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2- A cidade e a cultura da modernidade na Era Vargas (1935-1945)

3.1 Urbanismo como Ideologia

A cidade antiga e a medieval foram moldadas ideologicamente, no entanto a cidade moderna, fruto da revolução industrial e da nova ordem capitalista, constituiu uma ciência para operar sobre a cidade. A ciência do urbanismo centro de atividade da medicina, engenharia, arquitetura, sociologia, pedagogia, psicologia que atua sobre a cidade como um corpo doente que é preciso obter a cura. A cidade material: a sua população e a sua infra-estrutura receberam uma ação de mascaramento político e econômico para garantir a configuração moderna da cidade.

Ao longo dos séculos XIX e XX, a ciência do urbanismo produziu imagens da cidade. Nesse sentido, o caso de Paris, no século XIX, é ilustrativo. A ação do Barão de Haussmann criou um novo paradigma de organização urbana e uma nova linguagem da ação política. O corpo urbano passou a ser esquadrinhado com o objetivo de reprodução do capital e também de disciplina das classes populares. Harouel explica da seguinte forma:

O urbanismo de Haussmann caracteriza-se pela criação de uma vasta rede de grandes artérias que cortam indistintamente o território da cidade, quer se trate dos bairros mais densos no centro ou nas zonas periféricas onde a urbanização está por se fazer. São traçados concebidos em nível global, com numerosas entroncamentos em estrela. Uma nova estrutura feita de bulevares, avenidas e ruas largas sobrepõem-se á trama existente, criando uma forte hierarquia entre as vias novas e a maioria das vias antigas. Paralelamente, adota-se uma política extremamente ativa em matéria de equipamento público: sistema viário, rede de esgoto distribuição de água e gás, mercados cobertos, feiras, prefeituras, colégios, estações, casernas, prisões, hospitais, espaços verdes58.

Paris do século XIX, após o barão de Haussmann, é uma cidade que cria os espaços próprios para a burguesia. Essa tentativa de transformação da cidade não foi sem luta. A própria Comuna de Paris, em 1871, foi uma reação dos trabalhadores, as várias formas de dominação, inclusive a dominação urbana na qual estava estabelecida no projeto urbano de Haussmann.

A modernidade no século XIX era a rua. Ruas largas e favorecidas pelas avenidas. A cidade deveria garantir a segurança do capital e da classe burguesa. A cidade desodorizada e esquadrinhada era a materialização da racionalidade capitalista no espaço urbano. E, por isso mesmo, se constituiu em um espaço da tecnologia disciplinar que ora era papel dos médicos, ora dos engenheiros e arquitetos, ora dos

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tribunais e da polícia. Figuras foram criadas para manter a cidade disciplinada como: loucos, marginais, prostitutas. As leis penais materializam essa necessidade de disciplinar / medicalizar a cidade.

Ainda, sobre a construção da imagem da cidade, temos Pierre Clerget, que é considerado o primeiro a escrever o termo urbanismo. Ele apresenta os elementos que deveriam constituir a nova cidade capitalista do século XIX. Esses elementos são definidos em quatro pontos: a situação geográfica, os fatores humanos, o caráter exterior e a demografia urbana. No caráter exterior, Clerget identifica quatro áreas reveladoras da cidade nova: a praça, que teria a função de fornecer ar e luz, nesse caso não se limitando a ser local de passeios e encontros dos habitantes; a rua, que deveria ser reta e larga, favorecendo a circulação; espaços livres e arborizados e, finalmente, a circulação urbana dada à concepção bem capitalista de que “times is money”59.

Michel Foucault também identificou as formas de medicalização da cidade. Urbanismo e medicina social se unem para operar a cidade e livrá-la, cada uma a sua maneira, do mal que afetava a organização da cidade. É bem verdade que Foucault faz uma leitura ampla sobre essas formas de medicina social sobre a cidade, não se limitando ao mundo capitalista. Dessa forma ele apresenta três formas de medicina social que atuam sobre a cidade: a medicina de Estado, própria da Alemanha do século XVIII; a medicina urbana que teve a França do final do século XVIII, como referência e, finalmente, a medicina dos pobres ou operários que teve a Inglaterra do século XIX, o seu modelo. 60

No século XX, a cidade moderna, tem como referência Nova Iorque. Walter Benjamin chamou Paris de capital do século XIX, Nova Iorque pode ser chamada a capital do século XX. Não houve cidade que sofresse tantas mudanças e modernizações como Nova Iorque, que inclusive, fez o casamento entre a via expressa e o automóvel. Se Haussmann foi agente da remodelação parisiense, Robert Moses foi o principal agente modernizador da cidade de Nova Iorque.61

Leonardo Benévolo, na História da Cidade, recorda que a cidade Moderna foi possível graças à invenção do processo Bessemer (1856), o que facilitou a disseminação do aço. O aço permitiu a invenção de novas máquinas que foram alavancas para a transformação da cidade. Entre essas invenções podemos citar: o dínamo (1869) que

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VASCONCELOS. Pedro Almeida. Dois Séculos de Pensamento Sobre a Cidade. p. 72.

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FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. p.79-98.

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permitiu utilizar a eletricidade como força motriz, o telefone (1876), a lâmpada elétrica (1879), o elevador (1887), o motor a explosão (1885) que foi o meio para usar o petróleo e, dessa forma, mover os carros, ônibus e depois o avião62.

Nessa compreensão das máquinas como agente transformador da cidade, destaca-se o arquiteto Le Corbusier em seus livros combatentes: Por uma Arquitetura e Urbanismo. Le Corbusier apresenta uma nova feição da cidade a partir da revolução produzida pela máquina. Para Le Corbusier, o concreto armado inventado em França em 1900, o aço e o vidro se constituíram em instrumentos revolucionários da cidade. “ É

por meio da realização dessa revolução técnica que se abre a renascença arquitetônica do tempo presente, capaz de levar, logo a um estatuto homogêneo do terreno

construído”63. Mas os elementos definidores da transformação urbana, para Le

Corbusier, foram: o automóvel, o transatlântico e o avião.

Já Marshall Berman, elege Robert Moses como agente de transformação de Nova Iorque com o automóvel. Para Berman, “Moses utilizou o desenho físico como um

biombo social, afastando todos os que não possuíam rodas próprias. Moses, que nunca aprendeu a dirigir, estava se transformando no homem de Detroit em Nova Iorque”64.

O discurso e a ação do urbanismo estiveram sintonizados com a nova realidade. Ao mesmo tempo, a cidade veio a se constituir em um amplo mercado de reprodução da força de trabalho e de produção política e ideológica do capitalismo. A sociabilidade e a cultura urbana foram afetadas pela ação do capitalismo e uma e outra, nessa íntima interação, buscaram a organização dos espaços físicos, sociais e culturais da cidade. A interação não ocorreu sem conflitos políticos ideológicos e de classe. São essas variadas condições que buscamos analisar na cidade do Salvador entre 1935 a 1945.

3.2 A Cidade de Tomé de Sousa encontra o Barão de Haussmann.