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A vitrine da cidade: a rua Chile, uma rua anti-modernidade?

2- A cidade e a cultura da modernidade na Era Vargas (1935-1945)

4.2 A vitrine da cidade: a rua Chile, uma rua anti-modernidade?

A cidade teimava em não aceitar a mudança da rua e disputava com as máquinas a sua primazia. A rua era para bater pernas e não foi com bom grado que os baianos aceitaram aquele novo senhor das ruas. No quarto capítulo dessa tese, trataremos da resistência da cidade à modernidade da máquina e ao discurso reformador do urbanismo. Por hora, procuraremos discutir como as ruas na cidade eram do pedestre, como pode ser visto nessa rua popular, a do Taboão:

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Departamento Nacional de Portos e Navegação Relatório pelos Serviços Executados de 1940. Imprensa Nacional. p. 119.

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Arquivo Histórico Municipal. Coleção Renato Berbert de Castro. Pasta. 025, postal 0589. Nesse postal se percebe a importância da Av. Jequitaia que ligava o porto da cidade a Calçada do Bonfim onde localizava-se a estação ferroviária e a península de Itapagipe.

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Perambular pelas ruas da cidade não era exclusividade das ruas populares ou ruas de ligação entre a Cidade Alta e a Cidade Baixa, como era o caso do Taboão, que interligava aquelas duas partes pelo Caminho Novo como pode ser visto na fotografia acima. A modernidade da máquina era uma ação que alterava o comportamento social na cidade da Bahia, porém ainda era mantido o hábito de caminhar pelas ruas, era o que Octávio Torres chamava de “caminho dos pobres”.

A fotografia leva a nossa percepção imediata do caminhar no meio da rua, ou seja, a rua era do pedestre. Nesse caminhar observamos os trajes dos homens de terno e chapéus e a maioria das roupas claras. Outro aspecto a observar é que era uma rua masculina, só é possível ver uma mulher carregando uma sacola.

“Bater perna” era um componente da cultura soteropolitana e, nesse sentido, a principal vitrine da cidade e centro das novidades era a rua Chile. Era então a rua Chile um espaço anti-moderno da cidade? Tendo em vista que a modernidade sonhada por Le Corbusier a rua seria dos automóveis e não local de transeuntes maravilhados com as vitrines ou outras novidades, atravancando o trânsito201.

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Relatório de Durval Neves da Rocha. Anos 1940-1941. Nessa sessão de fotos não há no Relatório número de página

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LE CORBUSIER, em seu artigo “Criação de um Instrumental de Urbanismo para Uso da Sociedade

da Máquina” diz a respeito da rua “A palavra rua simboliza, em nossa época, a desordem circulatória.

Substituamos a palavra ( e a coisa) por caminho de pedestres e pistas de automóveis ou auto-estradas. E organizaremos esses dois novos elementos, um em relação com o outro. p 81. grifo de Corbusier.

A rua Chile era uma confusão de hotéis, repartições públicas, consultórios, lojas de moda e de utilidades domésticas. E também o centro da paquera e do exibicionismo urbano, da moda e dos automóveis mais sofisticados que passavam pela pequena e eufórica rua.

A rua Chile é pequena. Vai da Praça Municipal ao Largo do Teatro, enladeirada. No entanto é o coração da cidade, nela se exibe toda a gente. Como a rua do Ouvidor, no Rio, a rua da Praia, em Porto Alegre, a rua Direita, em São Paulo. Em todas as cidades há uma assim. A da Bahia não é pior nem melhor que ás das outras capitais. São ruas do footing, da conversa, de negocio também, de namoros, de brilho, de exibição. Ali se estabelece o comércio mais elegante. As grandes casas de fazendas, sapatos, roupas de homem e de mulher. Ali estão os ricos sem que fazer, os desocupados , os literatos, os aventureiros, os turistas, gente que sobe e desce a rua, ali as mulheres mostram seus novos vestidos, exibem as bolsas caras, esperam o bonde após o passeio diário.202

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Rua desejada e centro de atrações, a rua Chile convergia todos aqueles que buscavam ser vistos e ver o que acontecia na cidade. Lugar do disse-me-disse, dos encontros proibidos, dos mettings políticos e também dos desfiles do carnaval. A rua Chile decididamente era uma área que já não estava mais no tempo da cidade moderna, ou seja, o tempo do urbanismo progressista que tinha no automóvel e na velocidade a grande modernidade.

No postal acima, ainda que não tenhamos a data do documento, é possível ver em primeiro plano o hotel Pálace que era o mais luxuoso e requintado da cidade. No mesmo postal, os bondes dividindo com os automóveis os espaços da formosa rua e no centro

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AMADO, Jorge. Bahia de Todos os Santos. p. 89.

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um canteiro que dividia a mão e a contramão da rua que certamente aumentava a dificuldade do trânsito e ao fundo do documento/imagem, as pessoas caminhando prática comum na cidade.

Lúcia Guedes Mello, em seu livro de memórias, Sobradão, recorda-se da rua Chile da seguinte forma:

Da minha época lembro o bonde que por ali passava e nós, as moças presas ao controle patriarcal, tínhamos que nos contentar em passear de bonde. Com a Faculdade, a proibição deixou de existir. Elga, irmã de criação, adorava a rua Chile depois das quatro, hora do footing. Cybele dava-se ao luxo de fazer roupa para ir à rua Chile, na verdade ia-se para ser vista; ali era a passarela da moda(...) O grupo de sempre era Guilherme, Manoelzinho, Hilda , Carminha e eu.204

A imprensa da época também discutia a importância da rua Chile como local de sociabilidade da capital baiana. No jornal Imparcial, havia uma crônica diária, na década de trinta, chamada “A Cidade”, na qual, invariavelmente, a rua Chile estava presente para descrever o que havia de novo na cidade.

A Cidade. E, ontem à tarde, na rua Chile, a roda “infezava” o comentário. Moços atletas, queimados de sol. Rapazes folgazões que, no momento, só pensam no banho do mar e no carnaval . Quase todos falavam. Entusiasmados. Dois deles tinham ido, de manhã, ao porto do Bonfim. Eram os mais entusiastas. Ah! Amanhã, não faltarei!...”seu” mano, nunca vi “maillot” tão camarada. E o outro. Uma coisa assim louquíssima. Faria sucesso até em Copacabana...um “maillot” daquele numa pequena daquela...205

Sendo então um centro tão glamuroso da cidade, por que a rua Chile era anti- moderna? Ao menos na concepção do urbanismo de Le Corbusier, a rua Chile não tinha lugar ou então o seu lugar já havia passado. A máquina e, principalmente o automóvel, deveria matar aquele tipo de rua, que só congestionava o trânsito e atrapalhava a vida da cidade. A rua tinha outra função e não era mais o local do footing, dos encontros de negócios ou simplesmente o local de um bom “bate papo”, a rua deveria ceder o seu espaço ao trânsito.

Le Corbusier, no seu brado mudancista da cidade, Por uma Arquitetura de 1923 e Urbanismo de 1924, abre um grande debate sobre a cidade e a arquitetura produzida naquele momento. Nas duas obras, Le Corbusier deseja matar a rua como área de sociabilidade urbana. Nesse sentido, em Urbanismo, defende que a rua “ atual é antiga

“trilha de vacas”, sobre a qual se colocou pavimentação, sob a qual se escavaram alguns metrôs.” E continua, Le Corbusier, na sua defesa de morte à rua. Assim, a rua

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MELLO, Lúcia Guedes. op.cit. p. 73.

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moderna ” deve ser uma obra-prima de engenharia civil e não mais um trabalho de

cavouqueiros. A rua corredor deve deixar de ser tolerada já que envenena as casas que ladeiam e provoca a construção de pátios fechados.”206

Na carta de Atenas de 1943, a morte da rua continua a ser defendida em função da necessidade da circulação. Observa Le Corbusier que a rua atual não foi preparada para a velocidade mecânica e a disputa pela rua entre pedestres, os animais e as máquinas, seria fonte de diversos conflitos, daí a necessidade de apartamento desses agentes tão diferentes quanto ao critério da velocidade. Assim, a altura das casas, marcha de arranque dos carros e a largura das vias tornavam inviável ruas como a Chile207.

A rua Chile, nessa concepção, era uma rua anacrônica com o pensamento moderno do urbanismo. Local de confusão entre bondes, automóveis, auto-ônibus, pedestres e até animais. Parada de carro de praça, ponto para bondes e ônibus. Carga e descarga de hotéis, bares e restaurantes. Footing dos jovens, estudantes, homens de negócio e mulheres, passeatas políticas. Aglomeração e múltiplas atividades. Era um inferno a rua Chile para o urbanista progressista, à moda de Le Corbusier.

A rua Chile, com todo o seu charme, era um local de grande visibilidade na cidade. Se havia uma rua encantadora para os olhos, da moda e do fuxico da cidade e mostrava estar próxima da modernidade, do século XIX, de Baudelaire. Como a modernidade é mutável, para o século XX, ela era uma rua corredor que atravancava o tráfego de bondes e automóveis e, com suas múltiplas atividades, criando a confusão, quebrando com a racionalidade do trânsito e por isso anti-moderna.