela letra e pelo espírito de instituições do direito constitucional”(HABERMAS, 2001, p. 465). Ainda conforme o mesmo, “a esfera pública supostamente constitucionalizada no parlamento como órgão do Estado permaneceria consciente de sua procedência do intercâmbio privadamente autônomo do público” (HABERMAS, 2001, p. 465).. Assim direitos humanos e os direitos democráticos dos cidadãos só se separam – assim como do direito privado e a ordem pública- na teoria e na prática do direito burguês quando se toma consciência do caráter fictício da ordem social hipoteticamente subjacente e quando a burguesia se mostra para ela própria como um modo de produção que vai tornando visível sua ambivalência.

As expressões ficção, ordem social hipoteticamente subjacente, ambivalência, como aspectos pouco tangíveis do poder político nos remete a Bobbio (2015) quando relaciona a ideia de democracia à de governo do poder visível, ou seja, de governos cujos atos se desenrolem necessariamente em público sob o controle da opinião pública para ser democrático. Contudo Bobbio (2015) assinala que há associações delituosas, organizações criminosas, como a máfia, seitas políticas secretas que atuam como grupos terroristas, e, mesmo o serviço secreto do Estado que só é compatível com a democracia enquanto sob o

controle do governo. Cavando mais fundo em relação ao que subjaz as relações de poder chega-se a mais obstáculos à democracia.

Antes de remover estes obstáculos menos visíveis pode-se começar por aqueles que visivelmente impedem a ação democrática. Neste sentido é que Torres questiona que normas constitucionais sejam dotadas de supremacia, isto é, “que não possam ser revogadas via procedimentos ordinários” (TORRES, 2011, p. 185). Segundo ela isso representa uma restrição às atuais maiorias, ou seja, uma preponderância dos constituintes. Como foi endossado pela autora ao corroborar esta ideia, Paine afirma que as circunstâncias mudam e o governo deveria ser dos vivos, ou seja, as novas gerações devem guiar a si mesmas.

Habermas diz que a substância da constituição não competirá com a soberania do povo se a constituição provier de um processo inclusivo de opinião e formação da vontade por parte dos cidadãos. Sob estas condições, o Estado de Direito permaneceria ileso por obter reconhecimento a partir de um ethos democrático (HABERMAS, 2001, p. 06). Contudo, isso é pouco provável de ocorrer nesses processos, assim, costume e autocontrole moral sedem lugar ao sentido procedimentalista da concepção de base republicana. O filósofo infere que a constituição adquire deste modo o sentido processual da adoção de formas de comunicação que prevejam o uso público da razão e equilíbrio de interesses (HABERMAS, 2001, p. 08). Por tanto, ele assevera que a Assembleia Constituinte não pode ela própria atestar a legitimidade das regras segundo as quais foi constituída em auto constituição.

Quanto ao controle do poder legislativo pode-se mencionar os lobbies, grupos que impõe sua força econômica para obter decisões conforme o interesse particular de grupos, categorias, corporações ou comunidades (COSTA & HENNING, 2012, p. 82). Como se verá adiante, não há como garantir que todo o corpo judiciário, ou ao menos uma parte não esteja também sob influência dos lobbies. Isso irá tornar potencialmente problemática a expectativa de que o controle de constitucionalidade por este poder possa levar em conta as necessidades da parcela popular da sociedade que por ser a maior e por ser a base do trabalho, e, portanto, da economia, deveria ter maior poder democrático de fato, o que não ocorre por não ter maior poder econômico. Neste quadro, a democracia está ameaçada. No Brasil a situação é ainda mais grave com a redução dos preços das commodities, base da economia nacional de cujo controle democrático inexiste apesar da sua importância.

Para a consolidação do Estado Moderno, Max Weber narra que o príncipe realizara a desapropriação dos portadores “privados” autônomos do poder administrativo paralelos ao seu poder, pois, concorriam com este. Referia-se àqueles que eram proprietários de meios de administração e de guerra, de meios de empreendimento financeiro e de bens de

usufruto político de todos os tipos. E conclui (MAX WEBER, 2015, p. 68 - 69) que isto foi essencial, ou seja, a separação entre o estafe administrativo, os funcionários da administração e os trabalhadores da administração em relação aos meios materiais. Vê-se que isso foi necessário a fim de, como apenas constata Weber sem posicionar-se, poder encaminhar a expropriação desses expropriadores dos meios do exercício do poder político.

Cavalcante (2016) menciona que com as revoluções liberais ocorridas nos EUA, França e Inglaterra, e, a instauração do Estado de Direito por meio de uma norma jurídica suprema, ocorreu assim a substituição do Estado Absolutista. A enfática contraposição em relação à concentração do poder nas mãos de um só, por grupos que almejavam poder, levou à concentração do poder nas mãos desses grupos cujos interesses são muitos e obscuros.A fase parlamentar de concentração de poder surgiu para possibilitar esses interesses. Conforme afirmou Ockham (1989) desde que bastem as causas existentes na parte intelectiva, em vão se admitem outras causas. Essa é uma possível explicação do equívoco de se confiar em múltiplas entidades (legisladores, constituintes, juízes) multiplicando-se, a possibilidade de erro. Ao postular como reputáveis de crédito entes em demasia falha-se ante ao princípio da parcimônia, ou navalha de Ockham. Este racinio favorece o sistema presidencialista ao invés do parlamentarista.

Ainda assim, em qualquer sistema, segundo o filósofo italiano Norberto Bobbio (2015) são inerentes à ação política, tanto o poder dominante quanto o contrapoder, duas técnicas específicas, que se completam reciprocamente: subtrair-se do olhar do público no momento em que se tomam deliberações de interesse público e disfarçar-se quando obrigados a se apresentar em público. Habermas (2001) advertira que os procedimentos legais e normas que regem discursos institucionalizados não devem ser confundidos com os procedimentos e padrões de argumentação cognitivas que orientam o curso intrínseco do próprio discurso- isso porque nem sempre que um discurso pode ser adequado a institutos existentes, está sendo um discurso ético. Pelo contrário, como dito ao final da parte transcrita da entrevista, há brechas perigosas em nossas constituições.

Outrora a manipulação de informação era o bastante para que a população fosse confundida e controlada por grupos de interesse econômico. Contudo, com a expansão do fluxo de informações que não mais se atêm aos meios tradicionais, rádio, televisão, jornais e revistas, seria ingênuo não notar que estes não contem mais a população nem tampouco suas insurreições. Como afirma Chomsky (2015) “os protestos ocorridos nas américas latina (contra os parlamentos) e do norte (Ocupe Wall Street), Oriente Médio (Primavera Árabe), África (manifestações diversas), e Europa (Os Indignados* do Sul), têm algo em

comum”(CHOMSKY, 2015, p. 50). Estes protestos são contra o dilaceramento dos sistemas democráticos e contra a limitada versão dos sistemas vigentes no que concerne à participação popular.

Para Chomsky motivo dessas insurreições são que a concentração de riqueza por 1% da população tem levado à estagnação econômica e crises financeiras cada vez piores. Diante deste quadro, apesar da solução diplomática que teóricos como Habermas e Chomsky buscam, solução que passa pelo equilíbrio de interesses e reconhecimento de que a mútua dependência deveria levar à conciliação, teria de haver, contudo, razoabilidade por parte daqueles que, só assim, poderiam evitar violenta retaliação popular. O razoável seria não desprover as massas de cidadãos de sua cidadania, agindo por desejo desmesurado de poder, ambições despropositadas e mera vaidade como descreve Bobbio (2015, p. 39).

Habermas projeta um horizonte em que as batalhas interpretativas abrandaram e que todas as partes reconheceram que as reformas por mais democratização são realizações importantes, apesar de terem de início sido bastante contestadas (HABERMAS, 2001, p. 9). Em retrospecto se concorda que com a inclusão de grupos marginalizados e o fortalecimento das classes desfavorecidas, os pressupostos até então não satisfeitos para a legitimidade dos procedimentos democráticos existentes são melhor realizados. Ele ainda propõe que cada cidadão de uma política democrática possa a qualquer momento se referir aos textos e decisões dos fundadores da constituição com uma visão crítica para testar se as instituições, práticas e procedimentos são democráticos e legítimos.

Apesar de, como assegura Habermas, “o Estado de bem-estar social poder advir de uma evolução continua do Estado Liberal”, quão menos provável isso se apresentar pela realidade vivida, tão mais se distancia da solução dialógica para os emergentes problemas socioeconômicos (HABERMAS, 2011, p. 467). Como uma seleção natural, em um organismo em determinado momento, em que as condições para sua existência mudam, se seu sistema não mudar para acompanhar a necessidade do mundo da vida, ficará para trás na história. Oliveira traz o desenvolvimento habermasiano sobre a separação entre o modelo liberal e o modelo republicano e a proposta de uma síntese ascendente destes dois. A ideia é a de que há um aspecto de complementariedade entre eles a ser desenvolvido.

Conforme Oliveira, “o modelo de política liberal não implica em autodeterminação democrática” das pessoas que deliberam como o formato republicano de política (OLIVEIRA, 2009, p. 14). No modelo liberal se enfatiza a liberdade enquanto autonomia individual. Sendo a autonomia privada posta em destaque em relação à pública, nota-se que os direitos humanos possuem uma maior relevância em relação ao ideal da

soberania popular. O risco de maiorias tirânicas, a partir do século XIX, fez com que os direitos humanos fossem fixados com procedência em relação à soberania popular. Oliveira observa que, embora Habermas considere positivo o aspecto da normatização jurídica presente no modelo liberal (OLIVEIRA, 2009, p. 15) - o que ele irá aproveitar na sua proposta deliberativa- rejeita o aspecto restrito apenas ao aparelho de Estado sem considerar a deliberação cidadã.

A vantagem notável do modelo republicano sobre o liberal é a de que é base do pressuposto de que a interdependência mútua dos diversos grupos da sociedade entre si. Assim não há um modo em que o dano a uma das partes não prejudique o todo, reconhecimento que passa por uma análise abrangente e realista da situação política. Neste sentido, pode-se mencionar o aspecto republicano dos governos progressistas que vai além da análise imediatista. A incorporação de mais gente à economia formal e ao consumo, o que passa por distribuição de renda, traz como principais beneficiários aqueles que se opõe a isso, a saber, o empresariado que venderia mais se o mercado consumidor fosse mais amplo; e a construção de uma inserção nacional mais altiva no cenário internacional, por sua vez, daria mais chances competitivas aos produtos nacionais subsidiados.

Oliveira (2009) acrescenta que, para Habermas, deve-se garantir a participação dos cidadãos nos processos decisórios, acrescentando-se a isso, por exemplo, a importância da regulamentação da economia e do mercado. Não deve haver um privilégio da política da sociedade civil, norteada pelo mercado, nem da esfera pública estatal no parlamento. A política da proposta procedimentalista de democracia deve comunicar-se com o direito em busca da equilibração desta relação, segundo Habermas. Apel (2004) objeta que a coerção das normas jurídicas, tal como nosso filósofo defende se baseia no monopólio estatal da força e, portanto, em dominação e não em convicção por argumentos. Isto inviabiliza o princípio procedimental da formação do consenso pela sanção não coativa dos argumentos.

A democracia da política deliberativa não dependeria mais de uma cidadania capaz de agir em conjunto, como no republicanismo, e, sim, da institucionalização dos pressupostos comunicacionais éticos. Ainda conforme Oliveira, “a salvaguarda pela base jurídica da soberania popular passa a ser interpretada de modo intersubjetivista garantindo a democracia por sua normatização” (OLIVEIRA, 2009, p. 19). Neste sentido é que ocorre a institucionalização jurídica do princípio republicano de comunicação. Na política deliberativa, completa o comentador, há uma necessária coesão entre Estado de Direito e democracia. Assim, as chamadas autonomias privadas e pública apresentam implicação mútua. Os cidadãos só poderão usufruir de sua autonomia pública se forem independentes o bastante,

com autonomia privada garantida. Por sua vez, a autonomia privada só será usufruída igualmente ao fazer uso adequado da autonomia pública.

Constata Oliveira (2009, p. 21) que qualquer postura que defenda apenas o normativismo/realismo é unilateral. Em sociedades complexas e atuais há sempre uma tensão necessária entre fato e norma, em termos habermasianos, entre facticidade e validade. Habermas critica o fato de o direito liberal não conseguir explicar a racionalidade das normas por não trabalhar com a tensão interna entre facticidade e validade. Como o direito separa o estabelecimento das normas da comunicação cidadã de seu ethos, o direito apesar de ser normativo pode ser ilegítimo por não correspondência democrática, ineficácia social. Só o direito que consegue aceitação racional por parte de todos os membros do comunidade numa formação discursiva da opinião e da vontade vale como legítimo.

Assim o direito deve ser aberto inclusive a revogação a fim de avaliar se uma norma promove ou prejudica a autonomia como um todo. Sua validade depende do procedimento democrático em que a livre expressão por uma racionalidade comunicativa o fundamente. Direito e política se constituem, assim, reciproca e sincrônicamente. O equilíbrio deste processo deve ser promovido de modo deliberativo e institucional. Espera-se, assim, que através da política deliberativa encaminhar-se à síntese entre direitos humanos e soberania popular, autonomia pública e privada, direitos individuais e direitos sociais. “É mister comprometer-se política e juridicamente com o equilíbrio, pois, a interdependência entre constitucionalismo e democracia, autonomia cívica e privada é a de que uma é suprida com recursos da outra” (HABERMAS, 2001, p. 14).

Para Habermas esse equilíbrio pode ser atingido através da constituição, uma vez que todas as gerações, posteriores a esta, atualizem a substância normativa. Com ênfase ele afirma que a Assembleia constituinte não pode ela própria atestar a legitimidade das regras que a constituiu (HABERMAS, 2001). O que ele afirma é que uma vez que a constituição sobrevenha de um processo inclusivo de opinião e formação da vontade pelos cidadãos, não competirá com a soberania popular. Deste modo, o estado de direito obteria seu reconhecimento por ser componente do ethos democrático. O filósofo ressalta ainda, que as democracias constitucionais em termos da institucionalização jurídica de uma rede de longo alcance de discursos públicos devem ter tempo social e materialmente especificado em relação à política e opinião/formação da vontade em arenas da esfera pública ou nos órgãos legislativos.

Dado o exposto, conclui-se não haver contradição necessária entre direitos humanos e soberania popular na medida em que se utilize o modelo de democracia deliberativa

para harmonizar autonomia privada e pública. A partir de Cavalcante aponta-se para qual a origem histórica da ênfase nos direitos humanos em detrimento da soberania popular e de como esta ênfase permanece a despeito de o contexto histórico atual carecer de um deslocamento da prioridade em direção à soberania popular. Com Bobbio se levantara o problema de a opinião pública não ter acesso a todas as informações de que necessitaria para o pleno exercício de sua soberania. Torres aponta outro obstáculo, a saber, o de limitar a ação política dos cidadãos de hoje por restringi-los à letra dos constituintes ignorando o fato de que o estado atual de coisas difere em muito daquele em que foi constituída a nossa carta magna. Com Habermas temos a defesa de um reconhecimento por um ethos democrático, que, portanto, situa no tempo a demanda de cada época.

Emerge como desafio à efetivação da democracia, o poder de grupos de interesse econômico que influenciam o poder político de modo não democrático. Weber expõe como no Estado Absolutista, um maior poder nas mãos de um líder político permitia a este desapropriar os portadores privados do poder político. Para contrapor-se ao estado absolutista, outro desequilíbrio pode ter sido causado com a concentração do poder no parlamento. Ockham em seu princípio da parcimônia anunciara que a postulação de múltiplas entidades amplia a possibilidade de erro. A concentração do poder político por um parlamento repleto dos mais diversos interesses econômicos e privados é um risco à democracia. Tem-se, por sua vez, um poder executivo institucionalmente tolhido. Embora possa se afirmar, como Iglecias, que a realização de um projeto político não pode depender apenas de um indivíduo.

Voltando a Bobbio, diz-se que subtrair-se ao olhar da opinião pública, é crucial para que o poder oligárquico possa agir sem empecilhos. Com Habermas, temos que procedimentos legais e normas que regem discursos institucionalizados não devem ser confundidos com os procedimentos e padrões de argumentação cognitivas que orientam o curso intrínseco do próprio discurso, isso, porque nem sempre que um discurso pode ser adequado a institutos existentes, está sendo um discurso ético. Como afirmara Chomsky, os protestos ocorridos nas Américas Latina (contra os parlamentos) e do Norte (Ocupe Wall Street), Oriente Médio (Primavera Árabe), África (manifestações diversas), e Europa (Os Indignados do Sul), têm algo em comum. Estes protestos são contra o dilaceramento dos sistemas democráticos e contra a limitada versão do sistema neoliberal. Ao final retoma-se, com Habermas, a necessidade de se equilibrar autonomia privada e pública tendo consciência de sua interdependência.